A legalidade da outorga e da cobrança pelo uso dos recursos hídricos na atividade de extração de água mineral, no âmbito do Estado do Ceará

01/09/2016 às 15:17
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Este trabalho apresenta estudo com base na legislação vigente, passando pelas definições técnicas, visando promover o entendimento da água mineral como bem de natureza híbrida.

Resumo

Este trabalho apresenta estudo com base na legislação vigente, passando pelas definições técnicas, visando promover o entendimento da água mineral como bem de natureza híbrida, tendo em vista que é propriedade dos Estados, quando tratado como água subterrânea, recurso hídrico necessário à manutenção da vida no planeta, mas também é recurso mineral, quando de seu aproveitamento econômico por parte das empresas extratoras. Como recurso hídrico, a água mineral é passível de outorga e cobrança pelo seu uso, importantes instrumentos de gestão, estabelecidos na Lei Federal nº 9.433, de 08 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, bem como na própria Política de Recursos Hídricos do Estado do Ceará, constante na Lei Estadual nº 14.844, de 28 de dezembro de 2010, devendo o órgão gestor estadual e o gestor de recursos minerais, promoverem a necessária interação através da troca de informações, com a finalidade de preservar este valioso bem, nos termos da Resolução nº 76, de 16 de outubro de 2007, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH.

Palavras Chave: Água Mineral. Recursos Hídricos. Legislação. Outorga. Cobrança.

Abstract

This study based on current legislation and including technical definitions aims at enhancing the understanding that mineral water is a hybrid natural resource. It is a water resource which the states own while also being necessary for the growth of plant life. Furthermore it can be thought of as a mineral resource when extracted from the earth for economic gain. As a water resource the state can charge for its use. There are important management instruments established in federal law no. 9.433, January 8, 1997 instituted by the National Policy on Water Resources, as well as the State of Ceará’s Policy for Water Resources found in state law no. 14.844, December 28, 2010. These affirm that the state management organ and that of mineral resource management should provide the necessary intervention through the exchange of information. This should be done in order to preserve this valuable resource, according to resolution no. 76, October 16, 2007, from the National Council of Water Resources (CNRH).

Key words:  Mineral water, Water Resources, Legislation, Charter, Collection.

1. Introdução

A questão da outorga e cobrança pelo uso da água mineral por parte dos Estados vem sendo discutida há algum tempo pelos órgãos que compõem o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, provocada pela indústria de águas minerais. Algumas empresas do ramo contestam a cobrança, alegando ser a água mineral bem de domínio da união. O tema, de grande complexidade, merece estudo baseado na interpretação do ordenamento jurídico vigente, especialmente da Constituição Federal e das Leis que estabelecem a política de Recursos Hídricos nos âmbitos Federal e Estadual, com estabelecimento prévio dos conceitos e informações técnicas sobre a água.

2. Conceitos

2.1. A Água

A água é um elemento composto por dois átomos de hidrogênio (H) e um de oxigênio (O), formando a molécula de H2O. É uma das substâncias mais abundantes em nosso planeta e pode ser encontrada em três estados físicos: sólido (geleiras), líquido (oceanos e rios), e gasoso (vapor d’água na atmosfera).

Aproximadamente 70% da superfície terrestre encontra-se coberta por água. No entanto, menos de 2,5% deste volume é de água doce, cuja maior parte está concentrada em geleiras (geleiras polares e neves das montanhas), restando uma pequena porcentagem de águas superficiais para as atividades humanas.

Da água doce existente na Terra, porém, 68,9% formam as calotas polares, geleiras, neves eternas que cobram o cume das montanhas), 0,9% correspondem à umidade do solo e pântanos, 0,3% aos rios e lagos, e os 29,9% restantes são águas subterrâneas. Desta maneira, do total de água doce disponível para consumo, descontando-se aquela presente nas calotas polares, geleiras e neves eternas, as águas subterrâneas representam um total de 96%.

O Brasil, um país privilegiado com relação à disponibilidade de água, detém 53% do manancial de água doce disponível na América do Sul e possui o maior rio do planeta (rio Amazonas). Os climas equatorial, tropical e subtropical que atuam sobre o território, proporcionam elevados índices pluviométricos. No entanto, mesmo com grande disponibilidade de recursos hídricos, a água doce disponível está irregularmente distribuída: aproximadamente, 72% dos mananciais estão localizados na região amazônica, restando 27% na Região Centro-Sul e apenas 1% na Região Nordeste do país.

Apesar das denominações, a água, seja superficial, subterrânea ou atmosférica, é uma só, mudando sempre de condição. O movimento contínuo da água presente nos oceanos, continentes e na atmosfera é denominado Ciclo da Água ou Ciclo Hidrológico (Figura 1 – Anexo 1).

2.2. A Água Subterrânea

A Água subterrânea representa a parcela da chuva que se infiltra no subsolo e migra continuamente em direção às nascentes, leitos de rios, lagos e oceanos. O Aquífero, uma reserva de água subterrânea, ocorre quando há o preenchimento dos espaços formados entre os grânulos minerais nas fissuras das rochas (Revista Águas Subterrâneas. Programa de Águas Subterrâneas do Ministério do Meio Ambiente - 2001) .

2.3. A Água Mineral

A Água Mineral é aquela que por sua composição química ou características físico-químicas é considerada benéfica à saúde. A rigor, toda água natural, por mais pura que seja, tem um certo conteúdo de sais, podendo ser dito que toda água é mineral. As águas subterrâneas são especialmente enriquecidas em sais retirados das rochas e sedimentos por onde percolaram muito vagarosamente.

Durante muito tempo acreditou-se que as águas minerais tinham uma origem diferente da água subterrânea. Sabe-se hoje, contudo, que ambas têm a mesma origem: são águas de superfície que se infiltraram no subsolo. As águas minerais são aquelas que conseguiram atingir profundidades maiores e que, por isto, se enriqueceram em sais, adquirindo novas características físico-químicas, como, por exemplo, pH mais alcalino e temperatura maior. Para que a água atinja grandes profundidades é necessário que encontre descontinuidades nas rochas, como fraturamentos e falhas geológicas.

Sua temperatura será tanto maior quanto maior for a profundidade, devido ao gradiente geotérmico local. Seu conteúdo em sais guarda uma relação direta com o calor, pois a capacidade de dissolver minerais e incorporar solutos aumenta com a temperatura.

No Brasil, a maior parte das ocorrências de águas mineralizadas se dá na forma de fontes naturais, mas com o avanço da tecnologia de perfuração de poços profundos, pode-se prever que esta passará a ser a forma predominante de captação.

Não se pode, assim, desvincular-se a água mineral do contexto da água subterrânea, que, conforme definido, as qualidades físico-químicas que a definem dependem unicamente das características do solo onde a precipitação ocorre e a profundidade onde a água permanece.

3. A ESCASSEZ DA ÁGUA

3.1. No Mundo

A água é um recurso de tão grande importância que a Organização das Nações Unidas - ONU instituiu o dia 22 de março Dia Mundial da Água. O objetivo da data é incentivar a reflexão e a discussão, buscando soluções para a poluição, desperdício e escassez de água no planeta. Segundo muitos pesquisadores, a falta de água será um dos maiores problemas que a humanidade deverá enfrentar ainda neste século.

A falta d'água já afeta o Oriente Médio, China, Índia e o norte da África. Até o ano 2050, as previsões são sombrias. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que 50 países enfrentarão crise no abastecimento de água: na China o suprimento de água está no limite. A demanda agroindustrial e a população de 1,3 bilhão de habitantes fazem com que milhões de chineses andem quilômetros por dia para conseguir água. Na Índia, com população de 1 bilhão de habitantes, o governo indiano enfrenta o esgotamento hídrico de seu principal curso d'água, o rio Ganges. No Oriente Médio cuja região inclui países como Israel, Jordânia, Arábia Saudita e Kuwait., estudos apontam que dentro de 40 anos só haverá água doce para consumo doméstico - atividades agrícolas e industriais terão de fazer uso de esgoto tratado. Já no norte da África, nos próximos 30 anos, a quantidade de água disponível por pessoa estará reduzida em 80%. (http://www.cprm.gov.br)

3.2. No Nordeste

Efetivamente, a crise da água no Brasil, especialmente na região Nordeste, resulta, além das condições climáticas, da falta de gerenciamento efetivo das ações desenvolvimentistas em geral e da água em particular. Ao contrário, estimulam-se urbanização e industrialização – mediante incentivos vários – em áreas nas quais já se tem escassez de água para abastecimento. Ademais, a qualidade da água dos mananciais utilizados é degradada pelo lançamento – deliberado ou tolerado – de esgotos domésticos e industriais não-tratados, uso e ocupação inadequada do meio físico e outros fatores impactantes. A situação tem o agravante de os erros do passado se repetirem, conforme pode-se observar nos centros urbanos que estão em franca expansão.

A Região Nordeste ocupa 18,27% do território brasileiro, com uma área de 1.561.177,8 km². Deste total, 962.857,3 km² situam-se no Polígono das Secas, conforme delimitado em 1936 e revisado em 1951, abrangendo oito Estados nordestinos – exceto o Maranhão – e uma área de 121.490,9 km² em Minas Gerais. Já o Semi Árido ocupa 841.260,9 km² de área no Nordeste e outros 54.670,4 km² em Minas Gerais, caracterizando-se por apresentar reservas insuficientes de água em seus mananciais - SUDENE (2003).

Não obstante os vários esforços dos governos, a população do semiárido continua a sofrer com a estiagem. Os programas do governo federal vem direcionando recursos para a construção de pequenos reservatórios de águas, como é caso das cisternas para captação de águas de chuva, principalmente nas áreas rurais, onde a escassez é mais acentuada.

As condições específicas da água subterrânea, no quadro de escassez nordestina, foram assim descritas pelo Ministério da Integração, em estudo que dividiu o Brasil em regiões (Figura 2 – Anexo 1), formando 10 (dez) províncias hidrogeológicas:

Na subprovíncia nordeste (6a) o reduzido potencial hidrogeológico (disponibilidade de água) está relacionada às condições deficientes de circulação das águas subterrâneas, aliadas às condições do clima semiárido e à presença de rochas cristalinas, que resultam nas taxas excessivas de salinidade”. (Revista Águas Subterrâneas – Um Recurso a Ser Conhecido e Protegido – Brasília 2007 – p.24).

4. A LEGISLAÇÃO PERTINENTE À MATÉRIA

A Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997, institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, criando o Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Paralelamente, o Estado do Ceará possui a sua própria Política de Recursos Hídricos, estabelecida na recente Lei nº 14.844, de 30 de dezembro de 2010, que se propõe a tratar do assunto de forma ampla, citando como objetivos no seu art. 2º:

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I - compatibilizar a ação humana, em qualquer de suas manifestações, com a dinâmica do ciclo hidrológico, de forma a assegurar as condições para o desenvolvimento social e econômico, com melhoria da qualidade de vida e em equilíbrio com o meio ambiente;

II - assegurar que a água, recurso natural essencial à vida e ao desenvolvimento sustentável, possa ser ofertada, controlada e utilizada, em padrões de qualidade e de quantidade satisfatórios, por seus usuários atuais e pelas gerações futuras, em todo o território do Estado do Ceará;

III - planejar e gerenciar a oferta de água, os usos múltiplos, o controle, a conservação, a proteção e a preservação dos recursos hídricos de forma integrada, descentralizada e participativa. (GRIFO NOSSO)

O gerenciamento do sistema envolve a existência de diferentes níveis de atuação: Conselho Estadual de Recursos Hídricos - CONERH, Comitês de Bacias Hidrográficas, órgãos oficiais relacionados com a gestão de recursos hídricos - DNOCS, IBAMA, etc e a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos – COGERH.

Trata-se pois de uma combinação entre o poder público e as forças vivas da sociedade, representadas pelos usuários da água e as comunidades envolvidas. proporcionando um gerenciamento participativo.


 

Neste contexto inserem-se as empresas extratoras da água mineral, já que como usuários participam ativamente do sistema, encontrando-se a grande maioria destas regularizada perante o órgão gestor, quando detentoras de outorga pelo uso dos recursos hídricos vigente.

Algumas destas, porém, insurgem-se contra a legalidade da outorga e consequente cobrança pelo uso da água, alegando não se configurar a água mineral, que é indiscutivelmente água subterrânea, como bem de domínio do Estado, tomando como base o disposto no art. 20 da Constituição Federal, que assim está estabelecido:

Art. 20. São bens da União:

(...)

IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo;

Ocorre que a citada norma possui caráter geral, referindo-se aos recursos de forma abrangente, já que mais adiante no texto constitucional estabeleceu-se a seguinte ressalva:

Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:

I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;

Fica claro, da leitura do dispositivo constitucional, que a única ressalva à dominialidade do Estado quanto as águas é o caso em que as obras para sua captação houverem sido contratadas pelo Governo Federal.

As águas minerais, segundo definição constante no art. 1º Decreto-lei nº 7.841, de 8/08/45 - Código de Águas Minerais “são aquelas provenientes de fontes naturais ou de fontes artificialmente captadas que possuam composição química ou propriedades físicas ou físico-químicas distintas das águas comuns, com características que lhes confiram uma ação medicamentosa”.

Conforme mencionado, a origem da água subterrânea é a mesma das águas minerais, diferenciando-se uma da outra por sua composição química, origem da fonte, temperatura e gases presentes. Esses aspectos determinam a forma de uso: consumo como bebida, apenas para banhos e se são terapêuticas ou não.

Assim, considerando não haver o que justifique ser dado tratamento diferenciado, a norma constitucional, assim como a legislação infraconstitucional, não fizeram qualquer restrição quanto à gestão das águas por parte dos Estados, detentores de sua propriedade, seja ela considerada “mineral” ou não. Tanto é que a outorga dos recursos hídricos em mananciais localizados dentro dos limites do Estado não é responsabilidade da Agência Nacional de Águas - ANA, mas do órgão gerenciador estadual, que no caso do Ceará é a Secretaria dos Recursos Hídricos – SRH.

Sabe-se que para que seja extraída a água mineral o interessado tem que submeter-se ao crivo do Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, órgão da administração federal responsável pelo controle e fiscalização das substâncias minerais, não apenas quanto ao seu aproveitamento, mas também de sua comercialização, nos estritos termos do Decreto-Lei n.° 7.841, de 08 de agosto de 1945 (Código de Águas Minerais), e, do Decreto - Lei n.° 227, de 28 de fevereiro de 1967 (Código Minerário).

Ocorre que esta atuação do DNPM não há que ser confundida com as atividades do Estado quando do estabelecimento de sua Política de Recursos Hídricos. O primeiro realiza ações relativas ao desenvolvimento da atividade econômica dos mineradores; o segundo, aquelas referentes à disponibilidade da água como recurso indispensável à vida. É o que encontra-se estabelecido, conforme anteriormente mencionado, no art. 2º, inciso IV da Lei Estadual nº 14.844/2010:

Art.2º São objetivos da Política Estadual de Recursos Hídricos:

(...)II - assegurar que a água, recurso natural essencial à vida e ao desenvolvimento sustentável, possa ser ofertada, controlada e utilizada, em padrões de qualidade e de quantidade satisfatórios, por seus usuários atuais e pelas gerações futuras, em todo o território do Estado do Ceará;

A água mineral, inserida no contexto de água subterrânea, integra a disponibilidade hídrica do Estado, a ser monitorada e fiscalizada quando do seu uso, não havendo como ser desconsiderada quando do balanço hídrico realizado pelo órgão gestor. Antes de ser bem disponível para comercialização e lucro pelas empresas engarrafadoras, é um bem finito e necessário, cuja disposição, em caso de escassez, deve ser priorizada para abastecimento humano e dessedentação de animais, quando da concessão da OUTORGA (Lei. Federal 9433/97, art. 1o, inciso III e Lei Estadual 14844/2010, art. 3º, inciso VIII).

A Lei 14.844 define a outorga como ato administrativo de competência do Secretário dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará, no qual será autorizado o uso de determinado recurso hídrico nos termos e condições expressas no ato respectivo, sem prejuízo das demais formas de licenciamento ambiental a cargo de instituições competentes. É um instrumento de gestão de recursos hídricos, que tem como objetivo efetuar o controle do uso e assegurar o direito de acesso à água, condicionada às prioridades estabelecidas no Plano Estadual de Recursos Hídricos e nos Planos de Bacias Hidrográficas.

Define a mencionada lei, ainda, os casos de necessidade de outorga de uso de água, no art. 7º, verbis:

Art.7º Estão sujeitos à outorga de direito de uso de recursos hídricos:

I - )...);

II - extração de água de aquífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo;

III - (...)

IV - outros usos ou interferências que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo hídrico. (GRIFO NOSSO)

O texto legal não faz, portanto, qualquer ressalva à existência de água com características diferenciadas no aquífero, dispensando a exigibilidade da outorga para o seu uso, seja para consumo final ou insumo de processo produtivo. Para caracterizar a oferta de água, há que se ter uma rede de monitoramento com dados sobre a quantidade e a qualidade das águas a fim de seja controlada a demanda, através de um cadastro atualizado de usuários, inclusive aqueles que comercializam a água mineral.

A cobrança pelo uso da água, por sua vez, é indispensável para uma gestão eficiente dos recursos hídricos. É importante que a sociedade e aos próprios usuários entendam que a cobrança conduz à utilização mais racional dos recursos hídricos e, além disso, viabiliza a execução de investimentos e serviços para a preservação ambiental e o atendimento dos próprios usuários da bacia hidrográfica.

A incidência da outorga e da cobrança sobre o uso da água mineral, é incontestável sobre o ponto de vista da necessidade do estabelecimento de limites na atividade econômica das empresas que realizam a sua extração. É impensável que num cenário de escassez de água, presente no semiárido cearense, seja considerada a possibilidade de retirar da competência do poder público estadual o controle da atividade extratora, sem que este uso possa ser objeto de fiscalização e de medidas de contenção, quando necessárias, por parte do órgão gerenciador estadual. Sobre a extração de água dos aquíferos subterrâneos, a revista “Águas Subterrâneas – Um Recurso a Ser Conhecido e Protegido”, do Ministério do Meio Ambiente aduziu:

A renovação (recarga) das águas retiradas dos aqüíferos nem sempre ocorre na mesma velocidade da extração, o que pode provocar a superexplotação ou sua exaustão. Nesse sentido, a exploração das águas subterrâneas exige um monitoramento constante dos volumes extraídos”.

Ainda na mesma publicação o MMA adverte:

A superexplotação, ou seja, quando a extração de água ultrapassa o volume infiltrado, pode afetar o escoamento básico dos rios, secar nascentes, influenciar os níveis mínimos dos reservatórios, provocar subsidência (afundamento) dos terre-nos, induzir o deslocamento de água contaminada, salinizar, provocar impactos negativos na biodiversidade e até mesmo a exaurir completamente o aquífero.

Em áreas litorâneas, a superexplotação de aquíferos pode provocar a movimentação da água do mar no sentido do continente, ocupando os espaços deixados pela água doce (processo conhecido como intrusão da cunha salina)”.

Ademais, quanto ao aspecto da competência, há que se destacar a dificuldade dos órgãos gestores estaduais e federais em promover o gerenciamento das águas separadamente, dentro dos limites de um mesmo aquífero. Questionada sobre o assunto assim manifestou-se a Coordenadora de Gestão dos Recursos Hídricos da SRH, Dra. Nice Maria da Cunha Cavalcante:

Sendo parte do mesmo lençol freático águas com diferentes composições, consideramos a impossibilidade técnica de promover-se um gerenciamento diferenciado para umas e outras por parte de órgãos das esferas Federal e Estadual, com base em suas qualidades físico-químicas dentro de um mesmo aquífero.

Deve ser considerado, ainda, que o ciclo da água é dinâmico e que, portanto, a 'água' que encontramos hoje na superfície de um rio amanhã encontraremos infiltrada em um aquífero, retornará depois a superfície, evaporará e novamente voltará a superfície através da chuva; isso só reforça o fato de que tal medida impossibilitaria a realização de um balanço hídrico eficiente no Estado e que independente de sua composição ela continua sendo água”.

Outro dispositivo legal que vem sendo utilizado para questionar a legitimidade da cobrança por parte dos Estados pelas empresas que comercializam a água mineral é à Resolução nº 76, de 16 de outubro de 2007 – CNRH, que estabelece diretrizes gerais de integração entre a gestão de recursos hídricos e a gestão mineral. O argumento, de que a necessidade de troca de informações se dá em virtude de os bens de cada ente federado ser distinto, cai por terra na medida em que a própria necessidade de elaboração do dispositivo reforça o entendimento de que existem competências diferenciadas a serem ajustadas e de que, juntas, formam um todo que se complementa. A esfera Federal atua quando da extração do minério como atividade econômica, ficando resguardada a atuação do Estado como gerenciador da água como recurso hídrico a ser preservado por sua condição de essencialidade à vida e cujo uso deve ser outorgado nos limites das condições locais.

No próprio bojo da Resolução nº 76 – CNRH são definidas as informações a serem compartilhadas, dentro da competência de cada órgão, devendo este atender aos limites de sua atuação. É o que vemos nos incisos I e II do parágrafo único do art. 3º, que transcrevemos:


 

Art. 3o- O órgão gestor de recurso hídrico competente e o órgão gestor de recursos minerais, com vistas a facilitar o processo de integração, devem buscar o compartilhamento de informações e compatibilização de procedimentos, definindo de forma conjunta o conteúdo e os estudos técnicos necessários, consideradas as legislações específicas vigentes.

Parágrafo único. As informações a serem compartilhadas referem-se, no mínimo:

I - aos títulos de direitos minerários de pesquisa ou lavra de águas minerais, termais, gasosas, potáveis de mesa ou destinadas a fins balneários para a sua inclusão no Sistema de Informações de Recursos Hídricos e consideração pelos órgãos gestores de recursos hídricos;

II - aos atos administrativos relacionados ao uso de recursos hídricos, tais como: outorgas de direito de uso, manifestações prévias e autorizações de construção de poços, para a sua inclusão no sistema de informações de recursos minerais e consideração pelo órgão gestor de recursos minerais; (GRIFOS NOSSOS)


 

O mesmo texto determina a necessidade de atendimento aos ditames da Lei nº 9.433/97 e demais Resoluções do CNRH, quando estabelece:

Art. 4o- O órgão gestor de recursos minerais dará conhecimento do requerimento de autorização para pesquisa de água mineral, termal, gasosa, potável de mesa ou destinada a fins balneários e respectiva área ao órgão gestor de recurso hídrico competente, que deverá se manifestar sobre possíveis impedimentos à pesquisa, observando as diretrizes e princípios traçados pela Lei no- 9.433, de 1997 e Resoluções do CNRH.

Assim, fica claro que não há que se falar em inaplicabilidade da Lei Estadual à água mineral, quando considerada unicamente como recurso hídrico pertencente ao Estado, baseando-se os argumentos no fato de que está obrigada a empresa que comercializa a água mineral a subordinar-se também à legislação específica que trata a água como minério, quando da sua lavra e comercialização.

O que transparece existir, por parte de quem assim interpreta a legislação, é um interesse resguardado, que visa unificar o custo produtivo considerando apenas o bem como minério, eximindo-se de assumir os custos do mesmo bem, a água, enquanto recurso hídrico. Seria como absurdamente se afirmar que ÁGUA mineral não é ÁGUA. Água mineral é um recurso de natureza híbrida, considerando suas características peculiares, podendo se dizer que é recurso hídrico e ao mesmo tempo recurso mineral, o que faz incidir pelo seu uso obrigações tanto diante do ente federal como do estadual.

Neste momento, cabe fazer-se uma explanação relativa à natureza jurídica da cobrança pelo uso da água bruta.

Inicialmente entendamos do que se tratam os valores pagos pela requerente à União, através do DNPM. A Constituição Federal autoriza a concessão da lavra de recursos minerais, que incide sobre o faturamento líquido advindo da exploração destes bens, através da chamada compensação financeira pela exploração de recursos minerais – CFEM. São dedutíveis, portanto, para apuração da base de cálculo do CFEN, todas as despesas pagas ou incorridas pelo minerador desde a extração até a entrega do produto comercializado, bem como, ICMS, IOF, etc. A cobrança da água bruta, assim, é uma despesa dedutível quando da apuração da CFEM.

Os bens públicos são classificados em bens de uso comum, especial ou dominical. Os minerais são considerados bens dominicais, por serem passíveis de exploração econômica, não possuem destinação pública específica, nem são livremente utilizados pela coletividade, podendo assim ser objeto de auferimento de receita pelo ente público. Assim, a natureza jurídica da cobrança realizada pelo DNPM é de receita originária, que na forma da Lei 4.320/64, consiste em qualquer ingresso de recurso financeiro ao tesouro público, independente de aumento patrimonial. Não pode ser considerada imposto, por ser este receita derivada, nem taxa, por não ser cobrada em razão da prestação de serviço público. Não é preço público nem tarifa, por não possuir natureza contratual.

Assim, podemos dizer que o CFEM é obrigação pecuniária, estabelecida pelo art. 20, § 1º da CF, da espécie participação no resultado da exploração de bem de propriedade pública.

Quando falamos da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, tratamos, porém, de tarifa, também conhecida como preço público, de natureza não tributária, que define-se como o valor cobrado pela prestação de serviços públicos por empresas públicas, sociedades de economia mista, empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos (art. 2° e 3° do Código de Defesa do Consumidor). Aqui, o Estado também é prestador de serviço público, porém por meio dos órgãos da administração indireta, ao contrário do tributo taxa, cobrado pelos órgãos da Administração Direta. É um instituto típico de direito privado, existente em uma relação de consumo, em que há a autonomia da vontade, a liberdade de contratar e de discutir cláusulas e condições de contrato, ou seja, do pacta sunt servanda.

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos está prevista na Lei nº 14.844/10, estabelecendo os arts. 15 e 16 o seguinte:

Art.15. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos objetiva:

I - reconhecer a água como um bem de valor econômico e dar ao usuário uma indicação de sua real importância;

II - incentivar a racionalização do uso da água;

III - obter recursos financeiros para apoiar estudos, programas e projetos incluídos nos Planos de Recursos Hídricos;

IV - obter recursos para o gerenciamento dos recursos hídricos.

Art.16. Será cobrado o uso dos recursos hídricos superficiais ou subterrâneos, segundo as peculiaridades das Bacias Hidrográficas, na forma como vier a ser estabelecido pelo CONERH, por meio de Resolução, a qual será enviada ao Governador do Estado do Ceará, que fixará o valor das tarifas por Decreto, obedecidos os seguintes critérios:

I - a cobrança pela utilização considerará a classe de uso preponderante em que for enquadrado o corpo de água onde se localiza o uso, a disponibilidade hídrica local, o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, a vazão captada e seu regime de variação, o consumo efetivo e a finalidade a que se destina;

II - a cobrança pelo transporte e a assimilação de efluentes do sistema de esgotos e outros líquidos de qualquer natureza considerará o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, a carga lançada e seu regime de variação, ponderando-se, dentre

outros, os parâmetros orgânicos e físico-químicos dos efluentes, atendendo à legislação pertinente e à natureza da atividade responsável pelos mesmos. (GRIFOS NOSSOS).

Por sua vez o Conselho Estadual de Recursos Hídricos reconheceu expressamente, através da Resolução 003/2009, de 18 de janeiro de 2010, a legalidade da cobrança pelo uso da água bruta para captação subterrânea de água mineral e água potável de mesa, quando estabeleceu:

Art.1º. As tarifas para os usos e usuários de água bruta de domínio do Estado, variarão dependendo dos seguintes usos, para captação superficial e subterrânea:

(…)

V - Água Mineral e Água Potável de Mesa:

T = R$1.036,65/1.000 m³;

A cobrança pelo uso da água bruta pelas empresas extratoras e envasadoras de água mineral, portanto, está amparada no ordenamento jurídico vigente, não havendo nenhum tipo de ressalva na Lei que dê margem a interpretação diferenciada.

Ademais, é importante ressaltar que a indústria de água mineral participa ativamente da Câmara Técnica de Águas Subterrâneas do Conselho estadual de Recursos Hídricos - CONERH, através da Federação das Indústrias do Estado do Ceará - FIEC, para onde são encaminhados os assuntos de interesse da área, que tem inclusive como participante membro do DNPM.

É necessário lembrar, não obstante, que a maioria das empresas que trabalham com exploração e envase de água mineral no Ceará encontram-se regularizadas perante a COGERH, várias delas em situação de adimplência. Tal fato deve-se principalmente ao exercício da atividade fiscalizadora exercida pela Secretaria dos Recursos Hídricos - SRH, que é instrumento da Política Estadual de Recursos Hídricos estabelecido no art. 5º, VII da a Lei nº 14.844/2010, tendo como enfoque a orientação aos usuários no sentido de promover o cumprimento legislação de recursos hídricos e ambientais (art. 14). Neste sentido foi firmado o Convênio de Cooperação Técnica nº 01/2011 com a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos - COGERH, o Conselho de Políticas e Gestão do Meio Ambiente - CONPAM e a Superintendência Estadual do Meio Ambiente – SEMACE, nos termos do § 3º do art. 62 da mesma lei, onde foram estabelecidas metas a serem cumpridas, dentre elas as chamadas “Campanhas de Regularização”, que visa promover a regularização do uso da água, nos termos da sua competência, em respeito aos objetivos fixados em lei, como órgão gestor. A Superintendência de Meio Ambiente do Estado do Ceará – SEMACE, paralelamente, tem exigido da Indústria da água mineral a outorga de uso dos recursos hídricos para liberação da licença ambiental.

5.CONCLUSÃO

O Brasil, conforme se viu, é um país rico em recursos hídricos padecendo, porém, de uma distribuição irregular das águas. As particularidades de cada região, como o semiárido nordestino e em especial o Estado do Ceará, requerem o estabelecimento de uma legislação específica de proteção às águas subterrâneas, aliada a um eficiente gerenciamento e monitoramento do seu uso por parte dos Governos Estaduais.

A outorga e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, aplicadas ao uso para comercialização da água mineral, são instrumentos necessários para que o órgão gestor estadual se imponha aos interesses econômicos particulares, em detrimento do interesse público maior, que é a disponibilização da água potável para as gerações presentes e futuras. A legislação vigente, conforme analisado, é suficiente para afastar a dominialidade da união, no que se refere à água mineral enquanto recurso hídrico, entes de ser considerada minério, dada a sua essencialidade.

6. Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.

BRASIL. Lei Federal nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Publicada no Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil de 23.3.1964, retificada no DOU de 9.4.1964 e retificada no DOU de 3.6.1964

BRASIL. Lei Federal nº 9.433, de 08 de janeiro de 1997.Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil (DOU) de 9.1.1997.

BRASIL. Lei Federal nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Publicada no DOU de 12.9.1990 (Edição extra) e retificado no DOU de 10.1.2007

CEARÁ. Lei Estadual nº 14.844, de 28 de dezembro de 2010. Dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos, institui o sistema integrado de gestão de recursos hídricos - SIGERH, e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial do estado do Ceará (DOE) de 30.12.2010

BRASIL. Decreto-Lei n.° 7.841, de 08 de agosto de 1945. Código de Águas Minerais. Publicado no DOU de 20.8.1945.

BRASIL. Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Resolução nº 76, de 16 de outubro de 2007. Estabelece diretrizes gerais para a integração entre a gestão de recursos hídricos e a gestão de águas minerais, termais, gasosas, potáveis de mesa ou destinadas a fins balneários. Conjunto de Normas Legais – Recursos Hídricos. Ministério do Meio Ambiente. 6ª Edição. 2008

CEARÁ. Conselho Estadual de Recursos Hídricos. Resolução nº 003/2009, de 18 de janeiro de 2010. Estabelece a atualização dos valores das tarifas cobradas pelo uso da água bruta. Disponível em <http://portal.cogerh.com.br/categoria3/legislacao-estadual/resolucoes>. Acesso em 28 fevereiro 2012.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente – MMA (2007). Revista Águas Subterrâneas – Um Recurso a Ser Conhecido e Protegido. Acesso em 29 fevereiro 2012

FRANCISCO, Wagner Cerqueira e. Água. Disponível em: <http://www.brasilescola.com/geografia/agua.htm>. Acesso em: 29 fevereiro 2012.

Anexo I


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 

Figura 1 – O Ciclo Hidrológico


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 


 

Figura 2 – Províncias e Subprovíncias Hidrogeológicas do Brasil


 

Sobre a autora
Rose Anne de Deus e Valle

Advogada - Atua na área de Recursos Hídricos desde 2006, na Assessoria Jurídica da Secretaria dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará.

Informações sobre o texto

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