Sistema processual vigente em face dos resquícios inquisitivos do Código de Processo Penal

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A presente abordagem sobre os vestígios inquisitoriais do Código de Processo Penal demarca inicialmente uma breve análise histórica do processo penal, para que se possa entender, de forma clara, qual o sistema processual vigente no Ordenamento Brasileiro.

O tema em debate tem como finalidade precípua demonstrar os dispositivos do Código de Processo Penal incompatíveis com a realidade constitucional vigente. O referido diploma legal fora elaborado na época em que vivíamos uma realidade inquisitiva, motivo pelo qual tem fortes traços antidemocráticos, incompatíveis com o modelo acusatório adotado pela Constituição Federal.  

O presente artigo tem o escopo de identificar qual o sistema processual penal vigente no atual patamar normativo brasileiro, bem como demonstrar a necessidade de adaptação das normas processuais penais à realidade constitucional, pois não resta dúvida que o advento da carta política de 1988, representou um marco para a modificação do sistema processual adotado no Brasil, rompendo com as interpretações fundadas nos preceitos antidemocráticos, interpretando, integrando e aplicando as normas processuais penais à realidade constitucionalmente imposta.       

Ainda que grande parte da doutrina afirme que nosso sistema é o acusatório, pois a Constituição Federal expressamente separou as funções de acusação, defesa e julgamento; há parte da doutrina que sustenta que o sistema adotado é o inquisitorial, pois em diversos dispositivos legais do Código de Processo Penal, o juiz atua como um verdadeiro juiz inquisidor e parte que defende que nosso sistema é um sistema hibrido ou misto, pois mescla disposições que são embasadas do sistema acusatório e alguns vestígios do sistema inquisitório.

Estabelecendo a celeuma existente sobre o Sistema Processual Penal vigente necessário analisar o papel do juiz na gestão da prova no processo penal a fim de compatibilizar os artigos permissivos dessa atividade instrutória judicial com o comando Constitucional.

Consequentemente trazer a baila os princípios norteadores do processo penal compatíveis com o Estado Democrático de Direito, em especial: o princípio do in dubio pro réu e o princípio da proporcionalidade. Em seguida, confrontar tais princípios com o mito da verdade real, tendo em vista que a busca da verdade a qualquer custo, ampliando o espectro de observação do julgador e conferindo-lhe poderes para produzir provas de ofício, é incompatível com o sistema acusatório.

Assim, imperiosa a análise crítica de alguns dispositivos do Código de Processo Penal, que conferiu poderes instrutórios ao juiz, violando o sistema processual penal acusatório, adotado pela Constituição de 1988.          

Nessa linha de pesquisa, almeja-se contribuir com mais argumentos favoráveis ao sistema estabelecido pela Constituição Federal de 1988, adequando o Código de Processo Penal aos preceitos de nossa Carta Magna, seja através de sua reforma parcial - como vem ocorrendo -, seja através da elaboração de um novo diploma legal.

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1. ABORDAGEM HISTÓRICA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

O nosso Diploma Processual Penal foi promulgado durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas, mais precisamente em 1941. Nesse momento histórico, tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária. Desde a sua promulgação até o período vigente, poucas foram às alterações, gerando assim uma desconformidade imensa com as mudanças sociais e, principalmente com a Constituição. Teve origem em plena época de exceção ao Estado de Direito, sob a égide formal da Constituição de 1937, para atender aos clamores sociais da época, urgindo pela adoção de medidas extremadas de contenção da infiltração comunista.

O Código de Processo Penal sofreu os influxos do Governo de Getúlio Vargas, governo marcado por uma ditadura declarada, onde havia um poder executivo com centralização absoluta e extinção do legislativo, cujas funções passariam a ser exercidas pelo executivo que subordinava os cidadãos com a força das armas.

Assim, o Estado, na figura do Presidente, editava as leis e aplicava-as e os cidadãos eram obrigados a acatar todos os comandos erigidos pelo Governante. Nesse momento político, vigia na Itália o Código de Processo Penal de 1930, conhecido, como código Rocco editado sob a ditadura fascista de Mussolini, com características inquisitivas, na primeira fase, e características garantistas, na segunda fase da persecução penal. Tal Código previa a figura do Juiz inquisidor, isto é, o juiz que julgava era o mesmo que colhiam as provas e essas provas colhidas pelo magistrado eram utilizadas na segunda fase da persecução penal. Vigorava, portanto, um sistema misto, no qual era nítida a presença de duas fases da investigação criminal. A primeira caracterizava-se pela inquisitoriedade (com a consequente falta de igualdade entre as partes), e somente na segunda fase se poderia falar em contraditório, publicidade, oralidade, e demais aspectos de um processo penal acusatório.

Nota-se que na verdade o que deveria ser uma carta de tutela dos direitos e garantias fundamentais, protegendo o cidadão dos exageros estatais, é sim um verdadeiro diploma de persecução criminal a todo e qualquer custo, ainda que para isso, os meios a serem utilizados sejam antigarantistas, pois afinal o que o malfadado processo penal busca obter é uma satisfação de uma sociedade altamente influenciada.

Finalizado os aspectos históricos, no qual influenciaram de maneira veemente o Código de Processo Penal Brasileiro, por isso, a existência em diversos dispositivos do ranço inquisitivo e para reforçar mais ainda a ideia de cunho autoritário presente no diploma repressivo é interessante registrar mais um aspecto claro dessa ideologia autoritária e para isso, basta verificar a estrutura física da divisão dos capítulos, demonstrando claramente a hierarquia de valores que inspiraram o Código. Como decorrência lógica do nascedouro autoritário que possui e que fundamenta largamente sua hermenêutica, os primeiros capítulos do Código dirão respeito à atividade de polícia para, em seguida, colacionar dispositivos referentes à ação penal e, por fim, dispositivos sobre a competência. Os dispositivos referentes aos sujeitos processuais e a atividade jurisdicional são inseridos no código, capítulos depois, denotando que os elementos de caráter administrativo prevalecem aos elementos essenciais que embasam um Estado Democrático de Direitos.

2. SISTEMAS PROCESSUAIS

São conjuntos de regras variantes de país para país, que regulamentam as peculiaridades do processo penal, trazendo elementos estruturais coordenados entre si, de acordo com o contexto político e social de cada lugar. Classificam-se em acusatório, inquisitivo e misto.

2.1. SISTEMA ACUSATÓRIO

No que tange ao Sistema Acusatório, seu aspecto principal diz respeito a expressa separação que faz entre as funções julgar, defender e acusar.

Caberá apenas ao juiz, ao ser provocado, a missão de analisar as provas e conforme seu livre convencimento motivado emitir uma decisão num julgamento baseado no princípio da imparcialidade, posicionando-se entre as partes e acima delas, não lhe restando a possibilidade de qualquer iniciativa de ação.

Dessa forma, no sistema acusatório, o magistrado deixa de reunir em suas mãos as três funções, manifestando-se, apenas, quando devidamente provocado, garantindo-se, desse modo, a imparcialidade do julgador, última razão do processo acusatório.

Também conduz a uma maior tranquilidade social, pois evita-se eventuais abusos da prepotência estatal que se pode manifestar na figura do “juiz apaixonado” pelo resultado de sua labor investigadora e que, ao sentenciar, olvida-se dos princípios básicos de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o início da investigação. (RODRIGUES, 2013)

Em assim sendo, cabendo ao juiz o dever de julgar, apenas as partes serão incumbidas das funções de acusação e defesa, dentro de um sistema de proteção das garantias processuais assegurando que o réu deixe de ser objeto para se transformar em sujeito de direitos.

Podemos confirmar tais informações através da palavras de Nucci (2010, p.16) ao tratar sobre o sistema acusatório:

Possui nítida separação entre o órgão acusador e o julgador; há liberdade de acusação, reconhecido o direito ao ofendido e a qualquer cidadão; predomina a liberdade de defesa e a isonomia entre as partes no processo; vigora a publicidade do procedimento; o contraditório está presente; existe a possibilidade de recusa do julgador; há livre sistema de produção de provas; predomina maior participação popular na justiça penal e a liberdade do réu é a regra.

Conforme veremos a seguir, é o Sistema adotado pela Constituição Federal, no entanto, apesar da Lei Maior expressamente adotar esse posicionamento, a doutrina diverge quanto ao sistema fundante do Código de Processo Penal.

2.2. SISTEMA MISTO

O Sistema misto nada mais é do um meio termo entre os dois sistemas: acusatório e misto. Esse sistema subdivide-se em duas fases:

A primeira fase é denominada instrutória e rege-se pelos regramentos inquisitoriais, ou seja, os poderes concentram-se nas mãos do juiz, não há publicidade, presunção de inocência, ampla defesa ou contraditório.  A segunda fase é a contraditória, através da qual temos o processo propriamente dito e torna-se admissível o exercício do direito de defesa, com todas as suas garantias, conforme palavras de (Demercian e Maluly, 2014,p.27).

2.3. SISTEMA INQUISITIVO

O sistema inquisitório tem como elemento fundante a concentração das funções de acusar, defender e julgar, nas mãos de um único sujeito: o inquisidor. Justamente em virtude desta concentração de poderes é que o referido sistema, historicamente, esteve associado a estruturas políticas igualmente centralizadas, como, por exemplo, nos diversos Estados absolutistas.

Nesse sistema, em virtude da centralização de poderes nas mãos de uma única pessoa, fica clara a impossibilidade de se chegar a um julgamento imparcial. O acusado não possui garantias processuais, seu direito a defesa é totalmente mitigado ou inexistente. Não há presunção de inocência, nem publicidade dos atos processuais. “Por suas características, não é difícil inferir que o acusado é, na verdade, objeto do processo (e não sujeito de direitos) e não tem como consequência a proteção de qualquer garantia substancial.” (Demercian e Maluly, 2014, p.27)

Podemos perceber que tudo no sistema inquisitorial funciona ao reverso das garantias de um devido processo legal. O sujeito é desde logo considerado culpado e condenado, antes mesmo de ser julgado e seu direito a defesa é constantemente cerceado.

2.4. SISTEMA PROCESSUAL VIGENTE

Ainda que grande parte da doutrina afirme que nosso sistema é o acusatório, pois a Constituição Federal expressamente separou as funções de acusação, defesa e julgamento; há parte da doutrina que sustenta que o sistema adotado é o inquisitorial, pois em diversos dispositivos legais do Código de Processo Penal, o juiz atua como um verdadeiro juiz inquisidor e parte que defende que nosso sistema é um sistema hibrido ou misto, pois mescla disposições que são embasadas do sistema acusatório e alguns vestígios do sistema inquisitório.

Em que pese as divergências doutrinárias a respeito do sistema processual adotado pelo ordenamento jurídico vigente, a Constituição Federal de 1988 demonstra a adoção do sistema acusatório ao prever garantias processuais fundamentais como contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e publicidade dos atos, bem como quando atribui ao Ministério Público, no artigo 129, I, a competência privativa para propor a ação penal pública, separando nitidamente as funções de acusar e julgar.

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A celeuma gira em torno dos poderes instrutórios conferidos ao Juiz, como por exemplo, a possibilidade atribuída pelo artigo 156, do Código de Processo Penal, permitindo ao magistrado a colheita de prova de ofício, ainda durante a fase preliminar de investigação, violando nitidamente a imparcialidade do julgador e o sistema acusatório conferido pela Carta Magno de 1988, senão vejamos:

A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I- ordenar, mesmo antes de iniciada a Ação Penal, a produção de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

Embora doutrinária majoritária advogue no sentido de ser o sistema acusatório o adotado pelo ordenamento jurídico vigente, uma parte da doutrina entende que o sistema processual penal adotado pelo Brasil seja o misto, tendo em vista resquícios inquisitivos contidos no bojo do Código de Processo Penal, conforme prenuncia Souzza Netto (2003) ao verificar a autonomia do magistrado em poder determinar, ex officio, a produção de provas, requisitar a instauração do inquérito policial, decretar de ofício sejam os bens do réu sequestrados e decretar a prisão preventiva.

Conforme (NUCCI, 2008) a adoção de um sistema processual depende do campo de observação do interprete, ou seja, observando apenas o enfoque puramente constitucional pode-se afirmar que o sistema processual penal é genuinamente acusatório. Tendo como ponto de partida o Código de Processo Penal, teremos um novo enfoque, pois a maioria de seus dispositivos foram elaborados sob uma clara perspectiva inquisitiva.

2.5. PAPEL DO JUIZ NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL

De acordo com os ditames do Código de Processo Penal, é possível que o magistrado determine de ofício a produção de provas, ainda na fase preliminar de investigação. Dispositivos desse viés que autorizam a iniciativa instrutória pelo julgador são incompatíveis com o sistema acusatório, tendo em vista o núcleo fundante que o norteia, qual seja: separação absoluta das funções de acusar, defender e julgar. Juiz gestor de provas é Juiz parcial, condição impensável em um processo penal acusatório.

Em que pese a corrente que inadmite de forma irrestrita a atividade instrutória do julgador, há na recente doutrina processual penal, quem defenda o cabimento dos poderes instrutórios do juiz, de maneira limitada ou subsidiária sob o argumento de que a iniciativa instrutória não afrontaria a princípio da imparcialidade, uma vez que a prova buscada pelo magistrado poderia server tanto para a acusação quanto para a defesa. Argumentam ainda que os poderes instrutórios do juiz seriam justificados pelo interesse público envolvido nas demandas penais, o que possibilita ao magistrado não se convencer com manancial probatório produzido pelas partes em ir em busca de uma prova que mais se assemelha a verdade que realmente oorreu. Para os defensores dessa tese o processo penal não pode sofrer a desídia das parte, tornando-se raquítico, ineficiente.

A doutrina garantista combate veemente a iniciativa instrutória do julgador utilizando como argumento o ranço inquisitivo ainda presente no Código de Processo Penal, bem como a máxima do Estado Democrático de Direitos, ou seja, se o Juiz não está convencido com o manancial probatório produzido pelas partes, a solução imperativa seria a absolvição do réu e não a determinação de produção de provas de ofício, de sorte que tal conduta atentaria contra a imparcialidade, criando um desequilíbrio entre as partes.

Percebe-se que a problemática atinente aos poderes instrutórios do juiz está diretamente relacionada aos princípios norteadores do processo penal compatíveis com o Estado Democrático de Direito, em especial: o princípio do in dúbio pro réu e o princípio da proporcionalidade. Esses princípios colidem com o mito da verdade real, tendo em vista que a busca da verdade a qualquer custo, ampliando o espectro de observação do julgador e conferindo-lhe poderes para produzir provas de ofício é incompatível com o sistema acusatório.

3. PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROCESSO PENAL

Princípio norteador do processo penal é a expressão utilizada pela maioria da doutrina para designar o princípio informador do sistema. Destarte, a atribuição de tal qualificação a um ordenamento exige a rigorosa observância dos valores que fomentaram a elaboração do estatuto. O núcleo fundante do diploma penal, à qual, por consequência, devem se dirigir os princípios informadores, são as limitações impostas aos sujeitos processuais.

Assim, sendo o Estado um ente politico hierarquicamente superior em face do acusado é primordial que lhes sejam ofertados direitos e garantias a fim de equilibrar as forças existentes na relação processual. Dentre os direitos e garantias conferidos ao acusado estão os princípios do in dubio pro réu e o principio da proporcionalidade e como contraponto a esses direitos, para equilibrar o direito penal e não torná-lo ineficaz em sua essência, está o principio da verdade real.

3.1. PRINCÍPIO DO IN DÚBIO PRO REO

Considerando a segunda acepção da presunção de inocência que se refere a regra do ônus probatório, referido princípio impõe a absolvição se o magistrado não estiver convencido da culpabilidade do acusado, em outras palavras, o princípio in dúbio pro reo, oriundo do princípio da presunção de inocência expressa que, na dúvida, deve o juiz absolver o acusado. Como ensina Aury Lopes Jr., o fato de o imputado ser presumidamente inocente faz com que ele seja desincumbido da obrigação de provar, uma vez que a referida presunção “deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução”.

No processo penal, o ônus de prova é de quem alegar, ou seja se o Ministério Público atribui a alguém a autoria de um crime, deve provar o que alegou, com todas as suas circunstâncias. Não cabe ao parquet provar apenas a autoria e materialidade, como também deve provar que o acusado não agiu acobertado das excludentes de ilicitude e culpabilidade. Em outras palavras, a carga probatória está inteiramente nas mãos do acusador. Se a acusação não logrou convencer o órgão jurisdicional de que o acusado praticou uma infração penal (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), o benefício da dúvida ensejará na absolvição do acusado e não diligenciar na obtenção de novas provas, pois se o magistrado assim agir, estará em busca de provas para condenar, haja vista que, para a absolvição, não há a necessidade de qualquer prova. Assim, tendo em vista as garantias constitucionais asseguradas ao imputado, como a presunção da inocência e o princípio do in dubio pro reo, mostra-se inconcebível admitir a iniciativa probatória judicial.

3.2. PRINCÍPIO DA VERDADE REAL

O princípio da verdade real assegura que o juiz não deverá se satisfazer com meras ilações deduzidas pelas partes, isto é não deve se contentar com a verdade trazida pelas partes no processo penal.

Em homenagem a esse princípio, o julgador sai da posição de expectador inerte da produção da prova para uma posição mais atuante na seara penal, conferindo-lhe o ônus de determinar diligências ex officio, sempre que necessário para esclarecer ponto relevante do processo. Em outras palavras, a verdade real é a busca que o Juiz pode fazer de oficio na obtenção de provas, a fim de se aproximar do que realmente ocorreu no mundo dos fatos.

Em que pese à existência do princípio da verdade real no processo penal, essa busca incessante por uma verdade, que nem mesmo as partes atuantes do fato criminoso consegue descrevê-la, além de ser um mito, não se coaduna com o princípio acusatório estabelecido na Constituição Federal, uma vez que, atribuir ao juiz o dever de buscar provas, em homenagem a verdade real, dá ao juiz uma atribuição que não lhe cabe que é a de acusar. Além de violar o princípio acusatório é incompatível com o princípio do in dubio pro reo, pois como visto em linhas acima, o manancial probatório produzido pela parte acusadora, se restar insuficiente, impõe a absolvição e não a busca desenfreada por uma verdade, que muitas vezes, será inatingível.

3.3. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da proporcionalidade é considerado como um postulado que tem o condão de limitar o alcance da norma, bem como de efetivar os direitos e garantias fundamentais. Em linhas gerais, constitui uma vertente do princípio da razoabilidade, isto é, no momento de aplicação da lei ao caso concreto, deve o julgador observar referido princípio a fim de proferir uma decisão mais justa.

O presente artigo almeja avaliar se os artigos com ranço inquisitivo contidos no Código de Processo Penal são constitucionais ou se são eivados de inconstitucionalidade, tendo como parâmetro o princípio da proporcionalidade, sobretudo no tocante a iniciativa probatória conferida ao magistrado.

Há quem diga que a iniciativa probatória do Juiz coloca em discussão a constitucionalidade da atitude legislativa tendo em conta o desrespeito aos primados de justiça resguardados pelo Estado Democrático de Direito em não afrontar descomedidamente os princípios basilares da Constituição Federal, em especial: o princípio da imparcialidade, acusatório e in dubio pro reo.

Ademais, conferir ao magistrado uma postura atuante no processo penal contrariaria as diretrizes informadoras da Carta Política de 1988, as quais são propostas pelo Direito Penal mínimo, pois tal conduta acumularia nas mãos do julgador uma dupla função: acusar e julgar. E como já dito em linhas acima, a função de acusar cabe tão somente ao órgão acusatório.

O princípio da proporcionalidade, sob o enfoque de limitação do alcance da norma, serviria como um parâmetro para conter a atividade do interprete, ou seja, mesmo existindo a autorização no Código de Processo Penal para a busca de provas pelo Juiz, tal permissão deveria ser freada pelo princípio da proporcionalidade, já que vivemos em uma outra época, diferente do momento em que o código foi elaborado. Nesta época, iluminada por fortes características autoritárias, a atividade atuante do julgador era necessária para controlar os abusos existentes. Atualmente, sob a égide do Estado Democrático de Direitos, uma postura atuante do julgador é desproporcional por ferir diversos princípios constitucionais.

4. ASPECTO INQUISITORIAL DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

O ponto crucial do presente artigo concentra-se neste capítulo, por meio do qual se fará uma análise dos artigos 21, 156 e 242 ambos do Código de Processo Penal, com o objetivo de demostrar que os referidos comandos apresentam um caráter inquisitorial. Além destes dispositivos, o diploma legislativo contém, ainda, outros artigos, que, autorizando o juiz a proceder a diligências probatórias sem provocação das partes, a reiteram, tais como os artigos 168, 196, 209 e 234.

4.1. ARTIGO 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

O artigo 156, que, em sua redação originária, dispunha: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução, ou antes, de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”, viola indubitavelmente o princípio do in dubio pro reo, tendo em conta que o elemento fundante que diferencia um sistema do outro é a gestão da prova, logo nota-se que dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios, como o art. 156 do Código de Processo Penal, externam a adoção do princípio inquisitivo, que alicerça um sistema inquisitório, pois colidem com a estrutura dialética estabelecida na Constituição Federal e seus diversos princípios embasadores.

O artigo 156, do Código do Processo Penal, apresenta aspectos inquisitivos, conforme entendimento de Paulo Rangel, sendo que é conferido ao Juiz a atribuição de acusador, esvaziando o seu papel de supra partes para procurar aquilo que acha que é verdade, ou que ele quer que seja verdade (2010, p.10). Argumenta ainda Paulo Rangel, ao falar do inciso II do referido artigo, defendendo que se trata da consagração clara do princípio da verdade processual, fruto do sistema inquisitivo, pois exatamente visando à descoberta (ou a reconstrução) do fato cometido é que o juiz age ex officio, de modo a dirimir dúvida sobre ponto relevante.” (2010, p. 11).

Assim, ao contrário do que se afirma majoritariamente, o princípio inquisitivo não se encontra presente somente na primeira etapa do processo penal brasileiro, mas também em sua fase processual, porquanto, não obstante a aparição de alguns princípios acusatórios, como: contraditório, ampla defesa e publicidade, a gestão da prova está nas mãos do juiz, violando o princípio da imparcialidade, pois juiz que colhe provas é juiz contaminado, o que por si só é suficiente para que se considere que o sistema estruturado pelo Código de Processo Penal vigente é, em sua essência, inquisitório.

4.2. ARTIGO 242 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Conforme disposição do artigo 242, do Código de Processo Penal, a busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes.

 A busca e apreensão é considerada meio de prova e medida de cautelar, conforme entendimento majoritário. A busca e a apreensão é a atividade desencadeada pelos agentes da investigação criminal com o objetivo de procurar alguma coisa ou alguém para aprendê-la.

Para Souza Nucci a respeito do referido artigo: “Não deve, no entanto, o juiz exceder-se na avaliação da prova, antecipando julgamentos e buscando culpados a qualquer custo”. Somente se a diligência se mostrar imprescindível à formação do seu convencimento, não tendo havido requerimento das partes, pode o julgador intervir, determinando seja feita a busca, fazendo-o de modo fundamentado (2008, p.526).

Assim sendo, o magistrado está autorizado a atuar de ofício, mesmo antes da demanda chegar a ser um processo penal, conforme estabelecido no artigo 242, do Código de Processo Penal, o que para alguns é uma atuação típica do modelo inquisitório. A sua busca pela verdade distorceria a separação entre as funções, elemento caracterizador do sistema acusatório, e o julgador, que deveria se restringir a sua função precípua de julgar, com base no apresentado no processo, passa a acumular funções, no âmago de buscar e apreender algo ou alguém que ele nem sabe se existe. Segundo Tourinho Filho foram atribuídos poderes exclusivos das partes ao juiz que deveria se limitar a recolher as provas apresentadas e julgar.

Giovanni Conso, ao examinar o sistema acusatório, entre outros aspectos, frisa a necessidade de exclusão da iniciativa judicial no recolhimento das provas, a fim de não comprometer a imparcialidade judicial. Percebe-se que o Juiz ao tomar a iniciativa da produção de determinada prova, assim age objetivando uma condenação, pois se sua finalidade fosse à absolvição do acusado, não teria sentido a sua atuação de ofício para a colheita de provas. Ademais, no campo da ação penal pública, dispomos de um Ministério Público bem preparado para atuar a contento, sem a necessidade do auxílio do juiz.

Na verdade, ex officio significa aquilo que se faz por ofício, isto é, aquilo que é feito em virtude da função ou cargo. Não é o ofício do juiz buscar provas, pois essa incumbência é atribuição das partes. Quando o juiz julga, aí sim, ele atua de ofício, pois este é o seu ofício.

4.3. ARTIGO 21 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Conforme preceitua o artigo 21 do diploma processual penal a incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir. Esse artigo enseja diversas discussões na doutrina, mas prevalece que ele não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois nem mesmo na vigência do Estado de Defesa, instante em que inúmeras garantias individuais estão suspensas, não existe a previsão da incomunicabilidade do preso (art., 136, §3, IV CF). Assim, se não se justifica a incomunicabilidade num Estado anormal, digo Estado de Defesa, no mesmo sentido, não se justifica a restrição da comunicação do indiciado num estado de normalidade, onde todos os direitos e garantias devem ser assegurados.

Em que pese doutrina minoritária com entendimento diverso do explanado, esse artigo, demonstra claramente, o aspecto inquisitivo do Código de Processo Penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Código de Processo Penal de 1941, mesmo com as reformas realizadas no ano de 2008, contém em seu bojo um arsenal de dispositivos inquisitivos. A característica marcante que gera divergências na doutrina acerca do sistema processual adotado pelo ordenamento jurídico vigente é principalmente a possibilidade conferida ao juiz de produzir provas na fase inquisitorial e na fase processual afrontando de forma direta a sua imparcialidade.

Registre-se que a referência feita aos dispositivos 156 e 242 do Código de Processo Penal decorre de um exame superficial da nossa lei processual básica, objetivando demonstrar, tão-somente, diversos resquícios de inquisitorialismo, apesar da expressão adoção da Constituição Federal de 1988, pelo sistema acusatório.

Com base nessa perspectiva, esses dispositivos processuais penais, nitidamente inquisitoriais, não mais poderão conviver, de forma clandestina, em nosso ordenamento jurídico, uma vez que não são recepcionados pela nossa Lei Maior. Tendo em vista que referidos dispositivos continuam sendo aceitos de forma tranquila por parcela da doutrina e até mesmo pelo Tribunais Superiores, almeja-se com o presente artigo defender uma reforma processual penal geral já que grande parte do Código de Processo Penal não se coaduna com os princípios acusatórios radiantes da Constituição Federal. Só assim alcançaremos um sistema processual penal genuinamente acusatório, sem a influência inquisitória herdada do período ditatorial.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas Processuais Penais e seus Princípios Reitores. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

BARROS, Marcos Antônio de. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2010.

JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense,2007.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,2009

NETTO, José Laurindo Souza. Processo Penal – Sistema e Princípio.Curitiba:Juruá, 2003.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5 ed. São Paulo, 2008.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.

PELLEGRINI GRINOVER, Ada. A iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política e Criminal e Penitenciária. Brasília, v. 1, n. 18, jan/jul. de 2005.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17. ed.Rio de Janeiro: Lúmen Júris,2010.

TAVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 11 ed. Rio de Janeiro: Juspodivm, 2016.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 31. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2009.

ZANOIDE MORAES, Maurício. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.

http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2087508/juiz-que-investiga-nao-pode-julgar-stjsuspende-a-acao-penal-no-caso-castelo-de-areia. 

Sobre a autora
Taiana Levinne Carneiro Cordeiro

Advogada criminalista, professora de penal e processo penal da faculdade de Ilhéus/BA, professora de cursinho preparatório para concurso, especialista em processo penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Esse texto foi elaborado com o objetivo de demonstrar os resquícios inquisitivos do CPP, demonstrando o seu descompasso face ao sistema acuisatório adotado pela Constituição Federal. Logo, não há como negar que o encontro das duas faces (Constituição e CPP) resultou na natureza hibrida que vivenciamos hoje. Por isso, a proposta do referido artigo é interpretar o CPP à luz da CF ou reforma geral do presente estatuto.

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