Concessão de HC de ofício ainda é legal no ordenamento jurídico brasileiro

07/07/2016 às 18:55
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Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo no sábado (2/7), intitulado Medalha de ouro para o Habeas Corpus, os procuradores da República Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos apresentam ásperas (e absolutamente infundadas) críticas à decisão liminar do ministro Dias Toffoli, proferida na Reclamação 24.506, que concedeu Habeas Corpus de ofício em favor de Paulo Bernardo Silva, determinando a revogação da prisão preventiva que fora decretada pelo juízo da 6ª Vara Criminal da Seção Judiciária de São Paulo.

Apresentam, sem muito cuidado com a precisão técnica de seus argumentos, três fundamentos pelos quais entendem ser equivocada a decisão do ministro Dias Toffoli: (1) houve supressão de instância, eis que o Habeas Corpus deveria ser impetrado ao TRF-3 e, “se o tribunal mantivesse a prisão, caberia, ainda segundo o texto constitucional, recurso em única e última instância ao STJ”; (2) o fundamento da reclamação ajuizada perante o STF, na visão dos articulistas, estaria em desacordo com o que fora decidido pela própria suprema corte, que “cindiu as investigações do casal [Paulo Bernardo e Gleisi Hoffmann], mantendo na corte suprema apenas o inquérito da senadora, com o envio da investigação contra Paulo Bernardo, que não tem foro privilegiado, para a primeira instância de São Paulo”; (3) a decisão teria sido proferida “em apenas dois dias”, “sem oitiva do procurador-geral da República”, sendo que “o mesmo ministro leva em média 29 dias para analisar pedidos liminares”.

Pois bem. É impressionante a forma (avassaladora) com que se passou a conduzir as investigações no Brasil. Obviamente, todos somos contra a corrupção e esperamos ver malfeitos investigados, mas o processo penal deve ser respeitado. A bem da verdade, não houve substanciais alterações quanto à qualidade dos elementos de informação colhidos ao longo dos diversos modelos de procedimentos preliminares. Entretanto, houve uma relevante alteração na postura dos órgãos responsáveis pela persecução penal: passou-se a buscar o eficientismo a qualquer custo, ainda que em desrespeito frontal às regras constitucionais ou ainda que em detrimento da observância de regras e princípios do ordenamento jurídico.

Antes de se replicar o texto, desconstruindo a argumentação exposta, deve-se dizer que, na escalada da destruição do processo penal, há três pedras de toque, verdadeiras “joias da coroa”, que pretendem ser fulminadas por muitos membros do Ministério Público. Digo isso por serem constantes das inconstitucionais dez medidas anticorrupção (saiba, leitor, que não são dez medidas anticorrupção, são dez medidas de processo penal). As três bolas da vez são: a teoria geral das nulidades, os recursos e o vergonhoso tratamento dispensado à ação de Habeas Corpus.

Desgraçadamente, concessão de medida liminar em Habeas Corpus, no Brasil, parece ter sido guindada ao status de fato típico, de fato criminoso, tal é a comoção que esse tipo de decisão tem gerado, sempre acompanhada de ácidas críticas, como aconteceu no caso da decisão do ministro Dias Toffoli, ou na decisão de desembargador federal do TRF-2, que concedeu liminar para sustar a prisão processual em procedimento investigatório que dura três anos — substituindo, “somente” por oito medidas cautelares diversas da prisão.

Dessa forma, sem que se imputem irregularidades a ninguém — não é, decididamente, o propósito deste texto —, começaram a ser utilizados métodos não muito republicanos, parafraseando os próprios articulistas, principalmente com a vulgarização de prisões processuais (até prisão temporária decretada de oficio já existiu, sem reclamação de qualquer fiscal da lei, até onde se sabe), acordos de delação premiada em franco desrespeito à simples e mera literalidade da lei de regência, bem como vazamentos seletivos e descontextualizados de informação, possibilitando a equivocada construção de imaginários no consciente coletivo, pois, afinal de contas, é necessário contar com o apoio da opinião pública para legitimar as ilegalidades. E não seria um “triplo twist carpado” pedir, à míngua de regulamentação legal específica percentual das delações premiadas e das leniências (“singelo” valor de R$ 170 milhões) para as agências de fiscalização?

Com as devidas e necessárias licenças, uma dessas estratégias está bem nítida no texto em análise: em tom inexplicavelmente irônico, impróprio, data venia, reduzindo a complexidade da discussão, recortam-se os fatos, expondo somente aqueles que supostamente amparam a linha de argumentação por eles adotada.

Assim, empregam-se “chavões” há muito repudiados pelo senso comum, sem nenhum esforço crítico, consubstanciados nas ideias de “supressão de instância” ou “foro privilegiado”, tentando estabelecer um absurdo paralelo com as mazelas processuais sofridas pelas “pessoas comuns”, como se as violações a direitos fundamentais constantemente presenciadas nos foros criminais pudessem legitimar outras tantas afrontas a garantias constitucionais. Cria-se um odioso maniqueísmo no processo penal, como se houvesse castas e, paradoxalmente, em vez de se lutar pelas garantias fundamentais para quem não as vê respeitadas, usa-se o desrespeito, a ilegalidade, como um pseudofundamento a pretensamente justificar novas ilegalidades. Pronto: ligou-se o triturador de garantias fundamentais[1]...

Após uma infeliz e ofensiva comparação, os articulistas tentam criar a impressão de que a decisão do ministro Dias Toffoli, no sentido de conceder Habeas Corpus de ofício, seria juridicamente inviável, pois haveria supressão da competência do TRF-3. E, de modo ainda mais grave, invocando (com reducionismo injustificado) os dados de uma pesquisa formulada pela Fundação Getúlio Vargas, ao afirmarem que o ministro teria concedido a liminar em dois dias (quando, segundo os dados expostos pelos articulistas, o julgador demora em média 29 dias para uma decisão liminar), sem ouvir o procurador-geral da República (aviso aos navegantes: liminares são concedidas sem ouvir quem quer que seja, por isso são precárias).

Ora, não houve cuidado em deixar claro que se tratava de reclamação legitimamente ajuizada pela defesa do investigado Paulo Bernardo, com arrimo no artigo 102, I, “l”, da CRFB/88, cujos fundamentos mereceriam uma análise muito mais cuidadosa, desapaixonada. Por exemplo, mesmo que se desconsiderasse a hipótese de continência ou conexão, ainda se poderia questionar a possibilidade de um juiz federal decretar busca e apreensão em apartamento funcional de uma senadora da República. A questão, inclusive, foi objeto de reclamação constitucional ao STF e representação formulada perante o CNJ (veja aqui).

É dizer, não houve impetração de Habeas Corpus originário ao Supremo Tribunal Federal. Ocorre que, conforme determina o artigo 652, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal (goste-se ou não, dispositivo que não foi revogado, nem declarado inconstitucional, permanecendo válido no ordenamento jurídico), “os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de Habeas Corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal”.

Assim, no bojo da reclamação constitucional, cuja competência para processamento e julgamento é originária do Supremo Tribunal Federal, indiscutivelmente, tendo verificado que o reclamante sofria coação ilegal na sua liberdade ambulatorial, caracterizada pela prisão preventiva sem fundamento legal, o ministro relator concedeu Habeas Corpus de ofício. Qual a ilegalidade nessa providência? Deveria o julgador, mesmo ciente da ilegalidade da prisão preventiva, tendo elementos suficientes para decidir, ignorar essa questão, fazer uma cegueira deliberada interpretativa? (Estão tentando criar a imagem de que, bom juiz, é somente quem prende.)

É curioso notar que os articulistas não teceram nenhuma linha sequer a respeito dos fundamentos que determinaram a prisão preventiva do reclamante Paulo Bernardo, muito menos sobre sua revogação pelo ministro Dias Toffoli. Nesse sentido, o suposto “rigor procedimental”, tão arduamente defendido pelos presentantes ministeriais, cuja alegada violação indevida e jocosamente afirmam ser um “duplo twist carpado”, não poderia ser transplantado para a disciplina das nulidades processuais?

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Não bastasse esse bypass argumentativo, os articulistas fazem absurda afirmação:

Entretanto, na mesma decisão, o ministro Dias Toffoli, em apenas dois dias (segundo a Fundação Getúlio Vargas do Rio, o mesmo ministro leva em média 29 dias para analisar pedidos liminares), sem oitiva do procurador-geral da República, concedeu Habeas Corpus em favor de Paulo Bernardo.

O que querem sugerir com essa estatística? Para se evitar constrangimentos ou interpretações equivocadas, seria salutar uma construção mais clara, dita de forma direta, sem rodeios.

Se, na forma, o parágrafo é verdadeiramente lamentável e desrespeitoso, no conteúdo, com as necessárias licenças, tangenciam a inverdade, ainda que de forma não intencional. A propósito, não é dada a referência da dita pesquisa da Fundação Getulio Vargas. Provavelmente, por ser um texto publicado em jornal, os autores não tiveram espaço suficiente para disponibilizar aos seus leitores a fonte de onde obtiveram a informação.

Com efeito, a aludida estatística, concernente ao tempo de análise das decisões liminares, ao que parece, deve ter sido extraída do 3º relatório do projeto de pesquisa Supremo em Números, elaborado pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (veja aqui).

Deveras, segundo os resultados da pesquisa, no gabinete do ministro Dias Toffoli, o tempo médio para decisões liminares é de 29 dias. Sucede que esse dado estatístico leva em consideração todos os tipos de processos que tramitam no Supremo Tribunal Federal, desde ações de controle de constitucionalidade, passando por extradições, recursos extraordinários, até mesmo procedimentos de investigação criminal. Não somente de liminares em Habeas Corpus, repita-se.

Esquece-se, portanto, de enunciar que não foram consideradas peculiaridades importantes para construção do dado estatístico, principalmente o fato de o reclamante estar preso preventivamente [o que, obviamente, exige maior celeridade]. E, ainda assim, se há demora na apreciação dos processos relacionados às ditas “pessoas comuns”, deve-se a uma falha no sistema que deve ser corrigida, o que não permite concluir pela supressão de garantias do reclamante.

A tentativa de se desqualificar a decisão do ministro relator chega ao ponto de sugerir uma conclusão que, em nenhum momento, foi adotada. Uma breve análise dos comentários sobre o texto, republicado pela ConJur, permite perceber que a percepção geral dos leitores foi a de que teria havido acolhimento da reclamação, o que contrariaria decisão pretérita do próprio STF, sobre o desmembramento das investigações. Acontece que o pedido liminar da reclamação foi indeferido!

Porém, novamente, a estratégia da investigação passou a ser a criação no imaginário coletivo da pretensa infalibilidade da operação "lava jato". Ainda que se desconsiderem os fatos, em tática de fazer inveja aos mais experientes publicitários, consegue-se vender um produto [suposto sucesso do combate à corrupção], sem apresentar os preços que estão sendo pagos por isso. Não se combate a corrupção individual ou sistêmica corrompendo o processo penal...

Que os juízes deste país, de todas as instâncias, continuem tendo liberdade para decidir conforme à Constituição, prendendo e soltando pessoas, desde que respeitada a legalidade; apreendendo bens e os restituindo, sempre respeitada a legalidade; sem que, com isso, sejam objeto de ataques de vazia retórica eficientista de quem, a todo custo, mesmo que imbuídos de bons propósitos, pretende reduzir as garantias fundamentais das pessoas. Que sejam elogiados por respeitar as leis do país, que não sejam elogiados por prender em qualquer caso, desrespeitando a legalidade. Que não se sintam emparedados pelas críticas lançadas nas páginas dos jornais.

Professores de processo penal afirmaram, absurda e erradamente, que “o problema é o processo”. Para os que assim enxergam, a solução, em qualquer instância, é a Constituição.


Notas

[1] Antes que se busque rotular o autor deste texto, devo dizer que não sou abolicionista, não sou agnóstico em relação ao Direito Penal. Penso que há comportamentos desviantes que merecem a tutela penal. Penso que há, em situações excepcionais, a possibilidade de decretação de prisão preventiva. Porém, penso, antes de tudo, que as garantias constitucionais devem ser respeitadas. Para todos. Ricos, pobres, perseguidos, inimigos...

Sobre o autor
Gamil Föppel El Hireche

Doutor em Direito Penal Econômico pela UFPE. Mestre em Direito pela UFBA. Professor adjunto de Direito Penal da Universidade Federal da Bahia. Membro das comissões de juristas responsáveis pela elaboração dos anteprojetos de reforma do Código Penal e da Lei de Execuções Penais. Agraciado com o Diploma do Mérito Legislativo, outorgada pela Câmara dos Deputados. Autor de obras jurídicas. Professor de Cursos de pós-graduação na Bahia, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Sergipe e Pará. Advogado criminalista.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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