1. Introdução
O uso do álcool para fins sociais remonta às civilizações mais antigas. Historicamente, sabe-se que a civilização egípcia é reconhecida como pioneira em avanços sociais que abrangem desde a escrita e recursos científicos, tangenciando ainda o uso de álcool para lazer. “Há milênios os egípcios já usavam bebida inebriante, obtida da fermentação da água da chuva e mel, enquanto nos festejos do Nilo entregava-se a orgias alcoólicas coletivas, utilizando substância conhecida pelo nome de Trag”. (BARRETO, 1979, p. 11). Significa dizer, portanto, que o uso de álcool sempre fez parte da cultura de muitas civilizações, inclusive as mais antigas.
Como engrenagem natural de uma sociedade funcional, que se aperfeiçoa e se torna mais complexa na medida de seus avanços, a utilização de álcool como mola propulsora de atividades de socialização, além de ser difundida mundialmente, trouxe consigo a necessidade de tutelar os excessos por ele causados. Em outras palavras, as descobertas e evoluções históricas, como um todo, precisaram passar por um processo de domesticação para adequar-se ao convívio social harmônico.
Desde a Antiguidade Clássica, fala-se a respeito dos limites e interseções entre o álcool e o Direito Penal.
[...] punimos uma pessoa até por sua ignorância, se ela for considerada responsável pela ignorância, como quando as penalidades são dobradas, no caso da embriaguez; efetivamente, a origem da ação está no próprio homem, pois estava ao seu alcance não ficar embriagado, e a embriaguez foi a causa de sua ignorância. (ARISTÓTELES, 1992, p. 57)
Aristóteles demonstra profundo conhecimento da natureza humana ao reconhecer que, mesmo em situações de desconhecimento de normas, a chamada ignorância, o agente não pode se isentar da responsabilidade pela consequência de seus atos, uma vez que a origem da ação de embriagar-se está no próprio homem.
A partir dessa cisão existente entre os efeitos do excesso de álcool e a necessidade de adequação a um modelo social determinado por um ordenamento jurídico, muito se falou a respeito dos efeitos devastadores da embriaguez.
Em sua Criminologia, Afrânio Peixoto formula um verdadeiro libelo-crime acusatório contra o alcoolismo. Começa por dizer que é irrisão ter o homem feito sua delícia das fezes de uma bactéria – o álcool é o produto de desassimilação de um Saccharomyces. Mostra as desastrosas consequências sobre o organismo humano e sobre a descendência do alcoólatra. Aponta as estatísticas da criminalidade, registrando seus índices mais elevados nos sábados e domingos e decrescendo daí por diante. Chama a atenção para a conduta dos governos, que não vacilam em auferir rendas a sua custa. Lembra a dizimação que ele produziu no pele-vermelha da América do Norte e em nosso selvagem, queimando-se antes com o cauim e, mais tarde, com o cauimtatá (cachaça) que o civilizado lhe deu. (NORONHA, 1991, p. 178).
Nesse sentido, é a lição de Noronha ao dissertar sobre a proposição de Peixoto acerca das causas escatológicas para um consumo reduzido, ou até mesmo totalmente extinto, de álcool.
Não há, contudo, esforços ou estudos capazes de dissuadir até os mais esclarecidos quando estes estão cientes de suas vontades e, sobretudo, confiantes em suas habilidades de controle. Cabe, portanto, ao Direito Penal estabelecer parâmetros limitadores.
Existem métodos empregados em diversos países buscando coibir os efeitos danosos do álcool, não somente as transgressões penais oriundas do excesso alcoólico, mas também a patologia: o alcoolismo. Datam do início do século XIX as primeiras manifestações de lideranças religiosas e políticas no sentido de proibir o uso de álcool nos Estados Unidos.
O período da “Lei Seca”, que vigorou nos Estados Unidos no ano de 1920, quando o Congresso criou uma Emenda Constitucional proibindo a fabricação e a venda de bebidas alcoólicas, até 1933, foi fortemente reforçado por essas manifestações. Seria, entretanto, reducionista afirmar que a proibição de bebidas foi fruto tão somente dessas manifestações religiosas e políticas.
É necessário um olhar apurado para o contexto histórico da época. No ano de 1917, os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial. A partir de então, surgiu a necessidade de racionamento de gastos, uma vez que os custos gerados pela guerra foram altíssimos. O gasto com cereais para a fabricação de bebidas alcoólicas, portanto, era algo a ser evitado. Assim, as manifestações de cunho religioso, moral e político, aliadas ao momento histórico oportuno, culminaram na sanção da “Lei Seca” em 1920.
Uma imposição jurídica que atinja a liberdade individual é algo frágil sob todos os prismas de observação, pois alcança costumes que, muitas vezes, estão arraigados na cultura de determinada sociedade. Há, portanto, uma interseção entre a vontade individual e a custódia do Estado. No caso da Lei Seca nos Estados Unidos, alternativas ilegais foram se delineando para suprir necessidades já enraizadas como hábito social.
A partir de então, bares clandestinos foram criados, e os chamados “gângsteres” ascenderam na pirâmide de poder, contrabandeando a mercadoria de outros países. No ano de 1933, o governo liberou a produção de cerveja, sendo a Lei Seca completamente revogada pouco tempo depois.
O exemplo americano ilustra que as proibições estatais que interfiram na esfera de hábitos privados de uma cultura são extremamente delicadas. Parece mais oportuno tratar a questão do ponto de vista educacional. Nessa perspectiva, Mansur defende a educação sobre o álcool como a única alternativa “unanimemente defendida pelos envolvidos na prevenção dos problemas associados ao beber, com programas escolares e campanhas dirigidas a todos” (MANSUR, 1988, p. 74). O autor destaca aqui a prevenção, e não a coação após o ilícito já ter acontecido, como única medida viável para a conscientização acerca do problema do álcool.
A embriaguez alcoólica, em seus diferentes níveis de manifestação, recebe atenção diferenciada sob a ótica do Código Penal Brasileiro. Isso porque existem diferentes fases, classificadas de acordo com as manifestações físicas e psíquicas produzidas, que influem diretamente na capacidade de compreensão e autodeterminação do indivíduo que comete um ilícito penal sob efeito de intoxicação etílica.
No Brasil, o uso de álcool se relaciona, sobretudo, com as culturas indígenas, que sempre tiveram como costume social o hábito de beber em rituais, ritos de passagem ou por mero prazer. Para o índio, a utilização de álcool ajuda no contato com o sobrenatural. Por essa razão, os excessos são tolerados, desde que não firam a harmonia social. O uso de bebidas nativas por missionários no Brasil colonial era muito comum. As bebidas eram feitas a partir de frutos da terra, como abacaxi e jabuticaba (RAMINELLI, 2005, p. 255).
Os fins sobrenaturais e de purificação que faziam parte da vivência do índio com o álcool não eram, contudo, parte integrante do consumo alcoólico pelos colonos. Nessa senda, é pertinente observar que o álcool se torna problema de interesse social e estatal a partir de sua interação com outros fatores. Como salienta Acselrad:
O problema da droga não existe em si, mas resulta do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sócio-cultural. Isto quer dizer que qualquer pessoa, a qualquer momento, pode encontrar um produto tóxico em seu caminho, mas sem dúvida, a maioria das pessoas que experimentam drogas, uma ou algumas vezes, não se tornarão doentes. Isso significa dizer que, diante da droga, não existe um destino “igual para todos (ACSELRAD, 2005, p. 199)
Existem, inclusive, relatos que remontam ao Brasil colonial e apontam para o uso de álcool como meio para maior submissão social. O beber indígena, antes revestido de significados místicos e traço cultural pungente de uma sociedade, foi substituído pela embriaguez, muitas vezes geradora de dependência alcoólica, do mesmo modo como acontecera com os escravos (RAMINELLI, 2005, p. 300). As preocupações jurídicas no ordenamento brasileiro relacionadas à embriaguez surgiram muito tempo depois. No Brasil, a preocupação estatal com substâncias entorpecentes aparece, pela primeira vez, no Regulamento Imperial de 1851, que instituía a polícia sanitária e disciplinava a venda de remédios (RODRIGUES, 2004, p. 126).
No século XIX, entretanto, a preocupação não era com a dignidade do ser humano como detentor de direitos, nem tampouco com a garantia desses direitos pelo Estado. Sob essa perspectiva, consoante a lição de Rodrigues:
A medicina se torna um instrumento do Estado na medida em que o corpo do indivíduo se torna alvo de vigilância e preocupação estatais, num instante em que o capitalismo industrial nascente visa a força produtiva do trabalhador, não estando em jogo sua capacidade intelectual, mas sua disponibilidade física para o trabalho (RODRIGUES, 2004, p. 96).
O autor acima citado clarifica que a preocupação do Estado não era com a saúde intelectual do indivíduo, mas sim com suas aptidões físicas, uma vez que o homem era, naquele momento histórico, o motor principal da produção. Seu valor era diretamente proporcional à sua força produtiva.
Trata-se de preocupação meramente relacionada com a força produtiva: o ser humano não é enxergado como tal, mas como parte de uma engrenagem que configura todo um aparato de trabalho gerador de capital. Não há que se falar em preocupação do Estado com os efeitos nocivos de substâncias entorpecentes, mas sim em zelo com a força produtiva.
“A embriaguez pode ser definida como a intoxicação aguda e transitória provocada pela ingestão de álcool ou de substâncias de efeitos análogos” (BATTAGLINI, 1973, p. 261). Há que se falar, contudo, da diferenciação, do ponto de vista médico-legal, entre embriaguez alcoólica e alcoolismo. A embriaguez alcoólica caracteriza-se pelo seu caráter passageiro e esporádico, podendo manifestar-se de maneira mais branda ou mais intensa. Tratam-se, portanto, de episódios esporádicos, sem viés patológico. O alcoolismo, entretanto, é uma doença crônica, caracterizada pela ingestão de álcool de maneira periódica e habitual.
Definido ainda pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um conjunto de comportamentos físicos, cognitivos e psicológicos que se desenvolvem graças ao consumo imoderado e repetido de álcool, o alcoolismo recebe tratamento diferenciado no Código Penal:
A embriaguez patológica manifesta-se em pessoas predispostas, e assemelha-se à verdadeira psicose, devendo ser tratada juridicamente como doença mental, nos termos do art. 26. em seu parágrafo único (BITENCOURT, 2008, p.158).
O presente estudo buscou aprofundar-se na embriaguez não patológica, suas diferentes fases e formas de manifestação, bem como as consequências relativas à culpabilidade e consequente imputabilidade referente a cada modalidade de embriaguez.
Frisa-se também que o ordenamento jurídico brasileiro compreende embriaguez como o estado físico e psicológico decorrente da utilização de álcool e outras substâncias análogas. Para os fins deste estudo, a análise minuciosa recairá sobre a embriaguez causada pela intoxicação etílica aguda, visto que, nesse estágio, o indivíduo apresenta comportamento agressivo que, muitas vezes, culmina na prática do ilícito penal.
2. Aspectos médico-legais
A embriaguez alcoólica apresenta diferentes fases de perturbação e confusão mental que se relacionam não somente com a quantidade de bebida ingerida, mas também com a tolerância alcoólica de cada organismo. Por esse motivo, uma mesma quantidade de álcool consumida por diferentes indivíduos pode ocasionar reações distintas.
A tolerância alcoólica, capacidade que cada pessoa tem de permanecer sóbria, depende de diversos fatores, e não apenas da dosagem ingerida. O peso, a habitualidade no ato de beber, o estado emocional e a ingestão de álcool associada a outras substâncias entorpecentes são determinantes nas manifestações comportamentais do embriagado. Esses comportamentos recebem, na terminologia médico-legal, a denominação de manifestações clínicas.
Ao cometer um ilícito penal em suposto estado de embriaguez, o indivíduo é submetido a uma perícia clínica que não se resume à simples determinação do teor alcoólico no sangue. Outros fatores externos são avaliados, a fim de conferir maior segurança à perícia.
A influência do álcool no comportamento de cada indivíduo é extremamente relativa.
Sendo relativa, para cada indivíduo a influência do álcool, prevalece a prova testemunhal sobre o laudo positivo da dosagem alcoólica. Impõe-se a solução, eis que aquela informa com maior segurança sobre as condições físicas do agente.
(TACRIM – AC – Juricrim – Relator Correia das Neves Franceschini, nº 2.008).
Disto se depreende a importância do exame clínico realizado pelo perito. Tal questão, contudo, ainda não é pacífica, tanto que muitos defendem a dosagem de álcool no sangue como o modo mais seguro e confiável de determinar a embriaguez. Para aqueles que coadunam com essa posição, o teor alcoólico classificatório da embriaguez varia entre 0,6 e 2,0 decigramas de álcool para cada 1.000 mililitros de sangue.
No exame clínico de embriaguez, o perito é obrigado a responder questões que vão além da taxa de álcool no sangue, como, por exemplo, se a embriaguez é completa ou parcial; se o paciente, no estado em que se encontra, pode colocar em risco a própria segurança e a segurança de terceiros; se há necessidade de tratamento compulsório, dentre outras.
A perícia da embriaguez é extremamente complexa justamente por envolver aspectos pessoais e circunstanciais. Em razão dessas variáveis, uma mesma taxa de álcool por litro de sangue pode ou não determinar o estado de embriaguez, dependendo do organismo de cada indivíduo.
Independentemente da coleta de sangue, o exame clínico é capaz de detectar sinais de ebriedade, como andar cambaleante, instabilidade emocional, irritabilidade, comportamentos agressivos e pupilas dilatadas que não reagem ao estímulo luminoso.
Em se tratando de crimes de trânsito, o Código de Trânsito Brasileiro sofreu alterações pela Lei n. 12.760/2012. O procedimento para detectar o estado de embriaguez, nesses casos, é distinto: cuida-se da verificação do teor de álcool por litro de ar alveolar, aferido pelo etilômetro, popularmente conhecido como bafômetro.
Nesse caso, o instrumento mede a concentração de álcool etílico no ar pulmonar, considerando-se incapaz de dirigir veículo automotor aquele que, submetido ao etilômetro, apresentar concentração igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar. A não obrigatoriedade do exame reforça, mais uma vez, a importância do exame clínico.
Em razão do princípio da legalidade e do princípio da não autoincriminação, conclui-se pela não obrigatoriedade de submeter-se ao teste de alcoolemia. Assim, ainda que o indivíduo se recuse ao teste do etilômetro ou à coleta de sangue, as alterações psicomotoras severas podem ser facilmente detectadas no exame clínico. Em outras palavras, o motorista pode se recusar ao exame de sangue e ao teste do etilômetro, mas não ao exame clínico.
Há ainda outras formas de detectar a presença de álcool no organismo, como por meio da saliva, da bílis ou da urina. Apesar de constituírem alternativas, a confiabilidade dos resultados obtidos pela coleta de sangue e pelo etilômetro é superior. No caso da saliva, por exemplo, a presença de substâncias redutoras voláteis pode levar a conclusões equivocadas.
A concentração de álcool na urina também é extremamente variável, devido a fatores como o número de micções, a quantidade de líquidos ingerida e o tipo de bebida consumida, tornando o método pouco confiável. Em se tratando de pesquisa bioquímica em cadáveres, desde que ainda não tenha ocorrido putrefação, a aferição pode ser realizada a partir da coleta de sangue da veia femoral, pois a putrefação produz substâncias que se assemelham ao álcool.
É aconselhável que o corpo ou o sangue coletado seja mantido em baixas temperaturas nas primeiras 24 horas, para evitar alterações na composição sanguínea. No caso de morte violenta — sobretudo em acidentes de trânsito — a medicina legal considera mais prudente a coleta do sangue venoso periférico, por aproximar-se com maior precisão da real concentração de álcool no sangue.
2.1. Fases da embriaguez
A medicina legal se reporta a uma lenda árabe para distinguir as fases da embriaguez. A doutrina majoritária aponta três fases: a fase de excitação, ou fase do macaco; a fase de confusão e agitação, ou fase do leão; e a fase de sono, ou fase do porco, também chamada de fase comatosa.
Na primeira fase, o indivíduo aparenta contentamento, mostra-se bem-humorado, satisfeito, muitas vezes exibido e loquaz, razão pela qual se compara tal estágio ao macaco. Nessa fase inicial, o indivíduo busca autoafirmação e ainda possui capacidade cognitiva suficientemente preservada, inclusive para inventar histórias de grandes feitos (LUIZ, 2007, p. 59).
É sabido que o comportamento delituoso pode ocorrer em qualquer fase da embriaguez. Entretanto, a medicina legal não concentra sua atenção nesse estágio, pois o ébrio se encontra, em regra, inofensivo, preocupado em se fazer notar, revelando segredos íntimos, apresentando comportamento egocêntrico e buscando demonstrar capacidade intelectual superior à real. O comportamento instável é o único aspecto que merece maior cuidado nessa fase.
Na segunda fase, a fase da confusão e agitação, o indivíduo apresenta perturbações sensoriais, torna-se agressivo, rebelde e mais predisposto à prática de ilícitos penais, sendo por isso o estágio de maior interesse médico-legal. A comparação com o leão decorre da agressividade manifesta, especialmente perceptível no trânsito (LUIZ, 2007, p. 59). O agente não observa atentamente as sinalizações ou opta por ignorá-las, bem como semáforos e pedestres.
É nesse segundo estágio que comumente ocorre a embriaguez preordenada, na qual o agente deliberadamente se embebeda para facilitar a prática do delito. Na fase médico-legal, o comportamento agressivo e rebelde do embriagado aumenta sua predisposição para transgressões, uma vez que suas percepções morais estão alteradas.
O último estágio da embriaguez, a fase do sono ou fase comatosa, é aquele em que a consciência do agente se encontra completamente comprometida. Observa-se andar cambaleante, dificuldade em permanecer em pé sem apoio, perda da noção de higiene — justificando a comparação com o porco — até chegar ao sono profundo. A capacidade de compreensão e as habilidades motoras também se encontram tão reduzidas que a prática de delitos esbarra em verdadeira impossibilidade física (LUIZ, 2007, p. 60).
Ora, se o agente mal consegue se manter de pé, e sua tolerância alcoólica está comprometida a ponto de o estágio final ser o sono profundo, evidencia-se por que a segunda fase recebe maior atenção. O agente ingeriu quantidade de álcool suficiente para comprometer suas percepções, mas não a ponto de incapacitar totalmente suas funções motoras e sensoriais.
A divisão em fases é proposta pelos doutrinadores da medicina legal porque, na prática, o cometimento de crimes e contravenções não está necessariamente vinculado a um estágio específico. Para fins de estudo das nuances do comportamento humano, bem como para pesquisas estatísticas, tal classificação mostra-se plenamente justificada.
Importa notar que a quantidade de álcool ingerida não é, obrigatoriamente, fator determinante do grau de embriaguez, dadas as particularidades do organismo de cada indivíduo, além de circunstâncias que influenciam diretamente a alteração do estado de consciência. Em outras palavras, um mesmo teor alcoólico ingerido por três pessoas distintas pode repercutir de modo que cada uma apresente manifestações correspondentes a fases diferentes, não necessariamente coincidentes entre si.
2.2. Modalidades de embriaguez
A embriaguez, além de se manifestar de diferentes formas de acordo com o teor alcoólico ingerido, divide-se também conforme as circunstâncias em que o indivíduo se coloca em estado de ebriedade. Acerca da embriaguez, colaciona-se a lição de Bitencourt:
A embriaguez no nosso ordenamento jurídico, sob o aspecto subjetivo, isto é, referente à influência do momento em que o agente coloca-se em estado de embriaguez, pode apresentar-se como: a) não acidental: voluntária (intencional) ou culposa (imprudente); b) acidental: caso fortuito ou força maior; c) preordenada. d) habitual e/ou patológica. (BITENCOURT,2008, p.368).
Trata-se de uma diferenciação fundamental no que tange à culpabilidade do autor da conduta delituosa em estado de embriaguez. Isso porque, conforme tal divisão, existem situações em que o agente se encontra biologicamente debilitado e alterado a tal ponto, sem que tenha manifestado essa vontade, que pode ter sua responsabilidade penal excluída ou diminuída.
O Código Penal, em sua Exposição de Motivos, acolheu a teoria da actio libera in causa para tratar dos crimes cometidos em estado de embriaguez. Essa teoria abrange não somente a conduta delituosa, mas também as circunstâncias que confluem para a embriaguez, considerando ora o estado de plena consciência e vontade, ora o estado em que o agente é arrastado à inconsciência.
A divisão mostra-se fundamental porque reflete diretamente na imputabilidade penal do agente. A capacidade de autodeterminação, associada à motivação voluntária ou involuntária no ato de embriagar-se, tem como resultado a responsabilização ou a isenção penal. Diferentemente da divisão por estágios de embriaguez — que possui cunho mais teórico e voltado a estudos específicos — as formas de embriaguez produzem efeitos práticos e incidem diretamente no tratamento penal conferido ao infrator.
Os motivos do tratamento diferenciado, conforme as circunstâncias que resultaram na embriaguez, tornam-se evidentes ao se considerar que o Código Penal Brasileiro é essencialmente repressor, isto é, a finalidade precípua da norma penal é inibir a conduta delituosa. Assim, ao equiparar a vontade do ébrio à vontade consciente de qualquer agente imputável, o legislador busca prevenir a embriaguez (BITENCOURT, 2008).
Ainda segundo Bitencourt (2008, p. 367):
Pelos postulados da actio libera in causa, se o dolo não é contemporâneo à ação, é, pelo menos, contemporâneo ao início da série causal de eventos, que se encerra como resultado danoso. Como o dolo é coincidente com o primeiro elo da série causal, deve o agente responder pelo resultado que produzir. Transportando essa concepção para a embriaguez, antes de embriagar-se o agente deve ser portador de dolo ou culpa não somente em relação à embriaguez, mas também em relação ao fato delituoso posterior.
2.2.1. Embriaguez não acidental
2.2.1.1. Voluntária (intencional)
A embriaguez voluntária é aquela em que o agente, com plena consciência e capacidade de autodeterminação preservada, ingere bebida alcoólica com o intuito de se embriagar. O aspecto voluntário não se refere à conduta praticada sob o efeito do álcool, mas sim ao ato de embriagar-se.
A partir disso, conclui-se que a embriaguez voluntária, ou dolosa, pode levar ao cometimento de crimes dolosos ou culposos. O tratamento penal, entretanto, não exclui nem diminui a responsabilidade, uma vez que o ato de se embriagar foi voluntário, e os resultados provenientes da embriaguez eram previsíveis.
2.2.1.2. Culposa
A embriaguez culposa é aquela em que o agente não possui o intuito de se embriagar, mas assim o faz por excesso. Trata-se de ingestão alcoólica imprudente. O excesso não é pretendido pelo agente, que, embora tivesse plena capacidade de autodeterminação antes do consumo de álcool, não visava à ebriedade.
Mais uma vez, o agente pode dar causa a crimes culposos ou dolosos, ainda que sua embriaguez tenha sido culposa. Pune-se aquele que não se embriagou de forma acidental, independentemente do aspecto subjetivo do crime por ele cometido.
2.2.2. Embriaguez acidental
2.2.2.1. Caso fortuito e força maior
Na embriaguez por caso fortuito, o agente não tem consciência de que está ingerindo substância entorpecente, ou sequer imagina que aquela substância, na quantidade ingerida, pode provocar estado de embriaguez.
No caso da embriaguez por força maior, não há relação entre a ingestão da substância e a vontade do agente. Isso porque, embora saiba que está sendo submetido ao consumo de algo capaz de gerar embriaguez, não pode evitá-lo. É o que ocorre em situações de coação, em que o indivíduo é obrigado a ingerir a substância.
Nesta senda, vale mencionar:
No caso fortuito não se evita o resultado porque é imprevisível; na força maior, mesmo que seja previsível e até previsto, o resultado é inevitável exatamente em razão da força maior. Se a embriaguez acidental for completa, poderá acarretar a irresponsabilidade penal, desde que advenha a respectiva consequência psíquica. Considera-se completa a embriaguez no segundo estágio, isto é, quando os reflexos ficam lentos, o pensamento fica confuso, a coordenação motora apresenta deficiências, a noção de distância fica prejudicada. Nessas circunstâncias, o agente perde a capacidade de entendimento ou de autodeterminação. Configurada a embriaguez completa e acidental é necessário comprovar-se que ela provocou, efetivamente a consequência psíquica, que é a perda de capacidade de discernimento ou de autodeterminação, ou de ambos, para então isentar a pena. (BITENCOURT, 2008, p. 370).
Percebe-se aqui a preocupação do legislador em assegurar que, apesar das circunstâncias que deram causa à embriaguez, a responsabilidade penal somente seja afastada quando houver total comprometimento da capacidade de autodeterminação, ou seja, quando a embriaguez for completa. Em outras palavras, para o reconhecimento da inimputabilidade, exige-se que a embriaguez acidental seja completa.
Em observância à coerência sistemática e ao aspecto subjetivo do ato de embriagar-se, a embriaguez acidental incompleta também recebe tratamento diferenciado no Código Penal: trata-se da imputabilidade diminuída, ou seja, causa de diminuição de pena. Percebe-se que, ainda que o agente não tenha dado causa à embriaguez — não se embriagado voluntariamente — se estava dotado de capacidade de autodeterminação e tinha consciência da ilicitude de sua conduta, não há que se falar em excludente de responsabilidade, mas sim em atenuante.
Na prática, a embriaguez acidental é rara, enquanto a não acidental é a mais comum. A distinção entre força maior e caso fortuito possui sobretudo utilidade didática.
Costuma-se distinguir-se entre caso fortuito e força maior: no primeiro, o resultado, se fosse previsível, seria evitável; na segunda, ainda que previsível ou previsto o resultado, é inevitável. Juridicamente (ou para o efeito de isenção de punibilidade), porém, equiparam-se o casus e a vis major: tanto faz não poder prever um evento, quanto prevê-lo ou poder prevê-lo, sem, entretanto, poder e, evitá-lo. (HUNGRIA, 1978, p. 138).
2.2.3. Embriaguez preordenada
Na embriaguez preordenada, o agente não só tem a intenção de se embriagar, como utiliza esse estado como mola propulsora da prática delituosa. A embriaguez funciona como elemento necessário para reforçar a coragem do indivíduo, que, desvinculado de suas inibições morais, sente-se suficientemente determinado para cometer o crime.
É necessária a distinção entre embriaguez voluntária e embriaguez preordenada. Na embriaguez voluntária, o indivíduo deseja a ebriedade, mas não tem a intenção de utilizá-la para fins criminosos. Já na embriaguez preordenada, a vontade antecedente de embriagar-se revela o propósito criminoso e a utilização da substância como meio.
A embriaguez preordenada não apenas mantém a responsabilidade penal do agente, como também configura causa de aumento de pena, dado o elevado grau de reprovabilidade da conduta. O propósito delituoso desencadeia todo o processo que leva ao estado de embriaguez, para somente então permitir a execução do crime planejado.
2.2.4. Embriaguez patológica
A embriaguez patológica recebe tratamento diferenciado pelo Código Penal. Ela é tratada, juridicamente, como doença mental, sendo, portanto, uma excludente de culpabilidade. Trata-se de um alcoolismo crônico, o indivíduo, por predisposição genética e outros fatores biológicos tem com a bebida uma verdadeira relação de dependência.
O alcoolista não é dono de sua vontade, a medida em que ele se encontra em total estado de dependência da bebida alcóolica. Não se fala aqui em vontade, mas sim em necessidade biológica. Ao contrário da embriaguez involuntária completa em que o agente faz jus à isenção de pena, neste caso o agente é inimputável.
As diferentes modalidades de embriaguez apresentam tratamento diferenciado no Código Penal. O aspecto subjetivo é levando em consideração não em relação a conduta delituosa, mas sim em relação a fase anterior a esta conduta, ou seja, o momento de embriaguez. O aspecto subjetivo é auferido quanto as causas voluntárias ou involuntárias que deram vazão a embriaguez, justificando assim o resultado penal diferente para cada modalidade.
REFERÊNCIAS
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BARRETO, João de Deus Menna. Novo prisma jurídico da embriaguez. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979.
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