~~PRESCRIÇÃO E DIREITO INTERTEMPORAL NO CÓDIGO CIVIL
Rogério Tadeu Romano
A decadência, ao contrário da prescrição, ocorre quando a única maneira de exercer-se o direito é a propositura da ação. A propositura da ação constitui a exclusiva maneira de exercício de direito: é a hipótese de decadência. O direito não pode ser exercido extrajudicialmente: é hipótese de prescrição. Na decadência, o prazo não é fixado para o exercício do direito sob modalidade diversa do exercício da ação; o prazo fixado é para o exercício da ação, não desta forma, ser interrompido ou suspenso. É a hipótese de ações constitutivas ou desconstitutivas que se lastreiam nos denominados direitos potestativos.A prescrição se dá com relação às ações chamadas condenatórias.
São hipóteses já estudadas na doutrina e podem já ser aduzidas.
Assim é que, se a lei nova reduz o prazo da prescrição ou de usucapião, deve-se distinguir: a) se computado o prazo maior previsto na lei antiga, este se escoar antes de findo o prazo menor previsto, computado a partir da vigência desta, deverá o prazo previsto pela lei nova, a partir da data do início de vigência desta, se consumar antes de terminado o prazo maior previsto pela lei anterior, aplicar-se-á o prazo menor previsto pela lei nova, contando-se dito prazo a partir da data da vigência da lei nova.
Foi Savigny(Traité de doit romain, cit. VIII, pág. 418/426) quem já enunciava essas ideias: a)se a lei nova suprime a prescrição ou o usucapião, atinge todos os prazos iniciados; b) se a lei nova introduz prescrição ou usucapião desconhecida, aplica-se imediatamente, mas computando-se o prazo a partir do início da vigência; c) se modalidade da interrupção é introduzida ou abolida, aplica-se imediatamente a todos os prazos iniciados; d) se a lei nova prolonga o prazo aplica-se imediatamente; e) se a lei nova reduz o prazo, computa-se o prazo reduzido a partir de seu início de vigência desconhecendo-se o tempo já escoado. Por certo Savigny não previa a solução mais adequada; aplica-se o prazo mais adequado previsto pela lei nova a partir de seu início de vigência, salvo se findar antes o prazo mais longo previsto pela lei antiga computado o tempo fluído antes da lei nova.
O artigo 169, segunda alínea, da Lei de Introdução ao Código Civil alemão já dizia: “Se o prazo de prescrição, conforme o Código Civil é mais curto que segundo as leis anteriores, computa-se o prazo mais curto a partir da entrada em vigor do Código Civil. Se entretanto, o prazo mais longo determinado pelas leis anteriores expira mais cedo que o mais curto, determinado pelo Código Civil, a prescrição se completa com o fim do prazo mais curto”.
Se a lei nova ampla o prazo de usucapião, da prescrição extintiva ou da decadência, aplica-se o novo prazo mais computando-se o tempo decorrido na vigência da lei antiga.
Pontes de Miranda(Comentários, tomo V, pág. 94) ensinou: “ A lei nova não pode ter o efeito de considerar interruptivo da prescrição fato que, ao tempo em que ocorreu, não era, nem o de considerar não-interruptivo fato que, ao tempo em que ocorreu, era interruptivo).
Paul Roubier sustentava que se a lei que retarda o ponto de partida do prazo deve ser tratada como lei que alonga o prazo, aplica-se, imediatamente: pouco importa que o ponto de partida novo se coloque sob a lei antiga ou sob a lei nova: a prescrição será computada a partir desse dia. A lei que adianta o ponto de partido o ponto de partida do prazo deve ser tratada segundo Roubier, como uma lei que reduz o prazo; o prazo legal correrá a partir do dia da entrada em vigor da nova lei, em todos os casos nos quais a duração da prescrição se achar reduzida. Essa a lição trazida Les Conflits, tomo II, pág. 245 e ainda Le Droit Transitoire, pág. 301.
No Brasil, no passado, sabe-se que houve problema suscitado a propósito de ações de anulações de casamento contraído sob coação. Estabelecia o Código Civil, artigo 178, § 1ª que ao prescrever em seis meses a ação do cônjuge coato para anular o casamento contado o prazo do dia em que cessou a coação. Abusos se prestaram na análise do dispositivo, advindo o Decreto-Lei 4.529, de 20 de julho de 1942, que determinou que a ação do cônjuge coato para anular o casamento, prescreverá em dois anos contados da data da celebração. O Decreto-Lei 5383, dando solução de índole intertemporal, determinou a inaplicabilidade deste aos processos já ajuizados na data de sua vigência, desde que a ação tivesse sido proposta antes de decorrido o dobro do prazo fixado no mesmo decreto.
A doutrina com Campos Batalha(Direito Intertemporal, 1980, pág. 252) entende aceitável a lição de Roubier, dispensando-se à lei que modifique o momento inicial da fluência do prazo preclusivo ou prescricional tratamento idêntico ao da lei que amplia ou restringe os respectivos prazos.
Diante desse quadro traça-se o regime de prescrição sob o Códigos de 1916 e de 2002:
O Código Civil/1916 estabelecia em seu art. 179[1], por remissão expressa ao art. 177[2], o prazo prescricional de 20 (vinte) anos para as demandas envolvendo direitos pessoais (por exemplo, indenização). O Código Civil de 2002, de acordo com o art. 206, §3º, V[3], reduziu esse prazo para 3 (três) anos.
Desta forma, a vítima de algum evento danoso que pretendesse a indenização pelos danos sofridos teria o prazo de três anos para promover a demanda. Este prazo por certo seria contado da data do evento (art. 189). Preenchido, portanto, o requisito da diminuição do prazo prescricional.
Para que o antigo prazo fosse considerado há um outro requisito, o de que tenha corrido metade desse prazo até a entrada em vigor do novo Código. No exemplo o evento, para que fosse contado o antigo prazo, deveria ter ocorrido até janeiro de 1993 (com os transcurso de 10 anos). Caso contrário aplicar-se-ia o novo prazo. Se o evento tivesse ocorrido depois de janeiro de 1993, o prazo seria de três anos, contados do evento, ou seja, a ação estaria prescrita. Isso de acordo com a interpretação literal da lei.
Aponta-se, assim, com cristalina transparência, um dos problemas da nova legislação: o direito de ação estaria prescrito pela entrada em vigor do Código Civil de 2002.
Um outro exemplo poderia ser citado. O Código Civil de 2002 prevê no art. 206, § 5º, I[4] que prescrevem em cinco anos as dívidas líquidas constantes de instrumentos públicos ou particulares (um contrato, por exemplo). O Código Civil de 1916 não previa expressamente prazo para a maior parte dessas dívidas, recaindo-se mais uma vez no disposto no art. 177, ou seja, vinte anos.
Dependendo do prazo decorrido sob a vigência do antigo Código, mas uma vez estaríamos diante de uma pretensão prescrita com a entrada em vigor do Código Civil de 2002.
Um agravante é a orientação jurisprudencial. O Supremo Tribunal Federal, analisando situação semelhante, se posicionou no sentido de que a redução do prazo prescricional é aplicável às prescrições em curso (Súmula 445 do STF)[5].
A solução apontada, por parte da doutrina, seria a adoção do novo prazo, contado a partir da entrada em vigor do Código Civil. Outros defendem, ainda, que como não havia regra específica para essas situações no Código Civil de 1916 (aplicando-se o disposto no art. 177), dever-se-ia aplicar, então, também a regra genérica prevista no art. 205 do Código Civil de 2002 para regular esses casos.
Maria Aline Cazali Oliveira, in Maria Aline Cazali Oliveira in “A contagem dos prazos reduzidos pelo novo Código Civil” bem sintetiza:
- “O artigo 2.028 do CC, elencado no livro complementar intitulado “Das Disposições Finais e Transitórias”, pretende disciplinar o conflito de leis no tempo, dispondo que:
“Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.”
Ora, inúmeros prazos anteriormente previstos na lei revogada foram reduzidos pelo legislador. Tomemos alguns exemplos que, conciliados com o artigo acima transcrito, nos auxiliarão a sintetizar os efeitos da lei nova sobre os prazos prescricionais em curso.
No caso de reparação civil de danos (ação pessoal), cujo prazo prescricional de 20 anos (CC/1916, art. 177) foi reduzido para 3 anos (art. 206, §3º, V), algumas hipóteses podem ser esboçadas, tendo a contagem do prazo se iniciado ainda na vigência do CC de 1916:
a) transcorridos treze anos do cometimento do ilícito até a entrada em vigor do NCC (ou seja, mais da metade do tempo estabelecido na lei anterior), aplicar-se-á o prazo prescricional da lei antiga, isto é, 20 anos. Nesse caso, ainda haveria 7 (sete) anos para o ajuizamento da ação, após o que, prescrita estaria. Anota Pablo Stolze Gagliano que, em que pese pareça estranho ainda restarem sete anos para a prescrição da ação, se a lei revogadora reduziu o prazo para três anos, esta foi a opção do legislador, que entendeu por bem manter a incidência da lei superada se já houver transcorrido mais da metade do tempo previsto.
b) tendo transcorrido apenas sete anos (menos da metade do prazo estabelecido pelo CC de 1916), aplicar-se-á o prazo da lei nova. Assim, faltariam três anos para se atingir o prazo prescricional máximo extintivo da pretensão indenizatória, prazo este que seria contado a partir da data de início da vigência do novo Código. Wilson de Souza Campos Batalha, analisando o Código Civil Alemão, sugere que “se a lei nova reduz o prazo de prescrição ou decadência, há que se distinguir: a) se o prazo maior da lei antiga se escoar antes de findar o prazo menor estabelecido pela lei nova, adota-se o prazo estabelecido pela lei anterior; b) se o prazo menor da lei nova se consumar antes de terminado o prazo maior previsto pela lei anterior, aplica-se o prazo da lei nova, contando-se o prazo a partir da vigência desta.”
No mesmo sentido é o entendimento do STJ estampado no enunciado nº 50 extraído da jornada de discussão sobre o novo Código Civil, in verbis:
“A partir da vigência do novo Código Civil, o prazo prescricional das ações de reparação de danos que não houver atingido a metade do tempo previsto no Código Civil de 1916 fluirá por inteiro, nos termos da nova lei (art. 206)”
A jurisprudência do STF já seguia igual orientação, a propósito da redução do prazo prescricional provocado pelo Código Tributário Nacional, como se vê do seguinte aresto:
“Prescrição. Direito intertemporal. Caso em que o prazo prescribente fixado na lei nova é menor do que o prazo prescricional marcado na lei anterior. Feita a contagem do prazo prescribente marcado na lei nova (isso a partir da vigência dessa lei), e se ocorrer que ele termine antes de findar-se o prazo maior fixado na lei anterior, é de considerar o prazo menor previsto na lei posterior, contado esse prazo a partir da vigência da segunda lei.”
Em uma outra hipótese, veja-se o caso de um prazo de cinco anos que foi reduzido para três, artigo 206, §3º, I, II e III, se houver transcorrido menos da metade do prazo da lei antiga (dois anos e cinco meses, por exemplo), não se aplicará a lei nova, a despeito de uma interpretação literal do artigo 2.028, pois o tempo já transcorrido, somado ao novo prazo estabelecido, ultrapassa o prazo da lei antiga (no exemplo, dois anos e cinco meses somado a três anos resulta em cinco anos e cinco meses, ou seja, prazo maior do que o da lei revogada, que é de cinco anos).
Nesse sentido e por estes fundamentos, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, solucionando os casos concretos:
Apelação cível. Processual civil. Pretensão de reparação. Prescrição. Direito transitório. A contagem do prazo prescricional em curso quando da entrada em vigência do código civil de 2002, se houver redução do prazo previsto no código de 1916, depende da verificação do saldo. Se superior ao do novo diploma, deve ser ignorado, passando a vigorar na integra o novo prazo a partir da data que entrou em vigor a nova lei. Exegese do art. 2.028 do CC 2002. Lição da doutrina.
Apelação provida. Sentença cassada. (Apelação Cível nº 70009809336, Sexta Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, j. em 17.11.2004)
Por sua vez, Omar Abdul(As regras do direito intertemporal no Código de 2002) bem conclui:
“O Código Civil estabeleceu em seu artigo 2.028 regra de direito intertemporal, onde regulou os prazos prescricionais iniciados sob a vigência do Código Civil de 1916, e que não ainda não se extinguiram.
Dispõe o artigo 2.028 do Código Civil:
“Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”.
Ainda neste sentido são dois os enunciados do Conselho da Justiça Federal sobre o tema, conforme segue:
Enunciado 50: “Art. 2.028: a partir da vigência do novo Código Civil, o prazo prescricional das ações de reparação de danos que não houver atingido a metade do tempo previsto no Código Civil de 1916 fluirá por inteiro, nos termos da nova lei (art. 206)”.
Sobre este enunciado manifestou-se ainda o CJF:
“No que tange à responsabilidade civil, o novo Código representa, em geral, notável avanço, com progressos indiscutíveis, entendendo a Comissão que não há necessidade de prorrogação da vacatio legis.”
Enunciado 299: "Art. 2.028. Iniciada a contagem de determinado prazo sob a égide do Código Civil de 1916, e vindo a lei nova a reduzi-lo, prevalecerá o prazo antigo, desde que transcorrido mais de metade deste na data da entrada em vigor do novo Código. O novo prazo será contado a partir de 11 de janeiro de 2003, desprezando-se o tempo anteriormente decorrido, salvo quando o não-aproveitamento do prazo já decorrido implicar aumento do prazo prescricional previsto na lei revogada, hipótese em que deve ser aproveitado o prazo já decorrido durante o domínio da lei antiga, estabelecendo-se uma continuidade temporal."
Sendo estas as regras de Direito Intertemporal no Código Civil de 2002, ocorrem as seguintes situações possíveis:
a) Se o prazo prescricional do CC/16 foi mantido no CC/02:
Continuará a seguir o prazo originalmente estabelecido, com sua contagem originária.
b) Se o prazo prescricional do CC/16 foi aumentado no CC/02:
Mantém-se o termo inicial originário, devendo ser cumprido o novo prazo.
c) Se o prazo prescricional do CC/16 foi diminuído no CC/02 duas situações podem ocorrer:
1 - Transcorrido mais da metade do prazo originário antes da entrada em vigor do CC/02 - deve ser mantido o prazo prescricional do CC/16, não se aplicando os novos prazos reduzidos.
2 – Transcorrido menos da metade do prazo originário antes da entrada em vigor do CC/02
a) Começa-se a contar o prazo a partir do final da vacatio legis do novo código (de acordo com o enunciado 299 da CJF, é a partir de 11 de janeiro de 2003, encerrando as discussão que pairavam a respeito), utilizando-se o novo prazo prescricional reduzido. Mas isso desde que o prazo já transcorrido, sendo somado ao novo, não seja inferior à totalidade do prazo antigo.
b) Se a soma do prazo já transcorrido com o novo prazo forem superiores ao prazo total estabelecido pelo CC/16, a prescrição ocorrerá quando completar-se o prazo originário, uma vez que a regra do art. 2028 não pode ser utilizada para aumentar prazos prescricionais posto que tem como fundamento a diminuição de prazos prescricionais.”
Sintetiza-se, assim, utilizando-se do mecanismo tradicional preconizado em obra clássica por Paul Roubier e que sempre mereceu a consagração da jurisprudência nacional em situações semelhantes: o prazo da lei nova é contado a partir de sua vigência, mas não se despreza a fração já transcorrida antes dela. Assim, o prazo menor será aplicado, mas se antes de seu vencimento completar-se o prazo antigo (maior), este é que prevalecerá, pois não seria lógico que tendo a lei nova determinado a redução do prazo prescricional sua aplicação acabasse por proporcionar à parte um lapso ainda maior que o da lei velha .”