1. Panorama histórico brasileiro
“Era um golpe há muito premeditado. Os tambores da conspiração já haviam rufado, ruidosos, em 1954. [...] só uma década após o suicídio do homem que vislumbrava o populismo [...] é que seus inimigos enfim conseguiram tomar o poder, derrubando João Goulart.” (BUENO, 2010, p.374). Como se pode notar, o golpe de 64 não foi algo impensado ou fruto de uma ação instantânea dos militares, ele foi sendo moldado pela elite, pela mídia, pelos Estados Unidos e também pelas próprias forças armadas. O populismo brasileiro estava se esgotando, não era mais bem visto como antes. O populismo varguista do Estado Novo tinha o apoio dos militares, dos generais Dutra e Góis Monteiro, porém Jango não teve tal apoio.
Inicialmente, o golpe não foi visto como tal; foi chamado de revolução, uma revolução contra o “perigo” comunista, como o preâmbulo do próprio Ato Institucional Nº 1 diz que o governo de Jango “deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País.” (CONSTITUIÇÕES DO BRASIL, 1986, p.315). A ideia, ou pelo menos o discurso era o de manter o governo constitucional. Porém o governo “revolucionário” se deu o poder constituinte através dos atos institucionais.
[...] a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. (CONSTITUIÇÕES DO BRASIL, 1986, p.314).
Com essa prerrogativa o governo decretou o AI-5 em 1969, dando poder ao executivo de cassar direitos políticos, de fechar o congresso, dentre outros. A mudança foi tão grande que o momento foi apelidado de “Golpe dentro do golpe”. Depois disso a ditadura se escancarou e o estado de exceção se consolidou mais ainda. “O AI-5 concretizou o golpe de 1964 e deixou claro que os militares estavam dispostos a abandonar sua posição de ‘poder moderador’.” (BUENO, 2010, p.388).
O regime mergulhou de vez no autoritarismo que deixou marcas profundas no país e que só veio a acabar em 1985. Portanto, o Brasil passou por esse estado de exceção; um estado autoritário, centralizador e autossuficiente. Porém fica-nos a pergunta se o estado de exceção acabou verdadeiramente no Brasil, ou se ainda há vestígios desse regime.
2. O Estado de Exceção e a Soberania segundo Carl Schmitt
Carl Schmitt em 1922 expõe seu famoso livro Teologia Política o paradigma do estado de exceção. Ele descreve esse estado como uma zona indeterminada na qual o soberano tem o poder de decidir sobre o que for necessário para manter o Estado e o poder. Se o Estado estiver ameaçado o soberano pode então se utilizar desse recurso que é o estado de exceção para suspender os direitos fundamentais da maneira como bem entender; isso ocorre por uma causa superior, a de preservar o Estado; “Em estado de exceção, o Estado suspende o direito por fazer jus à autoconservação” (Schmitt, 1922, p.15).
O estado de exceção não é um momento de desordem, já que ele é acionado para manter a ordem política; portanto a ordem que interessa ao estado de exceção não é a jurídica e sim a política. No estado de exceção o Estado subsiste em detrimento do direito e da constituição.
Schmitt também define soberania como um conceito limite, ou seja, algo que é o próprio limite entre o jurídico e o extrajurídico; sendo assim o soberano, lançando mão da exceção decide sobre o direito e molda como bem entender, o sistema vigente. O soberano é aquele “que deve tomar as decisões que dizem respeito a aspectos essenciais da vida política como aquele da segurança, do interesse público [...].” (Bignoto, 2008, sem paginação).
O paradigma da exceção teorizado por Schmitt é então a base que funda e preserva os governos na contemporaneidade. A exceção portanto, é o momento em que o soberano se excetua do ordenamento jurídico para anulá-lo e preservar os interesses ameaçados. Segundo Schmitt é assim que as democracias se fundam, e se autoconservam: através da renovação ou inovação que o estado de exceção fornece.
3. Estado de Exceção à luz de Giorgio Agambem
Agambem é o filósofo da atualidade que trouxe à luz o tema do estado de exceção. Ele baseia seus estudos críticos do direito na biopolítica, que é o ato do direito de engendrar a vida de tal maneira que não haja vida qualificada fora dele; a vida em todos os aspectos passa ser regulada pelo direito.
Na compreensão de que vivemos imersos em um paradigma dominante de política sob a égide do estado de exceção, Agamben denuncia as práticas usadas inicialmente como medidas de segurança, ligadas a fatos e acontecimentos excepcionais que deveriam ser reservadas a um espaço e tempo restritos que, no entanto, se tornam regras de uso permanente. Ou seja, uma medida com caráter de excepcionalidade se torna uma técnica de governo. (PONTEL, 2012, p.98).
O estado de exceção é a máxima da biopolítica, pois é nesse momento que o governante melhor consegue dominar a vida nua e suspender os poderes e direitos da população. Tal estado permite que o soberano domine todas as formas de vida humana. Portanto Agambem define o estado de exceção também como o ‘lugar’ em que o direito pode agir sobre a mera vida (a vida nua) excluindo-a do sistema vigente. Agambem diz:
A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma de suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. (AGAMBEM, 2010, p.24).
Agamben, portanto, mostra que o estado de exceção é justamente esse espaço em que há uma indiscernibilidade entre vida e lei (Agamben, 2010, p.66).
3. Aplicação ao caso brasileiro
O regime de exceção durante a ditadura militar se aplica, guardadas as devidas proporções, ao estado de exceção de Schmitt e ao de Agamben. Pode-se perceber que o período da exceção não pode ser sentido pela população, porém os governantes sabem que isso é um artifício que utilizam, e é ao mesmo tempo sutil e poderoso.
O AI-5, como já foi dito, trouxe à tona o ápice do estado de exceção brasileiro; uma vez que a distinção entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário ficou totalmente fragilizada. A constituição de 1967 foi uma Carta Magna criada pela exceção, fruto desse regime. Essa constituição mostra “o quanto tal poder instituidor é perigosamente poderoso, no sentido de tornar até mesmo um “Estado de Exceção” que leva a supressão ou derrogação do ordenamento jurídico vigente, para a concretude de uma nova realidade, com matriz jurídica válida, mesmo que recriminável.” (BEVILACQUA. Em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9499>).]
Depois de quase 21 anos imerso em um regime ditatorial e autoritário o Brasil voltou a viver a verdadeira democracia, mas muitos resquícios do estado de exceção continuam rondando e continuam inseridos no direito brasileiro. Um exemplo deles é o tipo de processo legislativo chamado Medida Provisória. A MP, como é apelidada, é o poder do chefe do executivo de propor projetos de lei urgentes ao Congresso, no qual o conteúdo da MP se torna vigente antes da apreciação dos parlamentares. Com certeza essa é uma prerrogativa que dá muita forção ao executivo, ainda que ela tenha suas limitações.
Utilizando a teoria de Agamben de que o direito domina a vida no estado de exceção, nota-se que no Brasil a regulação jurídica passa por todos os campos da vida humana; sabendo-se assim que isso é uma reminiscência, ainda que em parte, da total regulamentação da ditadura e do estado de exceção.
Outra característica foi a própria constituinte de 1987, na qual o povo não foi ouvido na questão procedimental da constituinte; os constituintes não foram eleitos pelo povo, pelo contrário, os legisladores ordinários foram escolhidos para legislar na constituinte. O autoritarismo caraterístico do estado de exceção, de maneira indireta, aparece na força da polícia, na impunidade, na corrupção e em várias outras situações na qual o povo é simplesmente deixado de lado. Portanto, por mais que não se possa dizer o que o Brasil vive um estado de exceção, pode-se perceber que há restos desse regime espalhados pelas áreas política e jurídica da nação.
4. Bibliografia
Agambem, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Bignoto, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmmit. MG. Kriteron: revista de filosofia. 2008. Sem paginação.
Campelo Pereira, Matheus Bevilacqua . Golpe Militar de 1964 – Instalação do Estado de Exceção e a luta pela Redemocratização <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.phpn_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9499>. Acesso em 30/06/13.
Pontel, Evandro. Estado de Exceção em Giorgio Agambem. Revista Opinião Filosófica. Porto Alegre. V.03. n. 02. 2012.
Schmitt, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Edição 2006. MG. Ed. Del Rey. 1922. 186p.