Direitos culturais no ambiente digital: uma questão global

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O artigo almeja lançar algumas reflexões sobre possíveis caminhos que poderiam levar ao fortalecimento do exercício dos direitos culturais em plena era da tecnologia digital.

Resumo:

O presente artigo pretende discorrer sobre os direitos culturais no ambiente digital, a partir de uma perspectiva internacionalista do reconhecimento no plano dos direitos humanos. A partir dessa definição, são levantadas algumas reflexões bastante atuais sobre os interesses e desequilíbrios nas relações entre indivíduo, empresa e Estado no ambiente digital. Questões como liberdade de expressão, produção, acesso e fruição cultural, direitos autorais, direito ao esquecimento, manipulação de dados pessoais acabam por denunciar uma relação significativamente desproporcional do indivíduo em relação ao Estado e às plataformas digitais globais. Enfim, o artigo almeja lançar algumas reflexões sobre possíveis caminhos que poderiam levar ao fortalecimento do exercício dos direitos culturais em plena era da tecnologia digital.

Palavras-chave: Direitos Culturais. Redes Sociais. Internet. Liberdade de Expressão. Diversidade Cultural.

Sumário: 1. direitos humanos culturais; 2. ambiente digital; 3. O que está em jogo 4. Conclusão; 5 Referências.

CULTURAL RIGHTS IN THE DIGITAL ENVIRONMENT: GLOBAL ISSUE

Abstract:

This article aims to discuss aboud the cultural rigths in the digital environment, from an internationalist perspective of recognition in terms of human rights. From this definition, it raised some current reflections on the interests and imbalances in the relationship between person and state and company in the digital environment. Issues such as freedom of expression, production, access and cultural enjoyment, copyright, rights to oblivion, personal informantion manipulation end up reporting a significantly disproportionate relationship of the person from the state and global digital platforms. Finally, the article aims to shed some thoughts on possible ways that could lead to the strengthening of the exercise of cultural rights in the current age of digital technology.

Keywords: Cultural rights. Social Networks. Internet. Freedom of Expression. Cultural Diversity.

Summary: 1. cultural human rights; 2. digital environment; 3. what is at stake 4. conclusion; 5. references.

1 DIREITOS HUMANOS CULTURAIS         

Para a melhor compreensão sobre o conjunto de direitos que está sob discussão, cabe delimitar, a partir da perspectiva de construção histórica no âmbito do multilateralismo internacional, o que se deve entender por direitos culturais.

Sem dúvida, a referência normativa fundamental é nada menos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que estabelece em seu art. 27:

Artigo 27°

1.Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.

2.Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.

Ainda no âmbito da Nações Unidas, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), preceitua no seu art. 15:

Artigo 15

 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de:

    a) Participar da vida cultural;

    b) Desfrutar o processo cientifico e suas aplicações;

    c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção cientifica, literária ou artística de que seja autor.

2. As Medidas que os Estados Partes do Presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à convenção, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura.

3.Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa cientifica e à atividade criadora.

 4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.

No espectro do continente americano, os direitos culturais estão indicados no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecido como Protocolo de São Salvador (1988) que, em boa medida, reproduz os princípios definidos no Pacto de 1966. O referido Protocolo preceitua em seu art. 14:

Artigo 14 - Direito aos benefícios da cultura

 1.      Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem o direito de toda pessoa a:

  a.      Participar na vida cultural e artística da comunidade;

  b.      Gozar dos benefícios do progresso científico e tecnológico;

  c.      Beneficiar‑se da proteção dos interesses morais e materiais que lhe caibam em virtude das produções científicas, literárias ou artísticas de que for autora.

2.         Entre as medidas que os Estados Partes neste Protocolo deverão adotar para assegurar o pleno exercício deste direito, figurarão as necessárias para a conservação, desenvolvimento e divulgação da ciência, da cultura e da arte.

3.         Os Estados Partes neste Protocolo comprometem‑se a respeitar a liberdade indispensável para a pesquisa científica e a atividade criadora.

4.         Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem os benefícios que decorrem da promoção e desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais em assuntos científicos, artísticos e culturais e, nesse sentido, comprometem‑se a propiciar maior cooperação internacional nesse campo.

Retornando à ONU, em 2001, uma de suas principais agências, a UNESCO, emitiu a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Ao reafirmar o compromisso com a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos universalmente reconhecidos, o documento fortalece a compreensão dos direitos culturais como exercício de liberdade, expressão, identidade, produção, difusão e acesso à cultura. Convém registrar o art. 5º dessa declaração da UNESCO:

Artigo 5 – Os direitos culturais, marco propício da diversidade cultural

Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em partícular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.

A despeito da clara ênfase quanto à relevância dos direitos culturais para a realização dos direitos humanos, o normativo internacional aqui citado não apresenta qualquer espécie de rol de direitos, que fosse ao menos exemplificativo, delimitador da esfera cultural.

Quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, a CF88, no seu art. 5º, que é dedicado aos direitos e garantias fundamentais, explicita o livre exercício dos cultos religiosos, a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, e os direitos do autor. Certamente são direitos e garantias que são naturalmente entendidos como direitos culturais. A educação figura como direito social (art, 6º) e direito cultural (art. 205 a 214). Entretanto, é no art. 215 que a CF88 garante a todos o pleno exercício dos direitos culturais, indicando, ainda que de maneira indireta, as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas. Há, portanto, clara sinergia e absorção pelo ordenamento jurídico brasileiro da visão internacional estampada nas Declarações e Pactos que reconhecem a existência de direitos culturais e a necessidade de protegê-los e promovê-los, como garantia individual do ser humano.

Embora o objetivo da presente análise não se concentre no debate conceitual sobre os direitos culturais, e sim o pleno exercício desses no ambiente digital, parece-nos que a não constituição de uma lista, a rigor, não se apresenta como um óbice para o entendimento do conceito na medida em que o direito cultural é comumente visto não como um direito coletivo, mas sim uma concepção inerente a cada indivíduo.

Para Farida Shaheed, atual Relatora Especial no campo dos direitos culturais do Conselho de Direitos Humanos da ONU:

Os direitos culturais constituem uma área de desafio justamente porque estão ligados a uma vasta gama de questões que variam da criatividade e expressão artísticas em diversas formas materiais e não materiais a questões de língua, informação e comunicação; educação; identidades múltiplas de indivíduos no contexto de comunidades diversas múltiplas e inconstantes; desenvolvimento de visões de mundo específicas e a busca de modos específicos de vida; participação na vida cultural, acesso e contribuição a ela; bem como práticas culturais e acesso ao patrimônio cultural tangível e intangível. (SHAHEED apud COELHO, 2011b: 20).

O alcance dos direitos culturais não só está intimamente conectado à definição do conceito de cultura, que por si só também é altamente abrangente e complexo, como também se aproxima de outros direitos humanos e liberdades fundamentais. Em suma, os direitos culturais se fortalecem como conceito na medida em que são reconhecidos como exercício individual de liberdade, expressão, identidade, produção, difusão e acesso à cultura.

2 O AMBIENTE DIGITAL

A evolução tecnológica atingiu patamares até então inimagináveis há 20 ou 30 anos. Conexões, informações, conhecimento, redes, tudo está mais próximo e acessível. As novas formas de interação entre indivíduos se dá, sobretudo, a partir de plataformas digitais que possuem alcance global. São as grandes corporações do século XXI que inovam, inclusive em modelos de negócios baseados numa pretensa gratuidade ou na cobrança pelo acesso e não mais pela propriedade de bens e serviços.

Em especial a cultura tem se valido dessa nova compreensão de mundo por meio da tecnologia. A liberdade de opinião e expressão ganhou nova potencialidade que permite o debate plural, a confrontação de pensamentos e o diálogo direto, aberto e difuso. Radicalismos e intolerâncias são os efeitos colaterais mais sintomáticos de novos tempos em que a voz e a criatividade do indivíduo nunca tiveram tantos instrumentos e potencial de repercussão. Em que pese a verdadeira revolução das relações sociais, a consolidação das plataformas digitais globais, tais como facebook, twiter, youtube, google, snapchat, instagram, deezer, spotify, entre outros, trouxe consigo questionamentos sobre as condições e limites de atuação de empresas, Estados Nacionais e indivíduos. É oportuno trazer alguns bons exemplos das fragilidades e divergências na conduta desses atores:

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Em 2008, a mãe norte-americana Heather Farley não só teve uma foto sua amamentando removida pelo Facebook como foi ameaçada de ser banida da rede social ao postar novamente a imagem. Em 15 de abril de 2015, o Facebook também removeu da página institucional do Ministério da Cultura do Brasil uma fotografia datada de 1909, que retrata um casal indígena com a mulher de seios à mostra. Na Austrália, em 2016, a mesma plataforma digital censurou uma fotografia de aborígenes australianas, utilizada na divulgação de uma campanha de valorização do feminismo indígena. Em todos os casos, a motivação para a censura está associada à padronização das políticas de uso da plataforma que veda esse tipo de imagem. No caso das fotos indígenas, a censura extrapola a questão da exposição do corpo ou de um comportamento cultural e alcança a proibição de que os indígenas sejam retratados conforme seus costumes e tradições.

A liberdade artística também tem sido restringida por esse tipo de política de uso. A icônica capa do disco Nevermind, da banda de rock Nirvana, foi censurada na página oficial da banda no Facebook em 2011 por supostamente violar os termos de uso do site ao mostrar um bebê nu. A imagem foi republicada dias depois. Em 2010, a mesma plataforma baniu campanhas publicitárias do álbum Night Work, da banda Scissor Sisters. A capa mostrava as nádegas do dançarino clássico Peter Reed. No Brasil, em 2015, a página do Ministério da Cultura do Brasil foi novamente censurada e mantida fora do ar por uma semana, por veicular imagem da capa de um disco da cantora Karina Buhr com seios à mostra. Talvez o caso mais conhecido seja do professor parisiense Frederic Durand-Baissasda que, em 2011, teve suspensa sua conta no Facebook por ter postado em sua página imagem do quadro “A Origem do Mundo” de Gustave Coubert.

Em todos os casos até aqui apresentados, a linha comum é que se trata de uma política de censura praticada pela plataforma digital a partir do seu conceito próprio sobre o que pode ou não estar acessível aos seus usuários. Ou seja, é uma atuação restritiva da empresa sobre o indivíduo.

Em 2012, o Twitter anunciou uma nova tecnologia pela qual passaria a bloquear “tweets” de acordo com a legislação de cada país. Essa aplicação se daria, por exemplo em países como Alemanha e França, onde conteúdos de estímulo ao nazismo são proibidos por lei. Nesses casos, as mensagens seriam bloqueadas nesses países mas liberadas no resto do mundo. A medida teria sido tomada em razão das diferentes ideias sobre liberdade de expressão adotadas nos países em que a empresa atua. Ao fazer esse anúncio, a plataforma reafirmou o compromisso com a transparência no processo de restrição de conteúdos, porém sem esclarecer os critérios a serem adotados para negar uma publicação. Vale lembrar que o microblog se consolidou como poderosa ferramenta de mobilização social, a exemplo das manifestações que culminaram na Primavera Árabe, muitas delas convocadas pelo Twitter. Do ponto de vista econômica, a estratégia foi vista como tentativa de expandir sua escala global, buscando chegar a 1 bilhão de usuários regulares, inclusive em novos mercados, como o chinês, o que até hoje não se viabilizou.

Na Itália, em 2013, um tribunal de Milão decidiu que plataformas sociais não são obrigadas a filtrar conteúdos hospedados em seus serviços pois configuraria censura prévia. A decisão foi proferida a partir do caso de 4 estudantes que, em 2006, usaram o Youtube para praticar bullying contra outro estudante. Embora diversos internautas tenham solicitado a retirada do vídeo, a plataforma digital somente agiu 2 meses após as primeiras reclamações.

A comediante canadense, Nicole Arbour, teve seu canal suspenso pelo próprio Youtube, após uma série de denúncias de usuários contra um de seus vídeos que trazia piadas e ridiculariza pessoas obesas. Após as reclamações, agora de censura, a plataforma restaurou o canal de Arbour.

Pelos exemplos apresentados tanto do Twitter quanto do Youtube, fica patente a dificuldade em se definir a autoridade e os limites da liberdade de expressão, se é que existem, nas plataformas digitais. Até que ponto a liberdade de expressão poderia ser mitigada por códigos de conduta emitidos por empresas privadas? De modo inverso, haveria possibilidade de atuação estatal para regulamentar a liberdade de expressão no ambiente digital, ou os casos controversos deveriam apenas ser objeto de mediação pelo Poder Judiciário sem adoção de prévia censura tanto pelas empresas quanto pelo Estado?

De fato, os direitos culturais estão diretamente afetados por esse novo choque de interesses entre empresa, cidadão e Estado. Dentre os direitos culturais, o direito autoral surge como aquele de feição mais individualizada, por carregar forte elemento econômico e por estar, a rigor, altamente normatizado tanto por legislações nacionais quanto por instrumentos internacionais. A realização econômica a partir do direito autoral acaba por ensejar novos conflitos na esfera digital.

Em 2012, uma corte na Alemanha decidiu que o YouTube é o “único responsável” pelo conteúdo que usuários publicam no serviço de vídeos. A decisão judicial pode acarretar ao Google, proprietário do serviço, o pagamento de multas pesadas pelos vídeos publicados no site que infrinjam direitos autorais. Na prática, o que está em jogo é o pagamento de royalties por milhares de vídeos publicados na plataforma por usuários da Alemanha. Adicionalmente, a Justiça ordenou à citada plataforma a instalação de filtros de palavras para prevenir novas infrações a trabalhos protegidos por legislação autoral.

A ação foi apresentada pela entidade representativa de artistas, músicos e escritores alemães – GEMA, órgão semelhante ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD, no Brasil. Atualmente, a GEMA gerencia a propriedade cultural de cerca de 65 mil artistas alemães, além de controlar o uso das criações de mais de um milhão de outros artistas de todas as partes do mundo.

Dessa forma, cada exibição de vídeo no Youtube que contenha música de artista alemão filiado à GEMA, deverá pagar algum valor de royalties pela reprodução da obra autoral. A fiscalização bastante austera do órgão fiscalizador alemão tem gerado o crescente bloqueio, pela própria plataforma digital, de conteúdo anteriormente disponibilizado.

Por outro lado, em decisão de 2015, uma Corte de Apelações em Nova York rejeitou recurso movido pelo Authors Guild, sindicato dos escritores americanos, que acusava o Google de ter copiado digitalmente livros sob proteção de direitos autorais, sem permissão. A ação teve início em 2005. Na decisão da Corte, concluiu-se que a digitalização de livros com direitos autorais não configuraria em violação por parte da plataforma digital, tendo em vista os benefícios públicos ao permitir o acesso a enormes quantidades de dados, com potencial de gerar novos públicos e, por conseguinte, novas fontes de renda para autores e editores. Além disso, acordo inicial entre as partes havia sido feito, com previsão de desembolso de US$ 125 milhões aos autores e editoras dos livros toda vez que as obras fossem vistas nas plataformas do Google. A exibição parcial dessas obras constitui-se em estratégia do Google para venda de anúncios em seus resultados de busca. O site já digitalizou mais de 20 milhões de livros desde 2004.

Quando se tem em conta o exercício de liberdades pelo indivíduo, tema novo que surge com o advento das redes sociais e das plataformas de busca na internet é o direito ao esquecimento. Em 2015, a entidade reguladora da privacidade de dados na França rejeitou pedido de arquivamento de uma ação contra o Google, que se recusara a limpar resultados de mecanismo de busca referentes a um cidadão francês.

O direito ao esquecimento foi garantido aos residentes europeus pelo Tribunal de Justiça da Europa em 2014. Desde então, quase 320 mil pessoas exerceram a prerrogativa de solicitar somente ao Google a remoção de informações pessoais que estejam incorretas, antigas, irrelevantes ou provocativas. A plataforma tem atendido cerca de 40% desses pedidos e, ainda assim, vem retirando apenas os links das versões europeias de seus sites, como Google.fr ou Google.de, o que significa que a informação permanece disponível globalmente. A França é o primeiro país europeu a abrir um processo legal dessa natureza.

Em que pese o risco de cerceamento à liberdade de comunicação, expressão e opinião, a limitação ao acesso, produção ou fruição cultural e a oposição de restrições e censuras que desvirtuam a identidade cultural do indivíduo, o mais simbólico dos atuais conflitos no ambiente digital que se relacionam aos direitos culturais diz respeito ao colhimento, tratamento e manipulação do uso de dados pessoais dos usuários de plataformas digitais.

Diversos países europeus já se articulam, desde 2013, no intuito de pressionar o Google e seus vários serviços, como Gmail, Youtube e, mais recentemente, o Whatsapp, para que os termos de serviços dessas plataformas digitais sejam alterados com a finalidade de evitar o compartilhamento de dados dos usuários com anunciantes. Não há informações claras sobre o volume de informações pessoais coletadas pelas plataformas, o período de tempo que são mantidas e de que forma são concretamente tratadas. Somente o serviço de buscas do Google detém 95% do mercado europeu. Nesse contexto de forte concentração de mercado, o Parlamento Europeu já avalia a possibilidade de aprovar novas leis antitruste para coibir o alcance do Google, de modo a forçar a neutralidade dos resultados de busca na internet e evitar que a concentração de mercado do site de buscas privilegie determinados segmentos, parceiros ou resultados.

3  O QUE ESTÁ EM JOGO

É notório que os termos de política global das principais plataformas digitais, sob os quais todos os usuários aderem de forma voluntária e gratuita, estão concebidos com base na padronização e imposição de regras de cunho estritamente privado. A concentração da vida pública e privada dos indivíduos em poucas redes sociais e, praticamente, num único site de buscas, parece oferecer às plataformas digitais um privilégio de determinar as regras de conduta e utilização dos seus espaços virtuais. Há, entretanto, o questionamento atual em torno do possível reconhecimento do ambiente digital como um espaço de interesse público ou, indo além, um verdadeiro espaço público. Ao assumir essa condição, torna-se incompatível a definição de regras privadas de convivência, ainda mais por imposição de apenas uma das partes.

De forma pendular, caberia supor que, para mitigar essa imposição de condutas e comportamentos pela plataforma digital sobre o indivíduo, o Estado passaria a agir de tal forma que o indivíduo passaria do arbítrio da empresa privada ao risco do excesso de controle estatal, já que a regulação se dará sobre o comportamento humano e sua produção cultural e artística. É o caso chinês que, a despeito do seu cidadão não utilizar plataformas globais como twitter ou youtube (por vedação estatal), acaba utilizando plataformas estatais semelhantes, obviamente por ser a única disponível e submetendo seus cidadãos a regras rígidas de conduta e limitação das suas liberdades individuais.

A questão da identidade cultural também se apresenta com bastante sensibilidade no ambiente digital, na medida em que qualquer indígena ou aborígene, em nome de uma padronização de conduta, não pode ser obrigado ou ameaçado a deixar de ser indígena ou aborígene. Admitir essa hipótese é reconhecer sua invisibilidade diante do mundo.

Por certo, a velocidade das transformações tecnológicas supera em muito a capacidade dos Estados Nacionais e dos Organismos Internacionais em constituírem arcabouços jurídicos e institucionais que sejam capazes de regular essa situação, principalmente no tocante às responsabilidades das plataformas privadas quanto à observância dos direitos culturais como direitos humanos.

No campo da diversidade cultural não deve prosperar a atual conjuntura em que se estabeleceu como regra, por parte das plataformas digitais globais, normas universais para o tratamento de conteúdos locais. Nesse ponto, há violação frontal do princípio da diversidade cultural, que garante aos povos o direito de expressão dos costumes e tradições a partir das singularidades e das diferenças.

No atual contexto, os direitos culturais devem ser entendidos e respeitados sob a égide de novos arranjos de produção e distribuição de bens e serviços culturais, viabilizados pelas tecnologias digitais. Essa premissa deve respaldar a realização permanente de cinco grandes desafios: liberdade de expressão, diversidade cultural, memória digital, direito de acesso e direitos autorais.

Ao se tratar da liberdade de expressão e da diversidade cultural, cabe-nos compreender qual o nível entre produção de soluções globais (multilateralismo) e regulações nacionais (interesse nacional) deve ser efetivado na construção de um marco regulatório suficientemente garantidor dos direitos de empresas e indivíduos.

Nessa regulamentação, cabe às empresas respeitar os direitos humanos, principalmente em relação aos seus usuários. É o que se denota do documento “Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos”, publicado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2011, que em seu princípio 23:

“Em qualquer contexto, as empresas devem:

A. Cumprir todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, onde quer que operem;

B. Buscar fórmulas que lhes permitam respeitar os princípios de direitos humanos internacionalmente reconhecidos quando confrontados com exigências conflitantes;

C. Considerar o risco de provocar ou contribuir para provocar graves violações de direitos humanos como uma questão de cumprimento da lei onde quer que operem.”

É imperativo reconhecer que as principais plataformas digitais operam como grandes espaços públicos de circulação de informação. Estas plataformas, pela própria dinâmica econômica das redes de bens intangíveis, têm forte tendência à concentração, o que concede a seus controladores o poder de influir de forma decisiva sobre a produção e difusão de cultura em escala global. Assim, conseguem atrair grande parte dos usuários da Internet e mantê-los quase que exclusivamente no âmbito de suas próprias redes e aplicações. Esta é uma tendência crescente que os especialistas chamam de jardins murados.

4 CONCLUSÃO

Desse modo, a natureza global e única da Internet faz com que todos os debates sobre a governança da rede tenham que ser globais. Isso garante a manutenção de seu caráter aberto e plural. As referências para esta ação global já estão dadas em instrumentos existentes. Para além dos instrumentos já analisados no item 1, convém citar a Convenção da UNESCO sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, que consagra a cada país o direito de adotar políticas nacionais para garantir a proteção de sua diversidade cultural.

A aplicabilidade desses instrumentos depende, efetivamente, dos esforços permanentes dos Estados nacionais, na implementação de políticas públicas que promovam a liberdade de expressão e a diversidade cultural. Além disso, pode ser necessária a formulação de novas regras e procedimentos para garantir que os instrumentos que já existem tenham eficácia plena no ambiente digital e que atos de censura privada não ameacem a efetivação de direitos culturais na Internet.  Definições privadas e unilaterais de termos de uso, códigos de conduta ou políticas de veiculação de informação não podem ser utilizadas pelas empresas como justificativa para violação de direitos humanos.

Esse cenário pode afetar negativamente tanto a liberdade de expressão como a diversidade das expressões e manifestações culturais, na medida em que os controladores dessas plataformas venham a impor como padrão global seus próprios valores morais e políticos gerando, como consequência, processos de uniformização cultural e redução da diversidade.

No caso brasileiro, foi aprovado em 2013 uma legislação específica – Marco Civil da Internet - que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no país, tendo como fundamento o respeito à liberdade de expressão. É por conta desta lei que intermediários têm segurança jurídica para atuar sem serem responsabilizados por conteúdos gerados por terceiros. Essa garantia propicia um ambiente adequado para que as plataformas privadas possam cumprir sua obrigação de respeitar a liberdade de expressão e a diversidade cultural, sem a prática indevida de censura privada.

Enfim, é importante deixar claro o papel dos Estados Nacionais na ampliação da liberdade de expressão na internet. Devem assumir sua responsabilidade como atores indispensáveis na promoção de direitos culturais no ambiente digital. A perspectiva de efetivação de direitos humanos na internet deve orientar a formulação de políticas públicas e o desenho de modelos regulatórios que garantam o respeito à liberdade de expressão e à diversidade cultural.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

PORTAL DA UNESCO: Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em: 1 de jun. de 2016.

PORTAL DO PLANALTO: Palácio do Planalto – Presidência da Republica do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>. Acesso em: 1 de jun. de 2016.

PORTAL DO PLANALTO: Palácio do Planalto – Presidência da Republica do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3321.htm >. Acesso em: 1 de jun. de 2016.

PORTAL DA UNESCO: Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura. Disponível em: <. PORTAL DA UNESCO: Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf.>.  Acesso em:  de jun. de 2016.  Acesso em: 4 de jun. de 2016.

PORTAL DO PLANALTO: Palácio do Planalto – Presidência da Republica do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm >. Acesso em: 8 de jun. de 2016.

COELHO, Teixeira. O novo papel dos direitos culturais – Entrevista com Farida Shaheed, da ONU. In. Revista Observatório Itaú Cultural, n. 11, jan./abr. 2011. São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2011b.

PORTAL DA CULTURA: Ministério da Cultura do Brasil. Disponível em: < http://www.cultura.gov.br/busca?p_p_auth=SDa26MlE&p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=1248644&_101_type=content&_101_groupId=10883&_101_urlTitle=foto-censurada-pelo-facebook-volta-a-ser-incluida-na-pagina-do-minc&redirect=http%3A%2F%2Fwww.cultura.gov.br%2Fbusca%3Fp_p_id%3D3%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dmaximized%26p_p_mode%3Dview%26_3_assetCategoryTitles%3DNot%25C3%25ADcias%26_3_advancedSearch%3Dfalse%26_3_groupId%3D0%26_3_keywords%3Dimagem%2Bcensurada%2Bfacebook%26_3_delta%3D20%26_3_resetCur%3Dfalse%26_3_cur%3D1%26_3_struts_action%3D%252Fsearch%252Fsearch%26_3_format%3D%26_3_andOperator%3Dtrue>. Acesso: em 8 de jun. de 2016.

PORTAL DO PLANALTO: Palácio do Planalto – Presidência da Republica do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm >. Acesso em: 10 de jun. de 2016.


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Sobre a autora
Regina Célia Rodrigues Neto Coelho

Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB; <br>Pós-graduada em Gestão Estratégica nas Organizações Públicas pela Faculdade Projeção; <br>Pós-graduada em Docência Virtual e Presencial em Ensino Superior pela Universidade Católica de Brasília; <br>Graduada em Letras: Português e Inglês pela Faculdade Michelangelo de Brasília.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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