Intérpretes e vítimas da interpretação – as lacunas que atacam a segurança jurídica

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A ação dos agentes de controle deve ser realizada com fiel comprimento das diretrizes de políticas públicas e com acatamento de leis e normas gerais. A tal situação, dá-se o nome de princípio da aderência a diretrizes e normas.

Desde os primórdios da formação social, os homens buscam mecanismos para coadunar seus interesses individuais com os anseios da comunidade à qual pertencem. A filosofia trouxe elementos e bases para pensar a sociedade e as relações humanas de forma crítica. Garantiu ao homem uma forma de interpretar o mundo interior e exterior. Os padrões de regência desses homens, porém, não foi a filosofia que estabeleceu, mas o Direito.

Para além de uma atividade crítica, o Direito produz reflexos práticos na vida cotidiana da sociedade. Talvez esteja nesta nuance a beleza e a força dessa área do conhecimento. O Direito é capaz de modificar a vida dos homens, produzindo um ambiente capaz de permitir o desenvolvimento das pessoas individualmente e das relações humanas de modo geral. Todos regidos por parâmetros impessoais e erga omnis. Tal condição é o que produz a paz social, função primordial do Direito.

Para que a paz social possa ser garantida, porém, é preciso que os parâmetros citados acima estejam muito bem estabelecidos. É preciso que os jurisdicionados saibam exatamente a quais regras estão submetidos e que não haverá qualquer desvio na aplicação do rigor da lei ao caso concreto. Neste ponto, percebemos que a segurança jurídica é o instrumento garantidor da paz social. A falta dela gerará, invariavelmente, o questionamento dos padrões estabelecidos, prática não desejada pelo Direito em sua vocação pacificadora.

É certo que o Direito é uma ciência mutável, atenta às transformações humanas e às demandas da sociedade. Não seria correto defender a imutabilidade das normas, considerando que os paradigmas mudam ao longo da história. Isto não significa, porém, o ataque à segurança jurídica. Padrões precisam estar bem alicerçados para uma boa condução social.

Os caminhos da hermenêutica jurídica

A discussão inaugurada no tópico anterior segue não pautada na mutabilidade legal, mas nas infinitas possibilidades de interpretação. Não há dúvida de que a construção jurídica é dialética. A sistematização de construção de conhecimento proposta por Hegel, por exemplo, se encaixa na forma estabelecida na construção do raciocínio jurídico. Tese, antítese e síntese se sucedem até a formação do convencimento do juiz da causa de modo a esgotar a discussão fática.

Nos bancos da academia, somos apresentados às diversas técnicas interpretativas que podem auxiliar o aplicador do Direito no momento da análise do caso concreto. Interpretação gramatical, lógica, sistemática teleológica, entre outras mais elaboradas propostas pelos nossos doutrinadores. O convencimento do juiz é resultado deste processo tão bem estudado pela hermenêutica jurídica, o processo de utilizar elementos jurídicos, fáticos e subjetivos na análise de um caso em concreto de modo a se chegar a uma síntese da questão apresentada.

O escopo desta interpretação, porém, abre precedentes para decisões que fogem do raciocínio sistêmico do Direito. Na atividade interpretativa, pode o juiz, por convencimento diverso, expedir decisão que fuja da lógica jurídica estabelecida. Para tais casos, a legislação reserva o direito ao recurso. Ocorre, porém, que até a reforma da decisão, há um longo caminho jurídico a ser percorrido.

Hermenêutica e atividade de controle

Na atividade de controle não há de ser diferente. A ação dos agentes de controle deve ser realizada com fiel comprimento das diretrizes de políticas públicas e com acatamento de leis e normas gerais. A tal situação, dá-se o nome de princípio da aderência a diretrizes e normas. No Brasil, esse princípio consta expressamente entre os que regem o controle interno.

Muitas vezes, o agente de controle é tentado a se colocar em posição de substituir o administrador, confundindo o desempenho de sua função. Ora, é bem provável que um agente de controle seja capaz de encontrar solução mais eficiente do que a que foi aplicada, até porque tem a vantagem de chegar após o fato, aferindo as causas e consequências da decisão anterior.

Quando busca o fiel cumprimento das normas e diretrizes, o órgão de controle também tolera, por dever de lógica, um conjunto de interpretações consideradas juridicamente razoáveis e ações que não tiveram o entendimento ótimo, por terem sofrido os efeitos de fatores razoavelmente imprevistos.

Cautelas à interpretação dos fatos jurídicos

Decorre desse princípio, ainda, outra aplicação: é atinente a responsabilidade do órgão jurídico. Em termos de lógica, se o administrador que age com base em parecer que analisa a questão, com base em doutrina e jurisprudência, não pode ser penalizado, é óbvio que o advogado ou parecerista também não pode ser. O parecer deve ser emitido antes da prática do ato, para que essa lógica se aplique; emitido posteriormente passa a se constituir defesa do ato já praticado, retirando-se a força de sustentação do processo decisório.

Configura-se incabível, do mesmo modo, a condenação de um Advogado Público por parecer quando o Ministério Público, após muitos anos da prática do ato, considera a interpretação do parecerista incorreta. O decurso do tempo e as limitações apresentadas à época podem ter levado o Advogado Público a emitir um parecer que, à luz do conhecimento futuro, mostrou-se menos eficiente.

Não se está defendendo a não penalização em casos de flagrante ilegalidade ou de indícios de desvio de finalidade. Nesses casos, o rigor da lei é bem-vindo, resguardados os direitos do contraditório e da ampla defesa. Para os casos, porém, em que a interpretação posterior é dotada de informações distintas daquelas que possuía o advogado público no momento da emissão do parecer, não parece justo a condenação deste profissional por não ter conseguido antever uma interpretação mais favorável ao caso concreto.

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Do mesmo modo, os Tribunais de Contas devem estar atento à situação histórico-fática no momento das decisões. Também não aparenta ser razoável que a Corte condene servidor – após conclusão de obra certificada com recorrentes decisões favoráveis da Corte quanto à lisura técnica – por não balizar preços por sistema quando a lei não exigia.

Caso semelhante ocorreu em contrato entre o Departamento de Estradas e Rodagem do estado do Tocantins e empresa de Engenharia especializada na execução do serviço. Após cinco anos e seis meses da conclusão das obras, o TCU instaurou Tomada de Contas Especial para a apuração de suposto superfaturamento dos valores dos serviços prestados por estes não estarem de acordo com o Sistema de Preços, Custos e Índices – Sinapi.

Ocorre, porém, que à época, os preços foram balizados pelo Custo Unitário Básico – CUB. E assim foi feito de modo regular. Em cinco decisões sobre essa obra, o TCU atestou a inexistência de qualquer irregularidade grave nas obras. Atentar, portanto, que havia irregularidade em momento posterior afigura-se caso, ao menos, passível de questionamento.

O exemplo demonstra a interpretação de um caso concreto utilizando os filtros de situações futuras, não existentes à época. Como saberia o gestor, naquele momento, que haveria um parâmetro diferenciado de análise para a aferição do valor referencial dos serviços se a utilização de tal sistema não estava prevista em lei? Se o gestor agiu na legalidade, não há que se falar, por parâmetros futuros, em irregularidade.

No momento da análise do fato, cabe ao intérprete observar todas as circunstâncias existentes no momento da prática do ato. É preciso entender a motivação. A leitura seca, baseada em parâmetros inexistentes ou inaplicáveis no período analisado pode transformar o intérprete em avaliador injusto e o questionado em vítima da interpretação.

Assim, diferentes órgãos interpretando a mesma lei podem encontrar soluções diferentes. Essa possibilidade existe e não pode ser coibida. Não é correto, justo ou razoável digladiarem-se os operadores do Direito a ponto de pretenderem impor uma única interpretação como possível e criminalizar o entendimento diverso.

Sobre os autores
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes

É professor de Direito Administrativo, mestre em Direito Público e advogado. Consultor cadastrado no Banco Mundial. Foi advogado e administrador postal na ECT; Juiz do Trabalho no TRT 10ª Região, Procurador, Procurador-Geral do Ministério Público e Conselheiro no TCDF.Autor de 13 livros e 6 coletâneas de leis. Tem mais de 8.000 horas de cursos ministrados nas áreas de controle. É membro vitalício da Academia Brasileira de Ciências, Artes, História e Literatura, como acadêmico efetivo imortal em ciências jurídicas, ocupando a cadeira nº 7, cujo patrono é Hely Lopes Meirelles.

Matheus Feitoza Brandão

Matheus Brandão é jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia - UFBA e pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Analista de Comunicação do escritório Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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