Direito social de Gurvitch e o controle social da administração pública municipal

13/06/2016 às 11:55
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A teoria de Georges Gurvtich, apresentada em “La idea del derecho social” fundamenta-se na ideia de comunidade autorregulada, em clara contraposição à posição individualista que se evidenciou a partir da segunda metade do século XIX.

A teoria de Georges Gurvtich, apresentada em “La idea del derecho social” fundamenta-se na ideia de comunidade autorregulada, em clara contraposição à posição individualista que se evidenciou a partir da segunda metade do século XIX. O autor concebe uma ideia diferenciada de direito social, embasada na promoção de direitos coletivizados por meio da comunicação e integração dos membros de um grupo, seria um direito independente de hierarquia, que se origina no seio da comunidade e valoriza o poder social.

Pode-se dizer que a proposta de direito social em Gurvitch é um direito que nasce a partir dos fatos normativos, integrando uma totalidade ativa que participa de maneira imediata da relação jurídica que se estabelece. Nesse contexto, o direito social constitui uma associação igualitária de colaboração, que absorve a multiplicidade dos membros do grupo na vontade única de uma corporação. Assim, o direito social nasce da participação direta dos sujeitos e de relações fundadas em um esforço comum. 

Considera-se a existência de um direito por meio da autonomia da vida coletiva, que integraria as necessidades e aspirações do grupo. Os princípios constitucionais forneceriam o mínimo referencial privilegiando um contexto de integração entre sociedade e espaço público estatal (HERMANY, 2007).

Assim, Gurvitch propõe:

[…] un derecho autónomo de comunión, que integra de forma objetiva cada totalidad activa real, que encarna un valor positivo extratemporal. Este derecho se deriva directamente del todo en cuestión para regular su vida interior, independientemente del hecho de que este todo este organizado o in-organizado. El derecho de comunión hace participar al todo de forma inmediata en la relación jurídica que enana de él, sin transformar este todo en un sujeto separado de sus miembros. […] El derecho social precede, en su fase primaria. A cualquier organización del grupo y no se puede expresar de forma organizada más que si la

asociación está fundada en el derecho de la comunidad subyacente objetiva y penetrada por ella, es decir, cuando constituye una asociación igualitaria de colaboración y no una asociación jerárquica de dominación. (GURVITCH, 2005, p. 19).

Neste entendimento, o direito tem seu reconhecimento social a partir da atuação engajada dos sujeitos, organizados ou não. Gurvitch leciona acerca do hecho social, que seria a elaboração, pela sociedade, de normativas que regrariam a vida em comunidade, tendo em vista uma noção de gestão compartilhada em que os sujeitos participam na gestão pública dos ditames que eles mesmos deverão cumprir.  Assim, o tipo de direito social que atenderia a esses anseios seria, segundo Gurvitch, um direito social condensado:

[...] penetrado por el derecho social que se desprende de la comunidad política subyacente, hacemos referencia a un derecho social, derecho social consensado en el orden del derecho estatal por su ligazón con la coacción incondicionada. Si esta penetración no ha tenido lugar, si la organización del Estado es más o menos Independiente de la infraestructura de la comunidad política subyacente, se trata

entonces de un orden subordinado y non de un derecho social. (GURVITCH, 2005, p. 94).

Dessa forma, esta concepção de direito social integra os atores sociais no processo de organização da sociedade. Para Morais (1997, p. 42), o direito social condensado que nasce pela colaboração entre Estado e comunidade se configura como:

[...] um direito social organizado e, como tal, deve exprimir-se através de associações de colaboração ou de cooperação. Somente uma organização estatal democrática poderá desempenhar o papel superestrutural indispensável para que essa ordem social internalizada na ordem estatal sirva de mecanismo para exprimir organizadamente o amplo espectro da ordem social inorganizada. Apenas uma ordem democrática – como ordem de integração – superposta, estaria em conformidade com esta normatividade social inorganizada, em razão de sua abertura sobre a própria sociedade.

Assim, a normatividade é construída em regime de colaboração entre a comunidade e o ente estatal, no entanto, esse processo somente poderá ser enquadrado na categoria de direito social por meio da democracia participativa. Apesar de existir vinculado à ordem estatal, o direito social condensado poderá manter o seu caráter de integração social com a normatividade estatal sendo formulada a partir da regulação que se propõe à própria comunidade política.

Dessa forma, é preciso que as normas jurídicas emanadas pela sociedade se mostrem condensadas a uma estrutura de Estado Democrático e, sua efetivação, como ordem de integração social, está intrinsecamente relacionada à assunção pela sociedade de seu papel de sujeito ativo no processo de atribuição de sentido ao texto constitucional do Estado Democrático (HERMANY, 2007).

Para justificar a construção de um direito social condensado, Gurvitch trabalhou a ideia de integração numa dimensão de consenso de interesses entre os membros de uma sociedade, manifestando-se, assim, o ideal de coletividade engajada e, acima de tudo, preocupada com a auto-organização de seu espaço.

O direito passa da mera concepção de normatividade e assume o papel de refletir os interesses da coletividade autônoma. Essa experiência jurídica dos próprios atores sociais e operadores do direito torna-os componentes de um processo de criação ou reconhecimento institucional que tem em si mesmo sua configuração, podendo ser concebida como uma reinstitucionalização do direito (HERMANY, 2007)

O direito social de Gurvitch é, portanto, propulsor do controle social e traz em seu bojo a ideia de pluralismo jurídico, em oposição às tradicionais correntes do direito natural e do positivismo jurídico. Na concepção do direito natural entende-se que os direitos são inerentes ao homem, que já os possuía antes mesmo do Estado, tendo este apenas a função de protegê-los. No modelo juspositivista nega-se a existência de um direito natural prévio, concebendo-se que somente o direito positivado teria eficácia perante a sociedade e o Estado.

Na concepção de pluralismo jurídico de Gurvitch, os cidadãos, como atores sociais, são também produtores do direito e realizam o controle social a partir dos interesses da comunidade. Assim, este modelo supera as concepções anteriores e propõe uma atuação ativa da comunidade, onde o direito é construído de acordo com as necessidades daquela. Neste sentido, ressalta-se a relevância do fomento a práticas mais democráticas que aproximem o poder público dos cidadãos, principalmente por meio da administração pública municipal. O controle social da administração pública municipal está diretamente associado à promoção da transparência, ao permitir o acompanhamento das iniciativas de governo pelos cidadãos e por suas organizações.

A proposta de Gurvitch é deslocar das estruturas institucionais do Estado o eixo de atuação em relação às decisões que afetam a vida social, observando os princípios constitucionais e possibilitando a apropriação do espaço público estatal pela sociedade. Para que esta participação e controle social se estabeleçam é necessário o engajamento dos atores sociais como produtores do direito e não apenas como seus destinatários, a conciliação de interesses públicos e privados por meio de consenso que somente será possível em um processo democrático de maneira que todos tenham oportunidade de participação.

Na visão de Draibe (1990) a ideia de espaço local como elemento chave de participação social  está  intimamente  e diretamente  associada  ao  processo  de  democratização  do  país,  em  que  se  configura  a  compreensão  e constituição das formas administrativas municipais e descentralizadas enquanto espaço público e institucional das políticas sociais.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 a esfera municipal destacou-se como espaço privilegiado de participação e controle social, consolidando-se uma nova forma de organização político-administrativa ao facultar-se a descentralização dos assuntos de interesse local, sob a forma de democracia participativa. Nesta organização democrática participativa é imprescindível a afirmação da emancipação social local (empoderamento), que possibilita que a atuação seja horizontalizada em rede, pois na predominância de decisões coativas não há espaço para a manifestação de vontade dos atores sociais.  

Nesse sentido, Pereira (apud COSTA e HERMANY, 2009, p. 31) ensina que:

Empoderamento significa em geral a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma situação particular (realidade) em que seencontra, até atingir a compreensão de teias complexas de relações sociais que informam contextos econômicos e políticos mais abrangentes. O empoderamento possibilita tanto a aquisição da emancipação individual, quanto a consciência coletiva necessária para a superação da "dependência social e dominação política.

Por meio da organização e associação entre os atores sociais criam-se possibilidades de emancipação e participação efetiva da comunidade no desenvolvimento da democracia representativa. Esta organização é essencial diante da tendência dos partidos políticos monopolizarem a ação política, implicando em uma composição de oligarquias a partir de comitês dirigentes altamente burocratizados e distantes dos anseios sociais. Além disso, há de se levar em conta ainda a forte presença do poder econômico e a influência de interesses de grupos específicos sobre os partidos políticos que acabam desfigurando a representação política e desviando-a bruscamente da vontade popular (BOBBIO, 2007).

A participação e controle social na gestão pública municipal está amparada em vários dispositivos constitucionais que visam ampliar o engajamento social na vida política mediante previsão de mecanismos que incentivem a democracia participativa. Dentre alguns destes mecanismos pode-se citar a utilização de plebiscitos, referendos e iniciativa popular no processo legislativo. Pode-se destacar também a participação dos trabalhadores e empregadores nos órgãos públicos que tratem dos direitos previdenciários e profissionais dos trabalhadores, a participação da comunidade na definição e controle de ações e políticas de saúde através de representantes da sociedade junto aos Conselhos de Saúde, às Conferências de Saúde e em geral nas agências reguladoras.

Saliente-se a gestão do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, prevista no parágrafo único do art. 79, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que dispõe acerca do Conselho Consultivo e seu acompanhamento por meio da participação de representantes da sociedade civil. Ressalte-se, ainda, que a Constituição Federal estabelece formas de participação popular que devem constar nas leis orgânicas municipais, como a cooperação das associações representativas no planejamento municipal e a possibilidade da iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do município, desvelando o viés democrático que a Constituição tenta incutir ao plano institucional brasileiro, retirando do poder público a exclusividade da gestão pública (GIACOBBO, 2014).

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O controle da administração pública municipal pelo cidadão também apresentam-se como possibilidade na participação social em todas as fases da implementação de políticas públicas, quer seja na posição de representante de uma associação de bairro, como conselheiro de algum órgão do município, ou como fiscal de execução daquelas.

Segundo Hermany e Frantz (2009) pode-se destacar também como nova ferramenta de controle social o uso das novas tecnologias da informação pelos governos na prestação de serviços e informações para os cidadãos.  A inovação de instrumentos de gestão, por meio das novas tecnologias da informação e comunicação, proporcionou avanços em termos de participação, transparência, interatividade e cidadania. O meio virtual possibilita uma ampliação da interação entre cidadãos e poder público e visualiza-se através da consecução de seus objetivos: “[...] a implementação de infraestrutura de comunicação de dados; a modernização da gestão administrativa e dos sistemas de informação; a prestação dos serviços públicos; a transparência nas ações governamentais; e a racionalização dos gastos públicos” (HERMANY e FRANTZ, 2009, p. 8083).

Assim, a esfera local potencializa a ideia de participação e controle social e deve produzir um ambiente plural, onde todos participem e fiscalizem as atuações governamentais para que a decisão popular seja considerada. Desse modo, conclui-se que a teoria de Gurvitch desenvolve a ideia de Estado Constitucional Democrático de base pluralista, coadunado com a ideia de Direito Social Condensado, a partir da ampla interação entre Estado e sociedade.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Trad.

Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007.

COSTA, Marli; HERMANY, Ricardo. O empoderamento social local como pressuposto para o exercício da cidadania. In: Reflexões sobre o Poder Local: o mundo da cidade e a cidade do mundo. Santa Cruz do Sul: Editora IPR, 2009.

DRAIBE, Sônia Miriam. As políticas sociais brasileiras: diagnósticos e perspectivas. In:

Para a Década de 90 - Prioridades e Perspectivas de Políticas Públicas. Políticas Sociais e Organização do Trabalho, 4, Brasília: IPEA/IPLAN, 1990.

GIACOBBO, Guilherme Estima. Participação e controle social na gestão municipal no Brasil e em Portugal: uma análise à luz do direito social de Gurvitch. 2014. 126 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Santa Cruz do Sul, 2014.

GURVITCH, Georges. La Idea Del Derecho Social. Noción y Sistema Del Derecho Social.Granada: Comares S.L., 2005.

HERMANY, Ricardo.  (Re)Discutindo o espaço local: Uma abordagem a partir do  direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007.

______; FRANTZ, Diogo. A necessidade de empoderamento social local através do Legislativo municipal na promoção dos direitos de Cidadania. Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. São Paulo, 2009, p. 2461-2484.

______; FRANTZ, Diogo. Modernização da administração pública: o empoderamento social como instrumento de efetivação das audiências públicas. Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. São Paulo, 2009, p. 8069-8099.

MORAIS, José Luis Bolzan. A Ideia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

Sobre o autor
João Deusdete de Carvalho

Advogado e Economista, Procurador Público, Professor Assistente da URCA/CE, Estudou pós-graduação em Direito Processual Civil pela UFPI e, Pós-graduação em Planejamento pela FAO, Estudou Mestrado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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