Num momento de crise financeira, os governos costumam apelar a aumento da carga tributária ou a corte de despesas públicas ou uma mescla das duas medidas. O atual governo aposta, num primeiro momento, na redução de gastos, sobretudo com pessoal, como forma de debelar a crise. Se, em princípio, essa medida é legítima e da responsabilidade política do Legislativo e Executivo, é fato que o grau de redução previsto é tão intenso e drástico que levará a exonerações em massa em várias instituições e entes públicos, senão todos, de sorte a prejudicar não só os servidores, mas a própria população destinatária de serviços essenciais. Portanto, o foco da presente reflexão transita sobre o projeto de Lei Complementar n. 257/2016, em especial o capítulo II da proposta de alteração legal. Começar-se-á com um resumo sobre o projeto de lei e as principais alterações pretendidas, com prosseguimento na avaliação de alguns impactos previstos em caso de aprovação do projeto e finaliza-se com algumas observações jurídico-constitucionais com o foco no exame da jurisprudência da crise do Tribunal Constitucional português.
I – O PROJETO DE LEI 257/2016 E AS ALTERAÇÕES PRETENDIDAS
Tramita, em regime de urgência, no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar n. 257/2016, de iniciativa do Poder Executivo Federal, o qual pretende alterar diversos diplomas legais e, entre eles, a Lei Complementar n. 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal. Conforme informações divulgadas na imprensa, o projeto inclusive já se encontra pautado na Câmara dos Deputados para sufrágio pelos parlamentares.
Aludido projeto foi estruturado em três capítulos, a par das disposições finais e transitórias, em que o primeiro capítulo cuida de pormenorizar um plano de auxílio aos Estados e ao Distrito Federal, o segundo altera significativamente a Lei de Responsabilidade Fiscal e o terceiro, em reforço às mudanças pretendidas, coaduna a legislação penal com essas alterações.
A justificativa do projeto, elaborado ainda no governo da Presidente da República ora suspensa de suas funções por decisão do Senado da República e visivelmente apoiado pelo governo do Presidente da República em exercício, destaca o cenário de grave crise econômico-financeira iniciada em 2008, cujos efeitos deletérios não foram contidos pela política de estímulo aos investimentos propagada pelo Governo Federal. Fatores como a crise imobiliária estadunidense, cuja desconfiança nos investidores e nos mercados espraiou-se para a União Europeia e China, foram lembrados para alegar o impacto gerado na economia pátria em função da queda significativa do preço mundial das commodities, o que levou a uma retração da economia brasileira a impactar a arrecadação de receitas públicas, agravada pela elevação de despesas a aumentar o desequilíbrio fiscal.
Segundo a justificativa do projeto, ele decorre de estudos realizados pelo Governo Federal em referência ao pleito dos Estados de um aumento em 10 anos do prazo de pagamento de sua dívida pública com a União, originalmente tratado em 30 anos. Essa dívida é oriunda de uma reforma fiscal iniciada em meados da década de 90 do século passado e início deste, a qual incluiu planos de reestruturação e refinanciamento de dívidas dos Estados, com assunção dessas despesas pela União mediante a assunção de compromissos de controle de gastos e equilíbrio fiscal.
Evidentemente, o auxílio projetado aos Estados também será objeto de aditivo contratual àquele firmado para o refinanciamento da dívida, porém submetido a várias condições, todas no sentido de redução de despesas. Entre outros cortes nos gastos públicos, o projeto de lei prevê o prazo de 180 dias para que Estados e Distrito Federal aprovem, sancionem e publiquem leis que promovam, no prazo de 24 meses, a redução de despesas em 10% com cargos de livre provimento, proibição de aumento de remunerações a servidores, salvo as decorrentes de atos derivados de sentença judicial e previstas constitucionalmente, além de suspender a contratação de pessoal, limitar o crescimento de despesas correntes à variação da inflação, a vedação de edição de leis ou criação de programas que concedam ou ampliem incentivo ou benefício de natureza tributária ou financeira; não menos importante, deverão os entes federados estaduais aprovar normas legais de finanças públicas dirigidas à responsabilidade fiscal da pessoa jurídica de direito público interno, com o mínimo de objetivos previstos: instituição de regime de previdência complementar, elevação das contribuições previdenciárias de servidores e patronal ao regime próprio de previdência social, reforma do regime jurídico dos servidores ativos, inativos, civis e militares, no intuito de limitar os benefícios, progressões e vantagens ao que é estabelecido para os servidores da União, bem como instituição de monitoramento fiscal contínuo das contas dos entes.
Entrementes, as implicações são tantas que não é possível de esgotar todas as considerações pertinentes neste momento. Indubitavelmente, apenas o capítulo I, que trata da renegociação da dívida dos Estados, já prevê medidas de contenção de despesas de grande magnitude, com pesado ônus sobre a engenharia burocrática estatal, que podem afetar a própria oferta e qualidade de serviços públicos.
Porém, se essas medidas, diante do quadro de crise reinante, talvez se justifiquem provisoriamente, o capítulo II do projeto, justamente por alterar conceitos elementares de gasto com pessoal sujeito aos limites de responsabilidade fiscal, deveria ser extirpado ou profundamente revisto, tendo em vista que sua aprovação, nos moldes como está, acarreta o ruir da atuação das instituições públicas, muitas das quais ficarão praticamente paralisadas em virtude da falta de pessoal para desempenhar sua missão legal e constitucional.
Logo, cinge-se o comentário a tecer algumas considerações em relação ao capítulo II do referido projeto de lei, composto de seu artigo 14, justamente na parte em que almeja modificar enunciados normativos da Lei Complementar n. 101/00, doravante referida como LRF.
Entre as principais alterações previstas no capítulo II, sublinham-se a inclusão da confecção do plano plurianual – vetado quando da aprovação da LRF –, a nova forma de computação de despesas com pessoal e o estabelecimento de limite de gastos com pessoal para a Defensoria Pública.
No que tange ao plano plurianual, ele deverá determinar o limite total anual do gasto público primário expresso como percentual do PIB anual para a União e como receita primária total anual para Estados, Distrito Federal e Municípios. Em consequência, a própria lei de diretrizes orçamentárias também deverá ter previsão a respeito do limite de gasto anual com despesas de pessoal Nesse ponto, estranhamente esqueceu o projeto de mencionar a Defensoria Pública, no entanto, certamente essa instituição estatal está abrangida, inclusive no caso das Defensorias Públicas Estaduais, as quais, nos termos do art. 132, §4º, da Constituição Federal, têm iniciativa de proposta orçamentária.
Ponto digno de nota e de notória preocupação pelos efeitos nocivos ao desempenho do serviço público está no novo texto proposto ao art. 18 da LRF. O detalhe do texto do §4º do art. 18 acrescido pelo projeto traz uma novidade: a definição da forma de apuração da despesa com pessoal. A LRF não especificou como se apurava o montante de despesa com pessoal, de sorte que muitas instituições e poderes divergiam sobre a forma de proceder ao cálculo, especificamente se era deduzido ou não o montante descontado em folha de pagamento relativo ao imposto de renda, entre outros tributos. Com o texto do projeto, essa dúvida foi sanada, a determinar que o custo de pessoal será considerado como a remuneração bruta auferida pelo servidor ou empregado, incluído qualquer montante objeto de recolhimento de tributos.
Outro ponto impactante e preocupante no projeto está em determinar que na apuração do gasto de pessoal serão computadas as despesas de inativos e pensionistas, de forma segregada por órgão ou entidade, nos termos do parágrafo 3º da nova redação dada ao art. 18 pelo projeto. Isso acarreta que as instituições autônomas (Ministério Público e Defensoria Pública) e pessoas da administração indireta e o Poder Judiciário em geral passarão a ter que contabilizar como despesa de pessoal todo o valor de pensões e aposentadorias, o que antes não acontecia, já que esses custos entravam como despesa de pessoal a cargo do Executivo. Há que se registrar que essas instituições sequer são as responsáveis pelo pagamento dessas aposentadorias e pensões, logo parece ser um contrassenso que valores que não são objeto de dispêndio por parte da instituição influenciem nos limites de gastos do ente com despesas de pessoal.
Com efeito, a redação da proposta ao §1º, I e II, do art. 18 da LRF, nos termos do projeto, deixa evidente que se computam como gastos com pessoal as despesas provenientes de terceirização, o que não é novidade. O que foi acrescido é a equiparação, para efeitos de limites com pessoal, de qualquer espécie de contratação pessoal de forma direta ou indireta, inclusive por posto de trabalho, que atue substituindo servidores e empregados públicos. Há controvérsia sobre o que pode ou não ser terceirizado na Administração Pública, devendo a contratação do terceirizado ser precedida de licitação ou contratação direta quando possível a dispensa da licitação ou essa for inexigível. Porém, há algum consenso que são passíveis de terceirização ou execução indireta: i) atividades transitórias (construção de obras ou elaboração de projetos); ii) atividades consideradas ancilares ou instrumentais, que sejam meio ao desenvolvimento da atividade-fim do serviço prestado. O Decreto n. 2.271/97 estabelece que, no âmbito federal, é proibida a terceirização as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou caso se trate de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal. De qualquer maneira, relativo ao que interessa neste tópico, uma possível interpretação da proposta está na inclusão de todo e qualquer gasto com pessoal do pagamento para mão-de-obra terceirizada, considerando o entendimento de que mesmo atividades instrumentais são, em resumo, substituição de servidores públicos que poderiam ali ocupar, o mesmo valendo para a qualquer contratação de pessoal indireta que preste serviço no órgão ou ente público, como, por exemplo, estagiários, os quais não possuem vínculo empregatício com o órgão público. Se essa interpretação extrema for adotada, certamente os limites de gasto com pessoal serão ainda mais reduzidos.
Outra mudança a diminuir a margem de despesa com o pessoal está na previsão do parágrafo §5º do art. 18 da LRF, na forma constante do projeto, que inclui como gastos com pessoal as despesas pagas com indenizações e auxílios, inclusive decorrentes de sentença judicial e de requisições de pequeno valor.
O §7º do art. 18 da LRF, nos termos do projeto, também acrescenta novo constrangimento de despesa com pessoal, porque dispõe que despesas atrasadas, relativas a exercícios passados, sejam incluídas como despesa de pessoal.
Outro ponto a lembrar, desta vez no capítulo 1 do projeto, são as despesas patronais com o regime de previdência. Se elas já eram computadas como despesa de pessoal, a adesão dos Estados ao refinanciamento da dívida com a União implicará o compromisso pelo ente estadual de aprovar leis e normas que aumentem o valor recolhido a título de contribuição patronal (art. 4º, IV, do projeto), o que certamente diminuirá ainda mais a margem possível de ser paga como despesa de pessoal.
De outro turno, a LRF estabeleceu no art. 19 que o limite de gastos de pessoal será 50% da receita corrente líquida, no caso da União, e de 60% da receita corrente líquida, no caso de Estados e Municípios. Na distribuição dos limites globais, o art. 20 da LRF estabelece que, no âmbito federal, 2,5% fica a cargo do Legislativo, incluído o Tribunal de Contas da União, 6% para o Judiciário, 40,9% para o Executivo e 0,6% para o Ministério Público da União. No âmbito estadual, 3% para o Legislativo, incluído Tribunal de Contas, 6% para o Judiciário, 49% para o Executivo e 2% para o Ministério Público. No âmbito municipal, 6% para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas municipal, se houver, e 54% para o Executivo. Nesse tocante, o projeto de lei altera a redação de algumas alíneas do art. 20, com a diminuição, para o Executivo, do limite para 40,87% na esfera federal e 48,3% na esfera estadual, como consequência da inclusão da Defensoria Pública de cada nível federativo nessa repartição dos limites globais, que estará limitada em 0,03% na esfera federal e 0,7% na esfera estadual.
Até aqui a pena foi dirigida para minutar uma síntese das principais alterações promovidas com o projeto de lei no que diz respeito ao seu capítulo II. O próximo item abordará as consequências diretas da sua aprovação tal como está.
II – AS CONSEQUÊNCIAS DAS ALTERAÇÕES PRETENDIDAS NA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL NO DESEMPENHO DO SERVIÇO PÚBLICO
Todas essas alterações, como referido, traduzirão um aumento exponencial do montante contabilizado a título de despesas de pessoal pelos poderes e instituições públicas. Em linhas mais diretas, o novo regime legal de despesas com pessoal não aumenta os gastos efetivamente desembolsados pelas instituições, mas imprime na contabilidade a computação de gastos com pessoal de despesas antes não contabilizadas nesse modo. Por suposto, isso gera consequências para o administrador público, caso não queira ser responsabilizado penal, política e administrativamente pelas normas vigentes.
Em virtude da emenda constitucional n. 19/98, foi prevista a obrigação constitucional de, se desrespeitado o limite de gastos estabelecidos em lei complementar – justamente a LRF –, redução em 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança, exoneração de servidores não estáveis e até a perda do cargo de servidores estáveis, conforme ato normativo a especificar a atividade funcional dos servidores estáveis atingidos. A LRF, no art. 22, estipula que a observação dos limites de despesas com pessoal será apurada no final de cada quadrimestre do exercício financeiro, ao passo que o art. 23 prescreve a obrigação de redução dos gastos que extrapolarem os limites de despesas com pessoal deverá ser cumprida no prazo de dois quadrimestres, com pelo menos um terço do corte total efetuado já no primeiro quadrimestres. A norma também cita o art. 169, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, para exemplificar as medidas de redução de gastos que deverão ser observadas.
Nessa parte, o projeto de lei acrescenta algumas medidas que são proibidas de serem adotadas no caso de entes ou instituições não conseguirem adequar-se ao limite naquele prazo, com proibição de promoções na carreira, conversão em pecúnia de qualquer vantagem ou direito ou a incorporação de adicionais de tempo de serviço, nem a incorporação no cargo ou em função comissionada.
A questão que se coloca é: quais os impactos dessa alteração no desempenho dos serviços públicos promovidos pelas instituições e entes públicos?
De início, deve-se deixar claro que não se nega a gravidade da crise econômica que se instalou no país – se bem que não se afiança nem se rejeita a justificativa econômica para a sua existência, até porque o tema é assunto que foge da expertise deste subscritor. No entanto, mesmo sem ser economista, é trivial concluir que toda a crise econômico-financeira pode ser enfrentada pelo Estado por diversos caminhos, os quais normalmente se agrupam em duas direções: i) políticas de corte e redução de gastos públicos, seja por programas que incentivem a eficiência ou mesmo com políticas de enxugamento do quadro de servidores, empregados ou ocupantes de funções públicas; ii) programas de incentivo e incremento das receitas. Obviamente, medidas nessas duas direções são possíveis de ser combinadas. A legitimidade e a competência para escolher qual a senda a palmilhar para debelar ou suavizar o crack econômico inegavelmente remanescem com o Legislativo e Executivo, os quais devem nortear suas escolhas em prol do interesse público. Logo, não é isso o que se obtempera; ao revés, quer-se mostrar que a mudança da lei de responsabilidade fiscal na forma proposta no projeto significará um desmantelamento intolerável das instituições públicas do país, com prejuízos irreparáveis especialmente aos serviços que atuam na máquina judiciária.
Intuitivamente, num cenário de crise, a primeira opção contará com a simpatia da maioria do povo, uma vez que a maior parte das pessoas não ocupantes de cargos, empregos ou funções públicas prefere que não se aumente a elevada carga tributária para fazer frente aos desafios impostos pela crise. O projeto de lei aventado funda-se nessa primeira opção, especificamente na alternativa de reduzir o quadro de funcionários públicos, empregados e ocupantes de funções públicas.
No entanto, esse discurso sedutor tem um grave perigo, pois não passa imediatamente à mente de boa parte das pessoas que essa primeira opção pode e certamente terá impactos no próprio desempenho de serviços públicos essenciais. Alguns desses serviços, como na área de educação e saúde, podem ser objeto de reclamo das pessoas mais carentes – e aqui se inclui o acesso à justiça pelas pessoas mais pobres, promovido especialmente pela Defensoria Pública –, mas outros serviços atingirão todas as pessoas, independentemente da condição social e econômica, como são os serviços prestados pelo Ministério Público e pelo próprio Poder Judiciário.
Retomando a questão formulada, o novo cálculo de despesas de pessoal e os limites impostos motivaram por parte de algumas instituições o estudo contábil-financeiro para avaliar como as novas medidas refletiriam no cumprimento da LRF.
O Ministério Público de Mato Grosso do Sul elaborou estudo em que se constatou que, com as mudanças pretendidas, o gasto de pessoal contabilizado sairá do atual percentual de 1,82% para 3,6%, muito acima do limite de 2% previsto no art. 20 da LRF. Conforme estudo realizado pelo departamento financeiro do órgão, a fim de que fosse possível cumprir o limite de 2% imposto pela LRF, seria preciso exonerar todos os servidores estáveis, em estágio probatório e ocupantes de cargo em comissão. Ainda assim, o montante não seria alcançado, sendo necessária a exoneração de alguns membros do Ministério Público conjuntamente; para ficar no limite prudencial, seria preciso exonerar cerca de 30% dos membros do Ministério Público do Estado.
Na mesma toada, a Defensoria Pública Estadual realizou estudo de mesma natureza e concluiu que, dos 173 Defensores atualmente existentes na instituição, sobrariam apenas 35, ou seja, implicaria a exoneração de cerca de 4/5 dos Defensores atualmente lotados. Esse estudo, inclusive, foi objeto de nota publicada na internet.
Conquanto não se tenha feito pesquisas para saber se outros órgãos e instituições efetuaram esses estudos e em que grau elas serão atingidas com as mudanças propostas no projeto, não se tem dúvida de que, em maior ou menor escala, o projeto resultará efeitos muito semelhantes e obrigará a exoneração em massa de inúmeros servidores públicos, especialmente nos Estados menos desenvolvidos economicamente.
Evidentemente, sem material humano, não se tem serviço público. O montante de exonerações e redução do quadro de pessoal é tão brutal que o serviço público terá a oferta drasticamente reduzida para a população, sem mencionar na queda abissal de celeridade, eficiência e qualidade que se espera da máquina pública.
Nesse momento, muitos ainda poderão aplaudir a iniciativa por argumentar que há problemas na prestação dos serviços públicos no Brasil. Inequivocamente, não se nega que existem problemas e que as falhas devem ser sanadas, mas certamente se os serviços podem eventualmente não atingir a qualidade que se espera, indubitavelmente a medida proposta prejudicará ainda mais todos esses predicados ansiados do funcionalismo público.
No âmbito do Ministério Público, é cediço o ingente volume de serviço decorrente das inúmeras atribuições conferidas à instituição, aliado à profusão de informação que levam as pessoas a cada vez mais amparar-se no Ministério Público. O projeto, se aprovado, implicará um retrocesso institucional, a ponto de reduzir o quadro a montantes nunca vistos, só comparáveis talvez ao final dos anos 70 e início da década de 1980, com o agravante de que não haverá servidores para auxiliar os membros. No entanto, inegavelmente que o volume de serviço não é o que existia naquela época.
O Poder Judiciário, por outro lado, será impactado com a perda de ainda mais celeridade, de sorte que o tempo de tramitação dos processos, se já é sentido como longo por boa parte da população, tende a eternizar-se, uma vez que é humanamente impossível dar conta do volume de serviço hoje existente sem uma equipe de servidores que permitam ao juiz desenvolver seu ofício.
E o que dizer da Defensoria Pública? Como atender com qualidade e presteza os vulneráveis economicamente numa situação tão drástica de redução de pessoal?
Fatalmente, num momento em que todos foram e vão às ruas com o vontade de combater e punir a corrupção que assola o país, o enfraquecimento do Ministério Público, do Poder Judiciário e demais instituições de controle só mostraria descompasso e o descolamento da classe política com a vontade do povo. Duvida-se que uma população, devidamente esclarecida sobre a intensidade de redução de pessoal que se pretende aprovar, estaria de acordo com essas mudanças, sabedora das consequências que traria ao desempenho do serviço público.
Em que pese a ausência de dados mais concretos de outras instituições, o fato de algumas entidades de significativa importância no cenário nacional posicionarem-se publicamente contra o projeto, como a Associação Nacional dos membros do Ministério Público - CONAMP e a Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal – ANAPE, conforme notas técnicas disponíveis na internet, indiciam que a aprovação do projeto a toque de caixa trará sérios prejuízos a todas as carreiras públicas como um todo. Se é verdade que é previsto um prazo até razoável para o atendimento das normas – 10 anos –, as exigências são tão severas e restritivas que tornam o seu cumprimento somente possível caso se inviabilize uma atuação de qualidade pelos entes públicos e instituições públicas.
III – ALGUMAS OBSERVAÇÕES JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS SOBRE O PROJETO: A JURISPRUDÊNCIA PORTUGUESA DA CRISE
Evidentemente, é condição sine qua non de validade do projeto, mesmo se aprovado, a obediência aos mandamentos formais e materiais da Constituição Federal.
A questão que se coloca é se seria constitucional uma reforma da lei de responsabilidade fiscal que pusesse em causa o funcionamento efetivo de instituições e órgãos que prestam serviços considerados essenciais ao Estado.
Como já mencionado, as alterações trazidas pelo projeto exigiriam que, para a adaptação ao limite prudencial de gastos com pessoal, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul tivesse de exonerar todo o quadro de servidores mais 30% dos membros. Uma primeira constatação é que a mudança não poderia validar a exoneração de membros do Parquet e do Judiciário detentores de vitaliciedade. Constitucionalmente, a vitaliciedade é prevista para membros do Ministério Público e do Judiciário, de sorte que essa garantia constitucional somente admite a perda do cargo por sentença judicial transitada em julgado. Logo, um primeiro problema, que ocorreria no Ministério Público de Mato Grosso do Sul e certamente em outras instituições, seria a impossibilidade prática de cumprir a norma, uma vez que não se entrevê possível juridicamente o pedido formulado em ação judicial para demitir um ocupante de cargo vitalício fundamentado no cumprimento de metas de contingenciamento de gastos com pessoal, de sorte que o Judiciário, examinando o mérito da pretensão, fatalmente concluiria pela improcedência do pedido deduzido na demanda.
Uma inconstitucionalidade que é apontada por CONAMP e ANAPE seria violação ao pacto federativo. O argumento é de que o plano de renegociação das dívidas obriga os Estados e Distrito Federal a legislarem, o que violaria a autonomia de cada ente federativo. A tese é interessante, no entanto não será objeto de reflexão neste escrito.
Interessa, nesse momento, abordar um contexto também de crise e a experiência do Tribunal Constitucional português no escrutínio de medidas que visavam debelar a crise econômico-financeira sentida até hoje pelo país. É de se destacar que, embora numa visão leiga de economia, a gravidade da crise financeira que se instalou em Portugal tinha muito maiores proporções que a crise brasileira, sem qualquer menosprezo a esta última.
Com efeito, Portugal celebrou em maio de 2011 um memorando de entendimento e vários documentos relativos ao Programa de Assistência Econômica e Financeira, com programas de financiamento celebrados entre o governo e o Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. Envolvido na crise financeira, a conjugar reflexos políticos com a demissão do Primeiro-Ministro português em 2011, levou Portugal a pedir ajuda financeira, de sorte a submeter-se às exigências de austeridade reclamadas como solução da crise pelos organismos europeus e Fundo Monetário Internacional[1].
Se, num primeiro momento, o Tribunal Constitucional português optou por trilhar um caminho de deferência em relação às medidas de crise no acórdão n. 396/2011, a duração continuada das medidas e seu agravamento, a recair todo o ônus do reequilíbrio financeiro nos servidores e trabalhadores do setor público, levou o Tribunal Constitucional a invalidar, parcialmente, normas da Lei do Orçamento do Estado do ano de 2012 e do ano de 2013, por meio dos acórdãos n. 353/2012 e 183/2013, amparando-se no princípio da igualdade.
Os dois precedentes mencionados foram uma mudança do curso jurisprudencial que o Tribunal Constitucional desenvolvera no acórdão n. 396/2011. Sinteticamente, é preciso dizer que as leis orçamentárias subsequentes tendiam a replicar os compromissos de austeridade financeira e fiscal com organismos da União Europeia, no desiderato de enfrentar a crise econômica que se alastrava na Europa, a par de outras medidas de iniciativa do próprio governo português, não previstas nos memorandos de entendimento. A lei orçamentária de 2011, objeto de decisão do acórdão n. 396/2011, previu, grosso modo, uma redução de subsídios aos servidores públicos. A lei orçamentária de 2012, objeto do acórdão n. 353/3012, previu um recrudescimento nas medidas de austeridade, com a suspensão do pagamento de 90% do subsídio de férias e de natal, o que foi continuado, em certa medida, na lei orçamentária de 2013, objeto do acórdão n. 183/2013, com previsão de suspensão do pagamento de 90% do subsídio de férias dos servidores e pensionistas e, entre outras medidas, criação de uma contribuição extraordinária de solidariedade. A parte das medidas de 2012 e 2013 relativa ao corte e suspensão de pagamentos de subsídios de servidores e aposentados e pensionistas foi julgada inconstitucional por violar o princípio da igualdade.
No exame do Tribunal Constitucional, em função das medidas serem contínuas e severas, terminaram por desigualar desproporcionalmente os servidores públicos, aposentados e pensionistas em relação às pessoas que não integravam os quadros do funcionalismo público português, porque essas medidas de austeridade eram suportadas nessa parte exclusivamente pelas categorias dos funcionários, aposentados e pensionistas sem uma contrapartida na elevação de tributos a serem arcados pelos privados.
Desde já, é de se destacar que as medidas de austeridade impostas em Portugal, comparadas às medidas decorrentes da mudança da LRF, são muito mais tênues, porque não implicam a exoneração maciça que será iniciada no Brasil para que entes e instituições públicos se ajustem à nova forma de contabilizar os limites com pessoal. Paradoxalmente, adotam-se medidas mais severas num contexto de crise muito mais amena que a enfrentada pelo Estado português. A impressão de maior gravidade da crise portuguesa em relação à brasileira está não só na duração do contexto de desequilíbrio das contas públicas, mas também pela dimensão da economia portuguesa, muito menos desenvolvida que a economia brasileira, bem como pela necessidade de socorrer-se de empréstimos financeiros internacionais, o que ainda não é o caso presente da conjuntura econômica brasileira.
Como esperado, os dois acórdãos que representaram a guinada na jurisprudência da crise do Tribunal Constitucional português provocaram acesa discussão e debate nos meios sociais e, por suposto, na academia portuguesa. Aplaudidas por alguns, essas decisões também receberam críticas tocando a legitimidade da Corte em temas econômicos-financeiros num contexto de crise econômica e mais precisamente sobre o grau do controle a exercer nesse contexto de crise[2], a metodologia teórico-argumentativa para fazer a fiscalização da constitucionalidade, em especial algumas inquietudes em saber se a “igualdade proporcional” seria um princípio da igualdade com a estrutura argumentativa do princípio da proporcionalidade[3].
Conquanto particularmente também se tenha alguma dúvida em relação ao fundamento da “igualdade proporcional” na forma declinada na fundamentação do acórdão – se não seria metodologicamente mais adequado examinar, além do princípio da igualdade, eventual aplicação autônoma do princípio da proporcionalidade –, é fato que eventual aprovação do projeto possa receber um exame de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal similar ao efetuado pela Corte Constitucional portuguesa. Evidentemente, o Supremo Tribunal Federal não está vinculado à interpretação dada à Constituição portuguesa pelo Tribunal Constitucional português, mas o contexto de “globalização jurídica”[4] vivida na quadra hodierna da história, com intenso interesse em pesquisa no direito comparado e menção de acórdãos de cortes constitucionais estrangeiras na fundamentação das decisões judiciais permite a ilação de que o Supremo Tribunal Federal possa a ser influenciado de algum modo pela argumentação esgrimida pelo Tribunal Constitucional português.
Independentemente das questões jurídico-constitucionais que possam ser suscitadas no caso da aprovação do projeto, é fato que ainda se confia no bom senso dos nossos parlamentares e no próprio governo federal. Longe se está de afirmar que cortes e redução de gastos com o pessoal não sejam uma medida legítima para enfrentar a crise nem se sugere que sejam criados impostos para contorná-la. A responsabilidade em encontrar a solução está nas mãos dos Poderes Políticos. O que se almeja é que, qualquer que seja a saída pensada, ela seja equilibrada e racional, de sorte a permitir o funcionamento das instituições estatais e a prestação dos serviços públicos considerados essenciais ao país. A aprovação do projeto, tal como está, não caminha nessa direção. É preciso serenidade e responsabilidade, a fim de reconhecer o excesso da medida proposta e encontrar uma alternativa que possa conciliar a urgência de enfrentamento da dificuldade econômica com uma satisfatória prestação dos serviços públicos.
[1] Para um histórico sobre o contexto de formalização desses compromissos financeiros, remete-se para ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da crise. Das questões prévias às perplexidades. In: O Tribunal Constitucional e a crise – Ensaios críticos. RIBEIRO, Gonçalo de Almeida; COUTINHO, Luís Pereira (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 53-56.
[2] URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise no divã. Diagnóstico: bipolaridade? In: O Tribunal Constitucional e a crise – Ensaios críticos. RIBEIRO, Gonçalo de Almeida; COUTINHO, Luís Pereira (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 15 e seguintes.
[3] BRITO, Miguel Nogueira de. Medida e intensidade do controlo da igualdade na jurisprudência da crise do Tribunal Constitucional. In: O Tribunal Constitucional e a crise – Ensaios críticos. RIBEIRO, Gonçalo de Almeida; COUTINHO, Luís Pereira (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 123 e seguintes; PEREIRA, Ravi Afonso. Igualdade e proporcionalidade: um comentário às decisões do Tribunal Constitucional de Portugal sobre cortes salariais no sector público. In: Revista Española de Derecho Constitucional, n. 98, 2013, p. 363 e seguintes; CANAS, Vitalino. P. 5 e seguintes. Constituição prima facie: igualdade, proporcionalidade, confiança (aplicados ao “corte” de pensões). In: E-publica, n. 1, 2014, p. 5 e seguintes.
[4] GROSSI, Paolo. Prima lezione di diritto. 14ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2009, p. 65-71.