Caminha-se para a eleição do novo inimigo[1] — reitere-se que as construções e desconstruções dos inimigos são, lamentavelmente, um eterno devir do sistema penal —, desta vez, pretende-se atacar não o criminoso (sujeito que sofre o processo de criminalização), mas, sim, aqueles que cumprem o mister de assegurar as garantias do devido processo legal, tarefa essa que, em tese, deveria ser uma imposição a todos os personagens da Justiça.
Progressivamente, se busca incutir no senso comum a triste e nefasta ideia da torpeza e fragilidade moral daqueles que labutam em prol da defesa dos cidadãos — inocentes ou culpados. Faz parte do artificioso engenho de controle a todo custo: demonizar a advocacia.
Não bastassem as baboseiras proferidas em tom aviltante, tal qual a injusta afirmação de que “advogados só acordam às 11 horas da manhã” [2], as garantias profissionais são diuturnamente violadas, em um evidente ensaio da criminalização do exercício da advocacia. Quiçá pretenda-se a Justiça tupiniquim metamorfosear a função do advogado em simples colaborador... Talvez, na visão míope dos violadores dos direitos humanos de plantão, o bom advogado não é mais aquele enérgico, altivo, corajoso... Para eles, bom advogado é quem se curva, quem se apequena.
Faz sentido.
Talvez o sistema penal tenha notado que não há meio mais eficiente e adequado para atender o völkisch (populismo, sobretudo o midiático) senão o combate direto àqueles que resguardam e, ao fim e ao cabo, representam o último bastião da dignidade dos dissidentes/indesejáveis. Não que seja esse o espírito do julgado decidido pela Corte Europeia de Direitos Humanos. De toda sorte, os argumentos ali invocados representam (ainda que não ditos expressamente — pois os discursos contra os inimigos podem ser escamoteados) essa onda — pelo visto mundial — da execração das garantias (sempre em nome da famigerada e perigosa tese da defesa social e seus corolários — a ordem pública e o discurso do medo/ódio).
No dia 16 de junho, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) publicou o veredicto do caso Versini-Campinchi e Crasnianski vs. França, em que se concluiu não existir violação do direito à vida privada, ao se interceptar conversa telefônica entre advogado e cliente. Resumidamente, tratou-se de interceptação autorizada pela Justiça francesa para investigação de um suposto crime de violação de embargo (início do século 21). Ocorre que, no âmbito dessa interceptação, colheram-se elementos outros que demonstravam possíveis atos ilícitos dos advogados dos então investigados. Assim, as conversas entre os investigados e advogados foram transcritas e utilizadas, inclusive, em procedimento disciplinar na Ordem dos Advogados de Paris.
Final dos tempos...
O pedido de interceptação originário (com o fito de investigar suposto crime de desrespeito à norma de embargo) parece e certamente foi legítimo/legal. Por outro lado, revela-se indevida a utilização de conversas entre advogados e clientes para servir de lastro probatório contra os sujeitos processuais responsáveis pela defesa dos interesses dos investigados. Ao que exsurge, prevalece mais uma vez a lógica do eficientismo, do desrespeito aos direitos fundamentais em nome de uma pretensa e inexistente proporcionalidade.
A principal tese invocada pela corte europeia foi a legalidade da interceptação, pois que proporcional e tendente a alcançar um objetivo pretensamente legítimo. O decisum se estrutura sob quatro pilares: proporcionalidade, prevenção da desordem, necessidade da medida diante de uma sociedade democrática, não prejuízo ao direito de defesa. Como se percebe, a vagueza dos conceitos acima mencionados denota a própria arbitrariedade da medida.
Mais uma vez, se apela para termos genéricos e abstratos, a fim de conferir alguma legitimidade às constantes violações aos direitos e garantias fundamentais. Alegou-se a proporcionalidade da medida. Demais disso, a afronta à vida privada foi justificada sob o pálio de que objetivara alcançar um objetivo legítimo — a prevenção da desordem. O que é desordem? O que é prevenção da desordem?
Rememore-se o conceito do direito à privacidade. Segundo Paulo Gustavo Gonet Branco:
“O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público”[3].
Curiosamente, na mesma obra, o constitucionalista traz à baila entendimento da lavra da mesma Corte Europeia de Direitos Humanos:
“A propósito, um antigo presidente da Corte Europeia de Direitos Humanos apontou que, na expressão, estaria abarcada a proteção contra ‘ataques à integridade física, moral e sobre a liberdade intelectual e moral [do indivíduo] e contra o uso impróprio do nome e da imagem de alguém, contra atividades de espionagem ou de controle ou de perturbação da tranquilidade da pessoa e contra a divulgação de informações cobertas pelo segredo profissional’”[4].
A premissa olvidada no caso Versini-Campinchi e Crasnianski vs. França é patente: o advogado é, antes de tudo, cidadão. A hipótese aqui levantada é a tentativa, ainda que indireta, de tentar-se retirar tal condição desses profissionais, assim legitimando o abuso.
Outro ponto trazido no julgado e que justificaria o injustificável seria o não prejuízo ao direito de defesa (aliás, a suposta ausência de prejuízo para a defesa virou uma espécie de licença, de salvo conduto, para qualquer arbitrariedade processual). É dizer, trata-se aqui de, uma vez mais, construir no imaginário coletivo a seguinte percepção: “Estar-se a violar direitos fundamentais, mas tal fato não acarretará maiores prejuízos”. De fato. É possível que no caso concreto não se demonstre prejuízo considerável, contudo, quando se viola tal garantia a projeção dessa afronta é o que há de mais perigoso e danoso ao Regime Democrático de Direito. Muito mais que o caso concreto, o que se macula é a observância futura dos direitos fundamentais.
A (má) utilização do conceito de proporcionalidade se revela como um dos principais instrumentos no (neo)processo de aviltamento dos direitos fundamentais. O critério da razoabilidade — que deveria vincular o legislador materialmente aos direitos fundamentais[5] — é invocado reiteradas vezes com o propósito de justificar, até mesmo, desrespeito às normas legais e constitucionais. De proteção às garantias fundamentais, o discurso do medo e da defesa social fez com que a proporcionalidade se transformasse primordialmente em elemento motriz do processo de deturpação Constitucional.
Relembre-se o que se fez com o professor e advogado Juarez Cirino dos Santos. Um dos maiores expoentes do Direito brasileiro foi barrado quando tentava ter acesso a um assistido, que se encontrava preso na Polícia Federal de Curitiba[6]. Repise-se: quando se esgotam as afrontas às garantias fundamentais do inimigo, necessário continuar o processo de “eliminação” destes. Nada mais “eficiente” — para não perder de vista a palavra da moda — que maltratar e desrespeitar aquele que se presta a representar o malvado, o vil, o perverso...
Recentemente, causou perplexidade o grampo levado a cabo em escritório de advocacia[7]. Conversas de todos os advogados que compõem a banca foram grampeadas. Ou seja: escancarou-se, definitivamente, o vale tudo processual.
E quem grita em defesa dos que defendem?
O que há de comum entre o julgamento proferido pela corte europeia e o citado grampo no escritório de advocacia é o ideal projetado na sociedade, fundamentalmente, no bojo do fenômeno do populismo midiático. É dizer, as arbitrariedades e abusos são justificados a partir da lógica do eficientismo. A ponderação transformou-se na balança das ilegalidades, como se a proporcionalidade servisse aos déspotas. O utilitarismo — no sentido vulgar do termo — serve de amparo às escutas ilegais, afinal, como deixar de lado, como desprezar elementos que comprovam a existência do ilícito. É o Estado policialesco — para nos valermos de outra expressão utilizada pelo mestre Zaffaroni — a optar pela deturpação da Constituição em detrimento das garantias fundamentais.
Volta-se agora para o início deste ensaio: o grande problema, que a sociedade certamente não se deu conta, é que a escolha dos inimigos não se perpetua, e tão logo se transformem e transmudem os interesses, novos inimigos-indesejáveis iniciam o caminho angustiante das perseguições e ultrajes.
Se a consciência acerca da necessidade de preservação do minimum minimorum dos direitos fundamentais não encontra guarida na pós-modernidade eficientista, que ao menos o medo do amanhã (novas eleições dos inimigos) faça com que as moribundas garantias se revigorem no sistema penal. Os inimigos de hoje — advogados grampeados — podem e certamente serão as vozes dos futuros inimigos, pois, se há certeza da mutabilidade dos desprezados, há ainda mais certeza da permanência dos inconformados — que gostemos ou não — são imprescindíveis para um mundo que se pretende civilizado.
Notas
[1] Este escrito tem como base principal a obra O Inimigo no Direito Penal, da lavra de Eugenio Raul Zaffaroni, a quem, humildemente, se dedica este artigo, por toda clarividência ao perceber o processo de escolha do inimigo, bem como as mais diversas justificativas para impor um sistema criminal seletivo e desproporcional.
[2] http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/05/14/advogado-acorda-la-pelas-11h-diz-joaquim-barbosa-em-tom-de-piada.htm
[3] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 315.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 317.
[5] MARTINS, Leonardo. Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional. DIMOULIS, Dimitri (coord). São Paulo: Saraiva 2007, p. 305.
[6] http://oglobo.globo.com/brasil/advogado-de-dirceu-barrado-no-acesso-da-carceragem-da-policia-federal-de-curitiba-17096675
[7] http://www.conjur.com.br/2016-mar-17/25-advogados-escritorio-defende-lula-foram-grampeados