Responsabilidade civil do Estado por crime cometido por detento liberado e foragido por falta de vaga, em face da súmula vinculante 56 do STF

09/07/2016 às 12:53
Leia nesta página:

Discutir o cabimento da responsabilidade civil do Estado nos casos de crime cometido liberado por falta de vaga e foragido por falta de vaga em razão da Súmula Vinculante n. 56.

No dia 29 de junho de 2016, o Supremo Tribunal Federal decidiu criar a Súmula Vinculante n. 56 que proíbe o detento aguardar vaga em regime mais gravoso. O teor da súmula já previamente definido, é o seguinte: “A falta de vagas em estabelecimento prisional não autoriza a manutenção do preso em regime mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros do Recurso Extraordinário 641.320”.

Não quero aqui discutir nem discorrer sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, se o preso tem ou não direito, já que pra mim isso é fato consumado, tem sim, direito, pois ele não pode responder pela incúria nem pela inação estatal, e tem direito assegurado constitucionalmente de progredir de regime e ao livramento condicional, e o princípio da ressocialização, um dos escopos da pena, pode estar em risco quando o preso aguarda a progressão em regime mais gravoso.

A referida Súmula Vinculante me traz um sério questionamento: Caso um detento que estiver no regime semi-aberto e por falta de lugar para cumprir a pena em razão da lotação, for a um regime aberto, sendo assim liberado para cumprir prisão domiciliar e descumprindo as regras desse regime,   tornando-se um foragido, acabe cometendo um ilícito penal, latrocínio,  homicídio, estupro ou qualquer outro crime com vítima determinada, o motivo que o levou a ser liberado, falta de vagas, não constituiria uma omissão do estado, ensejando a responsabilidade civil?

 

Para que se possa chegar a uma conclusão, necessário se conceituar o que seria responsabilidade civil do Estado ou da Administração Pública. Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, na obra “Direito Administrativo, 12. Edição, Revista e Atualizada” , Editora Impetus, página 473, discorrem:

 

“CONCEITO

A responsabilidade civil, genericamente considerada, tem sua origem no Direito Civil e, no âmbito do direito privado, consubstancia-se na sua obrigação de indenizar um dano patrimonial decorrente de um fato lesivo voluntário. É modalidade de obrigação extracontratual e para que ocorra são necessários, como se depreende de sua definição, os seguintes elementos:

 

(1) O  fato lesivo causado pelo agente em decorrência de culpa em sentido estrito, que engloba a negligência, a imprudência e a imperícia.

(2) a ocorrência de um dano patrimonial  ou moral;

(3) o nexo de causalidade entre o dano havido e o comportamento do agente, o que significa  ser necessário que o dano efetivamente haja decorrido, direta ou indiretamente, da ação ou omissão indevida do agente.

No âmbito do direito público, temos que a responsabilidade civil da administração pública evidencia-se na obrigação que tem o Estado de indenizar os danos patrimoniais ou morais que seus agentes, causem à esfera juridicamente tutelada dos particulares. Traduz-se, pois, na obrigação de reparar economicamente danos patrimoniais, e com tal reparação se exaure. 

 

A evolução da responsabilidade civil do Estado passou por inúmeras fases, irresponsabilidade do Estado, responsabilidade com culpa civil comum do Estado (subjetiva), teoria da culpa administrativa, teoria do risco administrativo, teoria do risco integral.

 

O artigo 37, § 6. da Constituição da República, adotou a teoria da responsabilidade objetiva na modalidade risco administrativo, que diz:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

 

Pergunto: tendo adotado a Constituição da República a responsabilidade objetiva do estado pelos danos causados por seus agentes, seria possível a responsabilização civil do estado por omissão no caso de um detento que liberado por falta de vaga, acaba se tornando foragido e cometendo um crime?

Maria Sylvia Zanela Di Pietro, na obra “Direito Administrativo”, vigésima quarta edição, editora atlas, páginas 654/657, 2011, discorre:

 

“15.5. RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR OMISSÃO

Existe controvérsia a respeito da aplicação ou não do artigo Art. 37, § 6º, da Constituição às hipóteses de omissão do Poder Público, e a respeito da aplicabilidade nesse caso, da teoria da responsabilidade objetiva. Segundo alguns, a norma é a mesma para a conduta e a omissão do Poder Público; segundo outros, aplica-se, em caso de omissão, a teoria da responsabilidade subjetiva, na modalidade da teoria da culpa do serviço público. Na realidade, a diferença entre as duas teorias é tão pequena que a discussão perde um pouco de interesse, até porque ambas geram para o ente público o deve de indenizar.

Alguns, provavelmente preocupados com as dificuldades, para o terceiro prejudicado, de obter ressarcimento na hipótese de se discutir o elemento subjetivo, entendem que o dispositivo constitucional abarca os atos comissivos e omissivos do agente público. Deste modo, basta demonstrar que o prejuízo sofrido teve um nexo de causa e feito com o ato comissivo ou com a omissão. Não haveria que se cogitar de culpa ou dolo, mesmo no caso de omissão.

Para outros, a responsabilidade, no caso de omissão, é subjetiva, aplicando-se a teoria da culpa do serviço público ou da culpa do serviço público ou da culpa anônima do serviço público (porque é indiferente saber quem é o agente público responsável). Segundo essa teoria, o Estado responde  desde que o serviço público (a) não funcione, quando deveria funcionar; (b) funcione atrasado; ou funcione mal. Nas duas primeiras hipóteses, tem-se a omissão danosa.

Com algumas nuances referentes aos fundamentos, pode-se mencionar, entre outros que adotam a teoria da responsabilidade subjetiva em caso de omissão, José Cretella Júnior (1970, v.8:210), Yussef Said Cahali (1995:282-283), Álvaro Lazzarini (RTJSP 117/16), Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1979, vol. II: 487), Celso Antônio Bandeira de Mello (RT 552/14). É a corrente a quem também me filio. A maioria da doutrina, contudo, parece pender para a aplicação da teoria da irresponsabilidade objetiva do Estado, em casos de sua omissão.

No dizer de José Cretella Júnior (197, v. 8:210)

‘a omissão configura a culpa in omittendo ou in vigilando.São casos de inércia, casos de não ato. Se cruza os braços ou se não vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se. Empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem como bonus administrador. Foi negligente. Às vezes imprudente ou até imperito. Negligente, se a solércia o dominou; imprudente, se confiou na sorte; imperito se não previu a possibilidade de concretização do evento. Em todos os casos, culpa, ligada à ideia de inação física ou mental.’

No caso de omissão do Poder Público os danos em regra não são causados por agentes públicos. São causados por fatos da natureza ou fatos de terceiros. Mas poderiam ter sido evitados ou minorados se o Estado, tendo o dever de agir, se omitiu.

Isso significa dizer que, para a responsabilidade  decorrente de omissão, tem que haver o dever de agir por parte do Estado e a possibilidade de agir para evitar o dano. A lição supratranscrita, de José Cretella  Júnior, é incontestável. A culpa está embutida na ideia de omissão.não há como falar em responsabilidade objetiva em caso de inércia  do agente público que tinha o dever de agir e não agiu, sem que para isso houvesse uma razão aceitável.

A dificuldade da teoria diz respeito à possibilidade de agir; tem que se tratar de uma conduta que seja exigível da administração  e que seja possível. Essa possibilidade só pode ser examinada só pode ser examinada diante de um caso concreto. Tem aplicaçã, no caso, o princípio da reserva do possível, que constitui aplicação do princípio da razoabilidade: o que seria razoável: o que seria razoável exigir do Estado para impedir o dano,

A esse respeito, Juan Carlos Cassagne (citado por Flávio de Araújo Willeman, 2005:122) ensina que ‘a chave para determinar a falta de serviço, e consequentemente, a procedência da responsabilidade  estatal por por um ato omissivo  se encontra na configuração ou não de uma omissão antijurídica. Esta última se perfila só quando seja razoável esperar que o Estado ou suas entidades descumpram uma obrigação legal expressa ou implícita  (art. 1.074 do Cód. Civil) tal como são as vinculadas com o exercício  da polícia administrativa, descumprimento que possa achar-se imposto também por outras fontes jurídicas. ‘

Por outras palavras, enquanto no caso de atos comissivos a responsabilidade incide nas hipóteses de atos ilícitos ou ilícitos, a omissão tem que ser ilícita para acarretar a responsabilidade do Estado.

Por essa razão, acolhemos a lição daqueles que aceitam a tese da responsabilidade subjetiva  nos casos de omissão do Poder Público. Com Celso Antônio Bandeira de  Mello  (2008:996), entendemos que, nessa hipótese, existe uma presunção  de culpa do Poder Público. O lesado não precisa fazer prova de que existiu a culpa ou dolo Ao Estado é que cabe demonstrar que agiu com diligência, que utilizou os meios adequados e disponíveis e que, se não agiu, é porque a sua atuação estaria acima do que seria razoável exigir; se fizer essa demonstração, não incidirá a responsabilidade.

(...).

Ainda quanto à responsabilidade do Estado por omissão, o Supremo Tribunal Federal vinha exigindo, para a caracterização  do nexo de causalidade, a teoria do dano direto e imediato. Serve como exemplo acórdão envolvendo indenização devida a vítimas de homicídios praticados por fugitivos de penitenciárias; a Corte vinha reconhecendo a responsabilidade quando não há rompimento da cadeia causal (ou seja, quando existe  ligação direta  entre causa e dano), mas elide tal responsabilidade quando já se tenham passados ‘meses’  da fuga, por falta de nexo causal. A teoria do dano direto e imediato, expressamente mencionada  em acórdão  do STF, citando Agostinho Alvim, ‘só admite o nexo de causalidade quando o dano é efeito necessário  de uma causa, o que abarca o dano direto e imediato sempre, e, por vezes, o dano indireto e remoto, quando, para a produção deste, não haja concausa sucessiva. Daí, dizer Agostinho Alvim: ‘os danos indiretos ou remotos não se excluem, só por isso; em regra, não são indenizáveis, porque deixam de ser efeito necessário, pelo aparecimento de concausas. Suposto não existem estas, aqueles danos são indenizáveis.”

Esse entendimento, que vinha sendo adotado reiteradamente, parece estar se alterando, no sentindo de aceitar um alargamento de responsabilidade do Estado, independentemente  da aplicação  da teoria do dano direto e imediato. Em dois julgados, pelo menos, o Supremo Tribunal Federal deu mostras de caminhar nesse sentido:

No primeiro caso, considerou-se a omissão do Estado em cumprir a Lei de Execução Penal como causa suficiente para responsabilizá-lo pelo crime de estupro cometido por fugitivo de penitenciária. Nas palavras do relator, Min. Joaquim Barbosa, ‘tal omissão do Estado constituiu, na espécie, o fator determinante que propiciou  ao infrator a oportunidade para praticar o crime  de estupro contra menor de doze anos de idade, justamente no período em que deveria estar recolhido à prisão. Está configurado o nexo de causalidade, uma vez, uma vez que se a lei de execução penal tivesse sido corretamente aplicada, o condenado dificilmente  teria continuado a cumprir pena nas mesmas condições (regime aberto), e, por conseguinte, não teria tido a oportunidade de evadir pela oitava vez e cometer o bárbaro crime de estupro.’

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No segundo caso, o Supremo Tribunal Federal  reconheceu a responsabilidade do Estado por danos causados em razão da falta de policiamento ostensivo em locais de alta periculosidade, deixando de lado, inclusive, o princípio da reserva do possível que costuma ser invocado em situações semelhantes.”

 

Quanto à omissão estatal em relação a crimes cometidos por presidiários foragidos (situação que se aplicaria para o caso de detentos liberados por falta de vagas e que se esquivam do cumprimento da pena, em casos abrangidos pela Súmula Vinculante n. 56), discorrem Ricardo Alexandre  e João de Deus, na obra  “Direito Administrativo  esquematizado, editora método, 2015, páginas 632/633:

“Do dever  de vigilância que o Estado possui relativamente às pessoas sobre sua guarda, estudada no item anterior, pode resultar a responsabilidade civil estatal por danos causados por presidiários foragidos.

No entanto, o STF não reconhece a responsabilidade estatal como decorrência automática da fuga, entendendo ser necessária uma análise  mais acurada das circunstâncias fáticas presentes em cada caso concreto. De um exame mais detido da jurisprudência da Corte é possível concluir que o fator mais importante  levado em consideração para a responsabilidade estatal tem sido o tempo transcorrido entre a fuga  e a prática do ato do qual resulta o dano.

Em julgado recente, o Tribunal analisou um caso em que o presidiário, com diversas passagens  por estabelecimento penais prisionais,logo após a sua terceira fuga, praticou crime de latrocínio. Perceba-se que o grau de periculosidade do criminoso  era inconteste, bem como como era notória a falha do serviço prisional do Estado. É digno de nota  que o voto-vencedor  do Ministro Eros Grau consta passagem extremamente crítica em que salta aos olhos a demonstração da péssima qualidade do serviço, ao afirmar que ‘a fragilidade do sistema penitenciário gaúcho, como demonstra o histórico carcerário fornecido pela Susepe, demonstra que ‘(...) a pena imposta parece uma opção do condenado que fugia e retornava à Colônia Penal sem maiores dificuldades formalidades ou rigores.’

No caso concreto, portanto, restava inconteste a falha do serviço e, mesmo adotada a teoria da responsabilidade subjetiva, poderia haver  responsabilidade do Estado. Registramos, contudo, que na ementa do julgado o Tribunal classificou o caso como responsabilidade objetiva, nos termos a seguir transcritos:

Responsabilidade civil do Estado, Art.  37, § 6, da Constituição do Brasil. Latrocínio cometido por foragido. Nexo de causalidade configurado. Precedente. A negligência estatal na vigilância do criminoso, a inércia das autoridades policiais diante da terceira fuga e o curto espaço de tempo que se seguiu antes do crime são suficientes para caracterizar o nexo de causalidade Ato omissivo do Estado que enseja a responsabilidade  objetiva nos termos do disposto no artigo 37, § 6, da Constituição do Brasil (RE 573.595-AgR, rel. Min. Eros Grau, j. 24.06.2008, DJE 15.08.2008).’

Do teor da Ementa é possível perceber que, conforme afirmado anteriormente, a Corte confere crucial importância para o lapso de tempo decorrido entre a fuga e a prática do ato lesivo. Quando é longo tal período, , o Tribunal tem entendido que foi quebrado o nexo de causalidade, não sendo cabível a responsabilidade do Estado. A título de exemplo, transcreve-se o seguinte excerto:

‘tratando-se de ato omissivo do poder, a responsabilidade civil por ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, esta numa de suas três vertentes, a negligência, a imperícia ou a imprudência, não sendo, entretanto,necessário  individualizá-la, dado que pode ser atribuída  ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. A falta do serviço – faute Du service dos franceses – não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre a ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. Latrocínio praticado por quadrilha da qual participava  um apenado que fugira da prisão tempos antes: neste caso, não há falar em nexo de causalidade  entre a fuga do apenado e o latrocínio,  (RE 369.820, Rel. Mini. Carlos Velloso.j. 04.11.2003, DJ 27.02.2004).

Perceba-se que neste último caso, diferentemente daquele outro, foi expressamente enquadrado pelo STF na teoria da responsabilidade subjetiva, exigindo a presença da culpa anônima  decorrente  da falta ou falha no serviço, raciocínio  que a nosso ver parece mais adequado. Além disso, é possível perceber que, mesmo nos casos em que consta da Ementa referência respo

Observa-se que o tema é controverso e o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado por sua omissão em relação a crimes cometidos por  foragidos (situação que se enquadraria aos liberados por falta de vaga em razão da súmula vinculante 56 do STF) precisa trilhar um longo caminho nos tribunais para ser aceita, embora se perceba já uma mudança de pensamento.

Assunto polêmico e tenho certeza, trará muitas discussões jurídicas futuramente, é esperar para ver.

 

 

 

 

Sobre o autor
Luiz Alberto Cavalcanti Filho

É formado em Direito em Letras, hoje servidor do poder judiciário do Estado de Santa Catarina na Comarca de Palhoça, especialista em Direito Imobiliário. <br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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