O princípio de non-refoulement (não-devolução) x refugiados humanitários

02/08/2016 às 10:59
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O presente trabalho tem por objetivo abordar o princípio do non-refoulement (não-devolução), sendo este norma jus cogens de incidência no Direito Internacional.

A doutrina costuma enumerar como fontes do Direito Internacional os tratados, os costumes, os princípios gerais de direito, a jurisprudência e a doutrina, sendo que os três primeiro se entram positivados no artigo 38, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (ECIJ)[1].

Deve-se observar que, ao contrário do que ocorre no direito interno, no Direito Internacional não há hierarquia entre as fontes. Na lição de MAZZUOLI, não existe “nenhum tipo de autoridade superior (v.g., uma Constituição) que subordine os Estados à sua vontade, de modo a tornar efetivas suas decisões”[2].

Entretanto, há uma categoria de normas de Direito Internacional de tal modo imperativa que não admite derrogação, a não ser por outra norma posterior também imperativa – são as chamadas normas jus cogens. A principal finalidade dessas normas é preservar os valores fundamentais da sociedade internacional.

Os artigos 53 e 64, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, dispõem sobre a norma jus cogens, aduzindo que “é nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral” [...], e “se sobrevier uma nova norma imperativa de Direito Internacional geral, qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo e extingue-se”.

Dentre as normas imperativas, encontra-se o princípio de non refoulement (“não-devolução”),  por meio do qual os países estão proibidos de expulsar uma pessoa para um território onde possa estar exposta à perseguição.

A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, também conhecida como Convenção de Genebra de 1951[3], aprovada em 28/07/1951, teve como objeto a tutela dos refugiados europeus, após a Segunda Guerra Mundial. Em 1967, o Protocolo dos Refugiados removeu os limites geográficos e temporais, ampliado a aplicação do conceito de refugiado.

No dia a dia é costume se utilizar o termo “refugiado” para designar qualquer indivíduo que foge do seu país, independentemente dos motivos (v.g., guerras, perseguição politica, fome). Porém, no contexto do Direito Internacional, a definição é restrita[4], limitando-se, conforme lição de Carina de Oliveira Soares, à

Pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo[5].

A definição exposta acima tem como base o art. 1º do Estatuto dos Refugiados ampliados pelo Protocolo de Refugiados de 1967.

O Brasil ratificou o Estatuto dos refugiados e o Protocolo, e editou, em 1997, a Lei n. 9.474, a qual traz em seu art. 1º o conceito de refugiado:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

O princípio de non-refoulement (“não-devolução”) está expressamente previsto no Estatuto do refugiado de 1951, nos arts. 32,1, primeira parte, e 33 (com redação semelhante no arts. 36 e 37, da Lei n. 9474/1997[6]):

Art. 32 - Expulsão

1. Os Estados Contratantes não expulsarão um refugiado que se encontre regularmente no seu território senão por motivos de segurança nacional ou de ordem pública.

2. A expulsão desse refugiado somente ocorrerá em virtude de decisão proferida conforme o processo previsto por lei. A não ser que a isso se oponham razões imperiosas de segurança nacional, o refugiado deverá ter permissão de fornecer provas que o justifiquem, de apresentar um recurso e de se fazer representar para esse fim perante uma autoridade competente ou perante uma ou várias pessoas especialmente designadas pela autoridade competente.

3. Os Estados Contratantes concederão a tal refugiado um prazo razoável para procurar obter admissão legal em outro país. Os Estados Contratantes podem aplicar, durante esse prazo, a medida de ordem interna que julgarem oportuna.

Art. 33 - Proibição de expulsão ou de rechaço

1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas.

2. O benefício da presente disposição não poderá, todavia, ser invocado por um refugiado que por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que, tendo sido condenado definitivamente por crime ou delito particularmente grave, constitui ameaça para a comunidade do referido país.

Frisa-se que os próprios arts. 32, 1, parte final, e 33, 2, trazem hipóteses em que o princípio de non-refoulement (“não-devolução”) será afastado (por motivos de segurança nacional ou de ordem pública), sendo dado àquele que se pretende expulsar o direito de se defender e tempo suficiente para encontrar outro país que queira abrigá-lo. Regra parecida é trazida pela Lei n. 9.474/1977, nos arts. 3º[7] e 36, parte final.

As considerações acima, bem como a exposição dos dispositivos legais que fundamentam o conceito de refugiado, visaram abrir espaço para o questionamento deste trabalho, qual seja a possibilidade (ou não) de aplicação do princípio de non-refoulement (“não-devolução”) aos “refugiados humanitários”[8]. Neste trabalho o termo “refugiado humanitário” designa os indivíduos que fogem dos seus países por motivo de catástrofes, fome, etc., e que, portanto, não estão abarcadas pelo conceito de refugiado trazido pelos dispositivos supramencionados.

Primeiramente é relevante destacar que o princípio de non-refoulement (“não-devolução”),  muito embora o apelo humanitário, só se aplica àquele que está na condição de refugiado propriamente dito, e não aos chamados “refugiados humanitários”. A contrário sensu, levando-se em conta apenas a não aplicação do princípio da “não-devolução”, torna-se possível a expulsão, do território do país, dos indivíduos que não se inserem no conceito de refugiado. Porém, deve-se lembrar que o princípio da dignidade da pessoa humana, basilar maior da ordem jurídica internacional, exige que aos “refugiados humanitários” seja dado tratamento e proteção humanitária, por isso, a não aplicação do princípio ora em estudo não elimina a obrigação dos países de prestarem proteção a estas pessoas.

O Brasil vivenciou na pele uma crise decorrente do ingresso de “refugiados humanitários” a partir do ano de 2010. Eram em sua maioria haitianos fugindo da fome motivada pela devastação de seu país após desastre natural. No nosso caso, não sendo possível a aplicação das normas referentes ao refúgio, e sob a alegação de que o Brasil “não poderia “dar as costas” a um povo que ajuda há tantos anos”[9], criou-se o instituto do “visto humanitário”, com o fito de regularizar a situação dos imigrantes haitianos (e de outras nacionalidades que se encontravam na mesma situação) que não se enquadravam na categoria de refugiados. Esta é uma das alternativas encontradas pelos países para regularizar a situação dos “refugiados humanitários”.

Diante do exposto, muito embora os “refugiados humanitário” estejam aparados pelos ditames do Direito Internacional, especialmente pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a eles não se aplica o princípio do non-refoulement (“não-devolução”) tendo em vista a sua condição não se subsumir à definição de refugiado.

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[1] Estatuto da Corte Internacional de Justiça (ECIJ), artigo 38: A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: a. as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b. o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito; c. os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas; d. sob ressalva da disposição do Artigo 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito. A presente disposição não prejudicará a faculdade da Corte de decidir uma questão ex aequo et bono, se as partes com isto concordarem. 

[2] MAZZUOLI, V.O. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 129.

[3] Nesse sentido é relevante o papel do ACNUR: “O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) foi criado  pela Assembleia Geral da ONU em 14 de dezembro de 1950 para proteger e assistir às vítimas de perseguição, da violência e da intolerância. Desde então, já ajudou mais de 50 milhões de pessoas, ganhou duas vezes o Prêmio Nobel da Paz (1954 e 1981). Hoje, é uma das principais agências humanitárias do mundo. [...] No Brasil, o ACNUR atua em cooperação com o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), ligado ao Ministério da Justiça. Além da proteção física e legal, os refugiados no país tem direito à documentação e aos benefícios das políticas públicas de educação, saúde e habitação, entre outras. Para garantir a assistência humanitária e a integração dessa população, o ACNUR também trabalha com diversas ONGs no país. ACNUR, BREVE HISTORICO DO ACNUR.

[4] BARBOSA, F. P. O refúgio no Brasil: definição e requisitos.

[5] SOARES, C. O. A extradição e o princípio de não-devolução (non-refoulement) no direito internacional dos refugiados.

[6] Lei n. 9474/1997, art. 36. Não será expulso do território nacional o refugiado que esteja regularmente registrado, salvo por motivos de segurança nacional ou de ordem pública.

Art. 37. A expulsão de refugiado do território nacional não resultará em sua retirada para país onde sua vida, liberdade ou integridade física possam estar em risco, e apenas será efetivada quando da certeza de sua admissão em país onde não haja riscos de perseguição.

[7] Lei 9474/19997, art. 3º- Não se beneficiarão da condição de refugiado os indivíduos que: I - já desfrutem de proteção ou assistência por parte de organismo ou instituição das Nações Unidas que não o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - ACNUR; II - sejam residentes no território nacional e tenham direitos e obrigações relacionados com a condição de nacional brasileiro; III - tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas; IV - sejam considerados culpados de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas.

[8] Nesse sentido: “Mesmo que a situação política e econômica do Haiti enseje preocupação, assim como a de outros países em desenvolvimento, não há consenso na comunidade internacional em ampliar o conceito de refúgio, de forma a incluir também aqueles que deixam o país por problemas advindos de catástrofes naturais ou questões ambientais”. FERNANDES, D. MILESI, R. FARIAS, A.  Do Haiti para o Brasil: o novo fluxo migratório

[9] D’Urso. F. A questão dos refugiados e do visto humanitário.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

PAULO, V; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2009.

MAZZUOLI, V.O. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

VADEMECUM. São Paulo: Rideel. 2016

BARBOSA, F P. O refúgio no Brasil: definição e requisitos. Disponível em: <http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9836&revista_caderno=16> acessado em: 18/04/2016.

Infoescola, artigo. Disponível em: <http://www.infoescola.com/direito/jus-cogens/> acessado em: 18/04/2016

SOARES, C. O. A extradição e o princípio de não-devolução (non-refoulement) no direito internacional dos refugiados. Âmbito Jurídico, artigos. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_ leitura &artigo_id=9429>  acessado em 17/04/2016.

ACNUR, BREVE HISTORICO DO ACNUR. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/portugues/informacao-geral/breve-historico-do-acnur/> acessado em 18/04/2016.

RODAS, J. G. Jus Cogens em Direito Internacional. Disponível em: <file:///C:/Users/gleyson/Downloads/66736-88124-1-PB%20(1).pdf> acessado em 18/04/2016.

 BARBOSA, A.S. Jus Cogens: Gênese, Normatização E Conceito. Disponível em: < http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Jus-Cogens-G%C3%AAnese-Normatiza%C3%A7%C3%A3o-E-Conceito.pdf> acessado em: 18/04/2016.

Planalto, Legislação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm> acessado em 10/04/2016.

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Sobre o autor
Susem Quelle A F Leite

Acadêmica do Curso de Direito - Universidade Federal do Acre/UFAC

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