RESUMO: Diante da complexidade de julgamento dos casos concretos no campo normativo, abrem-se possibilidades para que o judiciário utilize poder discricionário ao se deparar com a ausência de regulamentação normativa em situações específicas. Nesse sentido, o presente artigo objetiva analisar a questão da discricionariedade à luz das teorias de Herbert Hart e Ronald Dworkin discutindo as posições antagônicas destes dois teóricos acerca do tema abordado. Utilizando a pesquisa bibliográfica como técnica foi possível aprofundar-se nas concepções de Hart e Dworkin e fazer um estudo comparativo das teorias dos dois juristas. A análise bibliográfica das referidas teorias acerca da discricionariedade judicial possibilitou o repensar desta questão no cenário jurídico-normativo do século XXI, marcado por novos debates ideológicos que geram a necessidade de rediscutir constantemente a questão.
Palavras-chave: Textura aberta do Direito. Herbert Hart. Ronald Dworkin. Discricionariedade judicial.
1 INTRODUÇÃO
Constantemente o Poder Judiciário depara-se com casos que não podem ser resolvidos pelas normas previstas no sistema jurídico, estes são concebidos como “casos difíceis” em que o juiz deverá buscar determinados valores e argumentos que fundamentem a decisão adotada. Nesse ínterim, encontra-se a teoria do inglês Herbert Lionel Adolphus Hart, que aponta o poder discricionário como solução para os casos difíceis.
Na obra mais famosa de Hart, “O conceito de Direito” de 1961, o autor discute este conceito e vai além da mera concepção do Direito como união de regras primárias. Hart aponta a existência de um campo normativo com regras secundárias que ofereceriam critérios de validade ao ordenamento jurídico, nesse sentido, a supremacia de uma regra secundária de reconhecimento seria o dispositivo necessário para estabelecer os limites do Direito. O autor, entretanto, cita a existência de uma “zona de penumbra”, que seria um espaço aberto, inalcançável pela regra de reconhecimento e onde se encontraria o poder discricionário do juiz.
Dessa forma, Hart sustenta que a ‘textura aberta do Direito” é o principal motivo para a concepção do critério discricionário na solução de casos difíceis, de forma que, diante das lacunas do Direito, caberia ao julgador preenchê-las por meio de sua atividade decisória.
Entretanto, as ideias de Hart foram refutadas e sobressaíram-se teorias antagônicas como a do estadunidense Ronald Dworkin, que fez minuciosa análise crítica acerca da doutrina de Hart, principalmente no que tange à discricionariedade judicial. Dworkin aduz que a concepção de textura aberta do Direito seria uma consequência da visão positivista do ordenamento jurídico e que os padrões que fundamentam uma decisão não poderiam partir de um campo extrajurídico, mas que devem encontrar soluções dentro da própria esfera do Direito. Assim, haveria a necessidade de observância de regras e princípios jurídicos no ato decisório dos magistrados.
A temática da discricionariedade judicial continua sendo foco de discussões na atualidade, tornando-se relevante promover a análise das teorias em questão, bem como suscitar contribuições para a compreensão deste fenômeno no contexto jurídico hodierno. Dessa forma, este trabalho tem como objetivo analisar a questão da discricionariedade à luz das teorias de Herbert Hart e Ronald Dworkin discutindo as posições antagônicas destes dois teóricos acerca do tema abordado.
O desenvolvimento do estudo partirá de breves considerações acerca de pontos relevantes da doutrina de Hart, enfatizando a concepção da discricionariedade judicial e, em seguida, apresentar-se-á aspectos da doutrina de Dworkin e seus pontos antagônicos à doutrina de Hart em relação a esta discricionariedade. Com isto, visa-se traçar algumas bases teóricas para a compreensão da discricionariedade na decisão judicial, a partir da ótica de dois dos mais importantes juristas do Direito contemporâneo e, ressalte-se, sem a pretensão de esgotar o assunto, mas sim de refletir acerca de aspectos relevantes que possam viabilizar futuras discussões mais aprofundadas.
2 HERBERT HART: O CONCEITO DE DIREITO E ASPECTOS RELEVANTES DE SUA TEORIA
Hart desenvolveu sua teoria dentro da vertente do positivismo jurídico. O positivismo aduz que a existência do Direito pressupõe os fatos sociais, que seriam regulados pelo sistema de normas posto por ato de vontade dos próprios seres humanos.
Visando a limitação a critérios subjetivos, o positivismo relaciona a validade jurídica a normas existentes em um sistema jurídico, afastando desta validade outros meios como a moral e a política. Entre as normas existentes haveria uma hierarquia que possibilitariam ao Direito ser concebido como uma ciência autônoma, como aduz Barzotto (2007, p.17):
Este sistema é visto como um conjunto de normas dispostas hierarquicamente, na medida em que as normas são criadas em conformidade com as outras normas, sendo as primeiras vistas como “inferiores” em relação as segundas, as “superiores”. [...] Com efeito, a consideração do Direito moderno, leva inadvertidamente, o observador a visualizá-lo como um sistema normativo que se estrutura em uma forma “piramidal”.
Diante da hierarquia de normas, tem-se um sistema escalonado, com um topo que, para Hart, seria a “regra de reconhecimento”. Esta seria o dispositivo capaz de estabelecer quais comandos deveriam ser reconhecidos como juridicamente válidos.
O ápice da obra de Hart deu-se com a publicação de “O conceito de Direito”, onde o autor propõe-se a analisar este conceito, não de forma definitiva, mas identificando elementos que caracterizariam o sistema jurídico moderno. Hart aponta três questões sobre a natureza do Direito que tem sido foco de controvérsias jurídicas e cuja análise permitirá desvelar as características de seu sistema jurídico.
A primeira questão discutida surge de que, se existe o Direito, então algumas condutas humanas deixam de ser facultativas e se tornam obrigatórias. Neste primeiro momento, Hart baseia-se na teoria do filósofo John Austin para conceber a obrigatoriedade do Direito, mas refutará sua teoria para propor seu próprio modelo de Direito. Na concepção de Austin a obrigatoriedade se configuraria na submissão da vontade de uma determinada pessoa a outrem, seria uma coação psíquica. Dessa forma, a essência do Direito estaria na imposição de condutas por meio de ordens baseadas em ameaças. Isso nos leva à primeira questão recorrente proposta por Hart: como se diferencia o Direito de ordens baseadas em ameaças e como se relaciona com elas?
O segundo questionamento parte do pressuposto de que, no Direito as condutas deixam de ser facultativas e passam a ser obrigatórias. Nesse sentido, destaca-se que a obrigatoriedade do Direito também decorre de regras morais que impõem obrigações de comportamento, concebendo-se o Direito como ramo da moral. No posicionamento de Hart, embora o sistema jurídico apresente semelhanças com as regras morais, existe uma total independência entre Direito e moral. Dessa forma, surge o questionamento: como difere a obrigação jurídica da obrigação moral e como está relacionada com esta?
O terceiro ponto remete à concepção do Direito como um sistema formado por regras. Para Hart, uma regra não se confunde com a mera convergência de comportamentos de uma mesma maneira. Há, no entanto, uma grande incerteza por trás dessa questão: o que seriam, de fato, as regras, e o que significa dizer que elas existem? Existem regras que impõem determinado comportamento e, os desvios ao padrão de comportamento são objeto de punição, de maneira que a punição existe porque a regra foi violada.
A partir dos questionamentos levantados, pode-se afirmar que Hart cria um sistema jurídico baseado em práticas sociais, advindo a força coercitiva da aceitação das regras pela sociedade. Dessa forma, cria-se um conceito de obrigação relacionado a um determinado padrão de comportamento, internalizado como hábito no ordenamento jurídico e transformando-se em regra social juridicamente válida. Sob esse prisma, Hart apresenta uma nova visão do Direito, baseada na união de regras primárias e secundárias.
Para Hart, um sistema normativo calcado apenas por regras primárias seria constitutivo de sociedades primitivas, em que as regras jurídicas relacionam-se apenas à imposição de deveres. A função das regras primárias é determinar o que os indivíduos podem ou não fazer, impondo-lhes obrigações e criando padrões de conduta. As regras secundárias seriam característica de sociedades mais desenvolvidas, que apresentam relações sociais mais complexas, tendo em vista que seriam responsáveis por atribuir poderes.
Diante desta diferenciação de normas, Hart cita três grandes problemas que estariam ligados à impossibilidade de manutenção de um sistema baseado em regras primárias. O primeiro problema apontado, “o problema da incerteza” refere-se à questão da constante mudança nas regras sociais e a dificuldade de reconhecimento e adaptação a essas mudanças por parte dos membros de dada sociedade. O segundo problema foi denominado de “problema de caráter estático das regras”, relacionado à escassez de meios para institucionalizar novas regras sociais. Quanto ao terceiro, ele denomina “problema da ineficácia” referindo-se à situação em que, o descumprimento das regras em determinado contexto social gera sua ineficácia no sistema jurídico.
Visando solucionar esses problemas Hart apontou três espécies de regras secundárias:
A solução para cada um desses três defeitos principais dessa forma mais simples de estrutura social consiste em suplementar as normas primárias de obrigação com normas secundárias, que pertencem a uma espécie diferente. A introdução de correção para cada um dos efeitos mencionados poderia ser considerada, em si mesma, uma etapa da transição do mundo pré-jurídico ao jurídico, pois cada recurso corretivo traz consigo muitos dos elementos que permeiam o Direito: certamente, combinados, os três recursos bastam para converter o regime de normas primárias em algo que é indiscutivelmente um sistema jurídico. (HART, 2012, p. 121-122)
A fim de solucionar o problema da incerteza, Hart concebeu uma “regra de reconhecimento” que, por meio de um critério formal e não subjetivo, determinaria se uma norma seria válida ou não. Quanto ao problema de caráter estático, seria resolvido através de “regras de modificação” de maneira que o caráter dinâmico da sociedade seria garantido pela definição da criação e mudança das regras do ordenamento jurídico. Por fim, o problema da ineficácia teria sua solução a partir das “regras de aplicação” relacionadas à escolha de representantes sociais aptos a julgar controvérsias particulares.
O critério de identificação do Direito adotado por Hart consiste em uma única “regra de reconhecimento”, cuja estrutura encontra-se calcada na prática social e faz com que todas as outras regras sejam identificadas com base nela. Dessa forma, pode-se afirmar que, a regra de reconhecimento seria um teste de validade para a norma, definindo o que seria ou não Direito válido em determinada sociedade.
A regra de reconhecimento exerce o controle do sistema jurídico e utiliza critérios específicos para ditar a aceitação ou não de normas primárias. Por esse motivo, o ingresso destas normas no ordenamento jurídico condicionar-se-ia à satisfação dos critérios exigidos pela regra de reconhecimento, que seriam identificados pelos tribunais e particulares. No entanto, Hart cita uma dificuldade em relação à regra de reconhecimento: o reconhecimento da validade de uma regra primária em determinado sistema jurídico diante da diversidade de enunciados normativos que ocasionam o problema da incerteza, em virtude da textura aberta propiciada pela linguagem.
Nesse sentido aduz Hart (2012, p. 158):
Nada pode eliminar essa dualidade entre um núcleo de certeza e uma penumbra de dúvida quando procuramos acomodar situações particulares ao âmbito de normas gerais. Isso confere a todas as normas uma margem de vagueza ou ‘textura aberta’, o que pode afetar tanto a norma de reconhecimento que especifica os critérios últimos usados para a identificação do Direito quanto uma lei específica.
Assim, Hart chama a atenção para a possibilidade da regra de reconhecimento ser afetada em virtude da linguagem da construção normativa, conduzindo o Direito a uma “zona de penumbra” na qual o julgador deveria utilizar seu poder discricionário diante de situações não reguladas normativamente.
3 A TEXTURA ABERTA DO DIREITO E A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL À LUZ DE HERBERT HART
Os problemas inerentes à linguagem, na construção do sistema jurídico, faz com que, segundo Hart, a interpretação do texto normativo traga incertezas. Ao lado do problema da incerteza, destaca-se também a impossibilidade de se descrever todas as situações passíveis de regulamentação diante de condutas futuras e incertas, de modo que seria impossível ao legislador descrever todas as possibilidades de acontecimentos.
Para Hart, toda regra possui dois aspectos: um núcleo central que não deixa espaço para incertezas, onde se situam os casos simples e uma inevitável zona de penumbra, correspondente à textura aberta da norma, onde recaem os casos difíceis. Os casos difíceis trazem à tona, portanto, as lacunas da lei na teoria de Hart. São difíceis porque não podem ser solucionados pelo Direito, já que não existem critérios jurídicos que permitam concluir antecipadamente por uma solução correta.
O Direito apresentaria, então, lacunas, espaços de incerteza que resultam da ausência de regulamentação jurídica ao caso concreto. É nesse âmbito de indeterminação das regras, na “penumbra de incerteza” inerente a toda expressão normativa que se situam os casos juridicamente não regulados, difíceis. Quando a regra deixa dúvidas sobre qual é a solução pretendida, e não há meios jurídicos para se chegar a essa resposta, estamos diante de um caso difícil.
Os casos difíceis precisam de resolução e, diante da impossibilidade do Direito responder ao caso concreto, caberá ao juiz proferir esta resposta, uma vez que os casos concretos não podem ficar sem solução. Hart não concebe a hipótese de remessa do ponto não regulamentado ao poder legislativo para que este o decida, tendo em vista que defende a discricionariedade do juiz para que indique a solução correta ao caso não contemplado pelo Direito. A ausência de uma solução jurídica atribuiria ao juiz este poder discricionário que permite resolver o caso difícil por meio da escolha entre um dos interesses conflitantes (HART, 2012).
Dessa forma, Hart afirma a impossibilidade de um sistema jurídico constituído por um número infinito de normas prevendo todas as condutas passíveis de ocorrência na sociedade. Assim, o Direito assume uma textura aberta, consequência da impossibilidade de abrangência de todos os casos concretos pelas regras jurídicas.
Sob esse prisma, nos ensina Hart (2012, p. 166):
Qualquer que seja a estratégia escolhida para a transmissão de padrões de comportamento, seja o precedente ou a legislação, esses padrões, por muito facilmente que funcionem na grande massa de casos comuns, se mostrarão imprecisos em algum ponto, quando sua aplicação for posta em dúvida; terão o que se tem chamado de textura aberta. Até aqui temos apresentado isso, no caso da legislação, como uma característica geral da linguagem humana.
No entendimento de Hart, os sistemas jurídicos apresentariam uma textura aberta, contendo situações concretas não regulamentadas pelo Direito, abrindo possibilidades para que os casos sem normas correspondentes pudessem ser decididos pelos aplicadores do Direito. Assim, a concepção de textura aberta apresentada por Hart envolve a insuficiência de determinação das normas aos casos concretos e a necessária complementação no processo de aplicação destas normas.
Diante da situação de casos difíceis não encontrarem respaldo no Direito vigente em razão da incompletude do sistema, Hart aponta como solução o poder discricionário do julgador como forma de suprir as lacunas normativas, buscando um equilíbrio entre os interesses conflitantes a partir de cada circunstância específica.
Segundo Hart, a consequência da textura aberta do Direito ao ordenamento jurídico seria o poder discricionário dos julgadores, visando encontrar respostas aptas a regulamentar determinadas situações atípicas. Nesse sentido, seria a discricionariedade um instrumento de integração normativa diante das lacunas da norma, ensejando o exercício da racionalidade subjetiva do juiz. Conforme aduz Paulini (2006, p. 170):
Surge, então, o problema de saber como deve o juiz se portar quando o imediato enquadramento de uma regra a um caso concreto resulta duvidoso. A resposta oferecida por Hart a esta questão não destoa de uma proposição relativamente comum entre os autores do chamado positivismo jurídico. Em verdade, nos casos em que o juiz não tem condições para decidir com base no Direito preexistente, conceder-se-ia ao magistrado um poder discricionário, autorizando a criação de um Direito que lhe permita a atuação, para que não se vejam frustradas as expectativas do jurisdicionado.
Assim, diante da inexistência de solução normativa a um caso concreto, Hart aponta como solução a utilização do poder discricionário do julgador:
Nesses casos, a autoridade encarregada de estabelecer as normas deve evidentemente exercer sua discricionariedade, e não há possibilidade de tratar a questão levantada pelos vários casos como se pudesse ser resolvida por uma única solução correta a priori, e não por uma solução que represente um equilíbrio razoável entre diversos interesses conflitantes (HART, 2012, p. 171).
A decisão dos casos difíceis exige interpretação rigorosa, visando a solução mais apropriada ao caso concreto. Diante da imprecisão normativa, caberá ao julgador decidir a forma mais acertada dentre as possíveis, criando o Direito ao caso concreto. A permissão para que o julgador exerça esta atividade criadora diante da ausência normativa origina a discricionariedade judicial, pautada em valores externos ao sistema jurídico.
Na lição de Bitencourt, Calatayud e Reck (2014, p. 86-87, grifo nosso):
Dessa forma, para esse jurista a discricionariedade judicial fica circunscrita a esses casos menos predizíveis, situados fora do núcleo de significação das regras jurídicas, ou não sendo pautados pelas mesmas. Assim, apenas nos casos difíceis, em que a lei é omissa ou confusa, é que a atividade interpretativa atribuiria aos juízes um poder discricionário. Vale ressaltar que, nessas circunstâncias excepcionais, o juiz não está aplicando o Direito, na medida em que as regras jurídicas não permitem indicar uma direção certeira. Assim, se estaria criando o Direito para o caso concreto.
Dessa forma, o exercício do poder discricionário constitui-se em atividade criadora do Direito para determinados casos concretos sem relação normativa. No entanto, ressalte-se que, as situações de uso da discricionariedade não desqualificam o Direito, tornando-o um aglomerado de decisões judiciais a toda e qualquer circunstância. A função criadora exercida pelos julgadores manifesta-se apenas em situações específicas, diante de situações concretas indeterminadas normativamente, quando se verifica o problema da textura aberta do Direito.
Ao decidir o caso difícil valendo-se da discricionariedade, o juiz exerce seu poder de criação do Direito no ponto não regulamentado, gerando um precedente judicial para futuros casos semelhantes. Ou seja, a partir da decisão do juiz, cria-se uma resposta jurídica que torna-se válida daquele determinado momento em diante. Contudo, Hart não admite que o poder discricionário seja usado como permissivo para decisões arbitrárias, pois o poder de criação do Direito deve ser exercido pelo juiz com base em certas razões gerais justificadoras de sua decisão.
Assim, a doutrina do poder discricionário vem para solucionar questões em que não há uma resposta jurídica, levando o magistrado a optar por respostas exteriores ao corpo do Direito para motivar sua decisão. No entanto, a discricionariedade não pode tornar o ordenamento jurídico apenas um conjunto de decisões fundamentadas em escolhas pessoais dos magistrados, uma vez que as decisões proferidas pelo julgador devem trazer em si um “freio” ao livre discernimento pessoal, observando os padrões que devem ser seguidos visando a possibilidade de futuras decisões a serem tomadas (COLONTONIO, 2011).
Hart, dessa forma, não prevê a existência de um poder discricionário desvinculado de qualquer forma interpretativa ligada ao Direito. Afinal, a própria legislação existente no ordenamento jurídico, seria um limite a indiscriminada forma de se criar o Direito.
O poder discricionário surge num contexto em que não há, segundo Hart, qualquer dever legal que imponha ao juiz uma decisão específica ou que o obrigue a decidir de acordo com um padrão preexistente. Sem dúvidas, o poder discricionário confere vasta liberdade ao julgador, permitindo que ele crie uma resposta jurídica para os casos difíceis em vez de aplicar um Direito preexistente.
As decisões judiciais em casos difíceis não seriam, nesse contexto, fruto de uma racionalidade jurídica, e sim resultado da racionalidade subjetiva do julgador, que forma seu convencimento com base em elementos morais, políticos e econômicos que não são obrigatórios, mas meras sugestões ou recomendações extrajurídicas.
A teoria de Hart acerca da discricionariedade foi alvo de inúmeras críticas, das quais se destacam as considerações de Ronald Dworkin, que trouxe uma nova visão para os casos difíceis. A consideração dos princípios nos julgamentos destes casos foi apontada como a solução para dar fim ao problema da discricionariedade judicial. Para o filósofo, a existência de um poder discricionário inerente às autoridades públicas, seria uma decorrência do caráter falho da regra de reconhecimento, que ao utilizar-se de um teste de pedigree, não conseguiria identificar princípios.
4 A TEORIA DE RONALD DWORKIN E A CRÍTICA À DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL DE HART
Ronald Dworkin destacou-se como crítico ao positivismo jurídico. O jurista concebe que Direito, moral, justiça e política são elementos que possuem uma relação intrínseca. Para ele, o Direito era concebido em seu caráter interpretativo e argumentativo, dos quais decorria sua complexidade.
Focado em ideias liberais, Dworkin buscou demonstrar sua discordância em relação às teses defendidas por Hart. Em relação à concepção hartiana da regra de reconhecimento Dworkin considera que esta seria um verdadeiro “teste de pedigree”, por meio do qual apenas algumas regras seriam aceitas. Assim, para que uma determinada regra pudesse ter o status de jurídica deveria passar pelo crivo da regra de reconhecimento, o que daria ensejo a uma mecanicidade caracterizada por um sistema fechado de regras, possibilitando a discricionariedade judicial como consequência do exaurimento da regra de reconhecimento diante de casos difíceis, não regulados pelo Direito.
Para Dworkin, os padrões que fundamentam uma decisão não poderiam partir de um campo extrajurídico, devendo encontrar justificativas dentro do próprio campo do Direito. Há, portanto, uma ideia de obrigação, determinada por regras e princípios jurídicos, que devem ser levadas em consideração pelos magistrados no ato decisório.
A ideia de inclusão de princípios no ordenamento jurídico se mostra como a solução encontrada por Dworkin para dar fim ao problema da discricionariedade judicial. Para o filósofo, a existência de um poder discricionário inerente às autoridades públicas, seria uma decorrência do caráter falho da regra de reconhecimento, que ao utilizar-se de um teste de pedigree, não conseguiria identificar princípios.
A defesa dos princípios leva Dworkin a esclarecer a concepção da obrigatoriedade de sua observação em decisões judiciais. Nesse sentido, o filósofo critica a teoria do arbítrio judicial defendida por Hart, com base em critérios positivistas. Ao contrário de Hart, Dworkin concebe que os casos difíceis possuem uma resposta correta e que por isso a teoria hartiana sobre os casos difíceis é incompleta e insatisfatória.
A proposta de destaque na teoria de Dworkin envolve a diferenciação entre princípios e normas. As normas seriam aplicáveis no sentido de tudo ou nada, ou seja, diante de determinado fato tem-se que ou a regra é válida e se aceita a resposta que prescreve ou não é válida e não traz nenhuma contribuição à decisão judicial. Por outro lado, os princípios enunciariam um direcionamento para as decisões particulares.
A concepção de um poder discricionário apto a resolver o problema da textura aberta do Direito é taxada por Dworkin como irracional, tendo em vista a exposição do sistema jurídico à arbitraiedade. Sob esse aspecto, o autor faz a seguinte analogia: “Tal como um espaço vazio no centro de uma rosca, o poder discricionário não existe a não ser como um espaço vazio, circuncidado por uma faixa de restrições” (DWORKIN, 2002, p.50-51).
Dworkin aduz que a teoria da discricionariedade judicial de Hart não pode ser concebida em um Estado democrático, uma vez que o exercício de poderes típicos do legislativo pelo judiciário, os quais não são eleitos pelo voto, desvirtua o princípio democrático da soberania popular. Nesse sentido, o filósofo afirma que a tese hartiana dos casos difíceis contraria o princípio da legalidade, tendo em vista que diante da falta de regulamentação jurídica, as partes não possuem direitos ou deveres antes que o juiz os estabeleça (CADEMARTORI, 2005).
Assim, a crítica de Dworkin torna-se campo fértil para a elaboração de um modelo apto a solucionar os casos difíceis de maneira coerente com o Estado Democrático de Direito. Este caminho pauta-se na solução dos referidos casos a partir da diferenciação entre princípios e regras. Assim, diante de um caso difícil, o juiz não possui discricionariedade absoluta para tomar sua decisão na medida em que está vinculado aos princípios. Este modelo de princípios visa reduzir a incerteza e a insegurança, para tanto, a decisão judicial deve estar relacionada à ideia de Direito como integridade.
Segundo Dworkin, o Direito como integridade aduz que os juízes o considerem como um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal. Dessa forma, estes princípios devem ser aplicados aos casos concretos de tal modo que as situações sejam julgadas de maneira justa e equitativa. Nesse âmbito, o papel do julgador seria o de estabelecer a interpretação coerente com as regras, princípios e decisões judiciais existentes na prática jurídica da sociedade e não com seus princípios pessoais.
O modelo de decisão judicial preconizado por Dworkin explica o papel atribuído aos juízes no Estado Democrático de Direito, pois, uma vez adotado este modelo, as sentenças não seriam mais retroativas, julgando e atribuindo um novo Direito a uma situação pretérita onde este não existiria, conforme um julgamento discricionário, porque os princípios que as fundamentam já fazem parte do Direito. Por outro lado, o fato de os juízes não terem sido eleitos pelo voto popular, não os impede, senão os autoriza, a decidir utilizando argumentos de princípio (CADEMARTORI, 2005).
Assim, Dworkin ataca a tese de Hart de que a discricionariedade pressupõe que os juízes, ao afirmarem que sua decisão é a correta, estão, na verdade, utilizando um instrumento retórico para disfarçar uma decisão discricionária e concebe uma solução: a adoção dos princípios no julgamento dos casos difíceis.
5 A SOLUÇÃO DE DWORKIN AO PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL
Em suas críticas ao positivismo, Dworkin afirmava que a esse sistema faltava padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como os princípios. Dessa forma, concebia que a teoria de Hart, ao oferecer uma regra de reconhecimento como teste para a validade das normas, era falha por não considerar outros padrões, diferentes das regras.
Assim, Dworkin afirma que diante da impossibilidade de encontrar uma resposta ao caso concreto, não seria idôneo permitir a abertura do sistema à arbitrariedade judicial. O dever do julgador é encontrar a melhor decisão a partir de um ordenamento jurídico constituído não somente de regras jurídicas, mas também de outros elementos identificados como implícitos ao Direito.
Dentre estes elementos apontados por Dworkin, destaca-se o papel desempenhado pelos princípios e políticas, que são diferenciados das normas pelo jurista do seguinte modo:
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.” (DWORKIN, 2002, p. 39).
As regras seguem, portanto, o sentido do “tudo ou nada”, pois, diante do conflito entre elas, uma não será válida. Por outro lado, diante de um conflito entre princípios, estes interagem entre si apresentando um princípio particular que fornece uma razão em favor de determinada decisão.
Na teoria de Hart os princípios não apareciam como pertencentes ao ordenamento jurídico e este seria o grande problema apontado por Dworkin, tendo em vista que este concebe que o funcionamento do sistema estaria condicionado pelo papel dos princípios na justificação das decisões judiciais.
Esse sistema apresentado por Dworkin, ao apontar a indispensabilidade dos princípios na resolução de casos difíceis, concebe que existe uma resposta correta dada pelo Direito, mesmo nestes casos. A esse respeito leciona Colontonio (2011, p. 92):
A tarefa de Dworkin, portanto, será mais complicada do que criar um critério de princípios que se assomará às regras de reconhecimento das regras. Deverá montar um modelo de Direito que: (i) identifique como um juiz comprometido com suas funções descobre quais são as regras e princípios existentes em sua jurisdição; (ii) desvende como esse juiz decidirá caso os Direitos e obrigações em jogo sejam controversas; e, (iii) determine como será tratada a decisão do magistrado no caso particular, já que Dworkin defende que há uma resposta correta dada pelo Direito, mesmo em face da situação de que dois juízes, ambos bem preparados, podem chegar a decisões diversas sobre a mesma lide. O modelo criado com esses propósitos será chamado, no livro ‘Levando os Direitos a sério’, de ‘Tese dos Direitos’ (The Rights Thesis).
Na visão de Dworkin a inexistência da discricionariedade judicial se mostra possível, pois no ordenamento jurídico não se identificam falhas que possibilitem o exercício de um poder discricionário pelo juiz. Dessa forma, os juízes somente poderiam fundamentar suas decisões concebendo os critérios do próprio Direito, fundamentando-se na racionalidade de modo a alcançar as decisões mais equitativas. A resposta correta aos casos difíceis estaria dentro do próprio ordenamento jurídico, por meio de um trabalho interpretativo, no qual os princípios seriam considerados como forma de resguardar o melhor interesse das partes.
Diante de uma colisão de princípios a resolução dar-se-á mediante a dimensão do peso, ou seja, o juiz estará obrigado a decidir não por discricionariedade própria, mas fazendo um equilíbrio entre os princípios da sociedade em que o caso difícil está inserido, optando por aquele de maior peso.
A decisão discricionária parte da racionalidade subjetiva do julgador, sendo irracional do ponto de vista jurídico, pois pauta-se em critérios pessoais, e não de Direito. Na visão de Hart o Direito é um conjunto formado exclusivamente por regras validadas mediante uma regra de reconhecimento, desconsiderando-se outros padrões diferentes daquelas. Ao decidir um caso difícil utilizando-se do discernimento pessoal o julgador não concebe uma obrigação jurídica preexistente, mas cria o Direito ao caso concreto. Dworkin critica esse posicionamento ao considerar que o Direito vai além das regras jurídicas e deve considerar os princípios.
Afirmar que os princípios são parte relevante do sistema jurídico significa que, se determinado princípio for compatível com o caso concreto, ele deve ser levado em consideração pelos julgadores como norteador de possíveis decisões. A dimensão de peso dos princípios opõe-se ao aspecto de “tudo ou nada” das regras, pois, enquanto estas devem ser totalmente acatadas ou então não se aplicarão, os princípios podem ser considerados para orientar um argumento em certa direção.
Assim, o poder discricionário enunciado por Hart não se apresenta como solução aos casos difíceis, tendo em vista que deve haver uma justificativa pautada em elementos pertencentes ao Direito. Para Hart, os princípios não integram o Direito porque não são suscetíveis de serem validados pela regra de reconhecimento, que seria o instrumento identificador do que seria ou não válido para o ordenamento jurídico. Este teste a que são submetidas as normas pela regra de reconhecimento são denominadas por Dworkin de “teste de pedigree” e não funciona em relação aos princípios, tendo em vista que estes não possuem características formais que possam ser identificadas objetivamente por um teste como este.
Os princípios não visam oferecer um resultado certo à controvérsia, mas sim orientar a decisão judicial. Dessa forma, os princípios não podem ser validados pelo teste de pedigree, pois não há uma característica comum e formal que possa identificá-los como jurídicos. A regra de reconhecimento de Hart é, pois, incapaz de explicar os princípios como parte do Direito e a consequência desta concepção é um sistema formado exclusivamente por regras, que não podem resolver todos os casos concretos, diante de sua textura aberta.
Em relação ao poder discricionário como solução à textura aberta apontada por Hart, Dworkin diferencia dois sentidos deste poder: um fraco e um forte. Este critica a teoria de Hart considerando que tal doutrina não contempla a discricionariedade em sentido forte. Para Dworkin, a discricionariedade em sentido fraco estaria relacionada a capacidade de julgamento diante de uma decisão, tendo em vista que o contexto não é claro o suficiente para possibilitar a aplicação de determinada regra mecanicamente. Nesta decisão, o julgador estaria subordinado a critérios estabelecidos por uma autoridade superior. Por outro lado, a discricionariedade forte significa que, o julgador, ao tomar suas decisões, não está submetido a uma autoridade superior, pois não existe um padrão legal preexistente que lhe imponha o dever de decidir de determinada forma.
Hart concebe a discricionariedade em sentido forte como critério de solução para os casos difíceis, revelando que os princípios não impõem obrigações ao juiz e somente as regras o vinculariam. Nessa ótica, os princípios seriam meras recomendações extrajurídicas que não obrigariam os juízes a observá-los, mesmo diante da ausência de regulamentação jurídica ao caso concreto. Diante desta circunstância o juiz usaria seu poder discricionário, aplicando uma escolha livre de limitações jurídicas, o que traria a possibilidade de decisões injustas e arbitrárias.
A falta de resposta jurídica clara, segundo Dworkin, não significa ausência de resposta jurídica possível, de forma que o caso difícil não seria justificativa para o uso do poder discricionário, sem bases racionais sob a ótica do Direito. Mesmo em casos difíceis o autor entende que haveria uma única resposta correta, cabendo ao juiz apenas descobrir qual a resposta adequada ao caso em questão. No entanto, esta resposta não se encontra por meio do critério da discricionariedade, e sim pelo critério da integridade.
Para Dworkin, dentro de um Estado Democrático de Direito todas as decisões judiciais devem pautar-se em padrões de Direito e não em critérios extrajurídicos. Para que essa concepção se efetive é preciso compreender a necessidade de incluir no Direito padrões capazes de abranger casos não regulamentados pelas regras. Estes padrões referem-se aos princípios, que, assim como as regras, são capazes de oferecer respostas jurídicas.
Dessa forma, Dworkin entende que o Direito traz soluções para todos os casos concretos, excluindo assim a possibilidade de discricionariedade na atividade judicial e afastando a tese positivista das diversas respostas possíveis. O filósofo propõe uma nova concepção da atividade judicial, de maneira que o juiz considere todos os princípios legais e morais pertinentes ao caso concreto, utilizando-se da atividade interpretativa para chegar à melhor solução.
A atividade interpretativa envolve a atribuição de determinado sentido a uma situação, buscando a solução correta para o caso concreto. Segundo Dworkin a melhor interpretação faz-se pelo sentido moral, residindo aqui uma grande diferença em relação à teoria positivista, vez que esta concebe a independência entre Direito e moralidade. Dworkin defende que o argumento moral é parte do argumento jurídico, dessa forma, o juiz deve buscar a melhor justificação moral para sua decisão, a partir da consideração das regras e princípios diante de um caso difícil (DWORKIN, 2002).
A moralidade baseia-se, na visão de Dworkin, na concepção do tratamento igualitário a todas as pessoas. É sob esta ótica de uma teoria moral baseada na igualdade que os casos concretos devem ser analisados pelo juiz. A essa virtude que faz com que o Estado atribua um tratamento igualitário aos cidadãos, Dworkin chamou de integridade, que se refere ao compromisso de tratar a todos de forma igual e coerente com os princípios e a moralidade concebida na sociedade.
A virtude da integridade manifesta-se em dois princípios: o princípio legislativo e o princípio jurisdicional. O princípio legislativo exige que os legisladores criem o Direito de forma coerente com a moral e os princípios. O princípio jurisdicional exige que ao tomar suas decisões os juízes concebam a relação do Direito com a moral e os princípios. Assim, a integridade evidencia-se no Direito e torna-se elemento indispensável para que os juízes decidam diante dos casos difíceis.
Para representar o ideal de integridade no Direito Dworkin criou a figura do juiz Hércules. Este é um juiz modelo, paradigma a ser seguido nos casos difíceis. Ele tem o dever legal de encontrar a melhor resposta possível por meio da atividade interpretativa sobre o que normas e princípios aduzem acerca do caso concreto. Havendo conflito entre princípios o juiz Hércules realizaria uma apreciação moral do caso conforme o Direito e aplicando à situação a resposta que melhor reflita o Direito histórico.
Sobre esse aspecto da teoria, assim esclarece Lages (2001, p.47):
Ao decidir um caso difícil Hércules sabe que os outros juízes decidiram casos que, apesar de não guardarem as mesmas características, tratam de situações afins. Deve, então, considerar as decisões históricas como parte de uma longa história que ele deve interpretar e continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhor andamento a ser dado à história em questão. Hércules adota o Direito como integridade, uma vez que está convencido de que ele oferece tanto uma melhor adequação quanto uma melhor justificativa da prática jurídica como um todo.
Assim, o juiz Hércules posicionar-se-ia nos casos difíceis a partir da ponderação, levando em consideração a moral e a história. Nessa concepção não se encontram lacunas no sistema jurídico e as decisões seriam pautadas em princípios capazes de proporcionar uma justificação igualitária nos casos apreciados, não havendo espaço para a atuação discricionária do julgador. Dworkin não pretendia que todos os juízes fossem Hércules, mas sua intenção foi apresentar um parâmetro de atuação, traçando um ideal a ser seguido na resolução de casos difíceis.
Dworkin afirma que o juiz ideal não decidiria conforme suas próprias convicções, e sim com base na moralidade social, ou seja, conforme as convicções morais vigentes em determinado contexto social. Dessa forma, as decisões do juiz nem sempre estarão conforme suas convicções pessoais, tendo em vista que deve agir de forma coerente com o Estado Democrático de Direito. Portanto, o juiz tem o dever legal de interpretar a história da sociedade em que se encontra e considerar as tradições morais vigentes e os princípios para pautar suas decisões nos casos difíceis.
6 CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo analisar a questão da discricionariedade à luz das teorias de Herbert Hart e Ronald Dworkin discutindo as posições antagônicas destes dois teóricos acerca do tema abordado. De acordo com as premissas analisadas, a concepção de Hart sobre casos difíceis pauta-se na independência entre Direito e moral e na concepção do Direito como textura aberta, o que daria ensejo à discricionariedade judicial para resolver os casos difíceis. Por outro lado, Dworkin concebe a aproximação entre Direito e moral e nega a discricionariedade judicial proposta por Hart, tendo em vista que os casos difíceis teriam soluções jurídicas pautadas pelos princípios e pela moral.
A concepção de Hart encontra-se alicerçada no positivismo jurídico, concebendo limites ao Direito que seria distinto de outros padrões, como a moral. Dessa forma, na concepção hartiana, diante da separação entre Direito e moral, o juiz não estaria vinculado em suas decisões aos princípios morais adotados socialmente. Dworkin, como representante do pós-positivismo, concebe a relação entre Direito, moral e política na resolução dos casos difíceis diante da insuficiência do repertório normativo.
A discussão teórica entre Hart e Dworkin ganha relevo a partir da questão da discricionariedade judicial. Segundo Hart, a discricionariedade ocorre diante de situações não regulamentadas pelo Direito, atribuindo ao magistrado o poder de criação do Direito que poderia contribuir para a prolação de decisões arbitrárias, pautadas tão somente em convicções pessoais. O equívoco de Hart, na ótica de Dworkin, foi a possibilidade de decisões serem fundamentadas em critérios extrínsecos ao Direito. Nesse sentido, Dworkin rebateu a teoria de Hart concebendo que diante dos casos difíceis os juízes deveriam procurar respostas nos princípios do ordenamento jurídico, buscando a melhor justificativa moral ao caso concreto.
Na visão dworkiana, os magistrados teriam o ideal do juiz Hércules a ser seguido, dotado de capacidades excepcionais para aplicar a melhor resposta possível aos casos difíceis. A abordagem destes casos a partir do ideal de Hércules demonstra a visão idealizadora de Dworkin em relação ao Direito, enquanto para Hart tem-se uma visão do Direito puramente descritiva, apta a descrevê-lo sem qualquer valoração moral.
Concluímos que a discricionariedade forte é uma ferramenta perigosa, pois permite que sejam tomadas decisões arbitrárias, sem qualquer justificativa jurídica. Se concebermos a possibilidade de discricionariedade forte aos moldes do que prescreve Hart, corremos o risco de decisões judiciais contrárias aos direitos subjetivos e de termos um Direito que frustra as expectativas dos cidadãos e que profere decisões pouco democráticas.
Diante dos argumentos expostos, pode-se afirmar que a teoria da integridade de Dworkin apresenta maiores benefícios ao ordenamento jurídico do que à discricionariedade forte proposta por Hart, pois impõe um critério de coerência que se mostra legítimo, fornecendo um sistema de controle das decisões judiciais. As regras propostas por Hart necessitam de uma solução que leve em consideração um critério de legitimidade para as decisões judiciais, e essa solução é o argumento de natureza moral, a integridade, que preenche a lacuna deixada pela discricionariedade e torna o Direito capaz de alcançar até mesmo os casos difíceis.
REFERÊNCIAS
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