Aspectos médico legais da embriaguez alcoólica e a culpabilidade do agente infrator

01/09/2016 às 17:29
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O presente artigo cuida dos aspectos médicos legais para qualificar as diferentes fases e modalidades da embriaguez bem como o tratamento jurídico dispensando no caso de crimes cometidos sob esse estado.

O uso do álcool para fins sociais remonta às civilizações mais antigas. Historicamente, sabe-se que a civilização egípcia é reconhecida como pioneira em avanços sociais que abrangem desde escrita, recursos científicos, tangenciando ainda o uso de álcool para lazer. “Há milênios os egípcios já usavam bebida inebriante, obtida da fermentação da água da chuva e mel, enquanto nos festejos do Nilo entregava -se a orgias alcoólicas coletivas, utilizando substância conhecida pelo nome de Trag”. (BARRETO, 1979, p. 11). Significa dizer, portanto, que o uso de álcool sempre fez parte da cultura de muitas civilizações, inclusive as mais antigas.

Como engrenagem natural de uma sociedade funcional que se aperfeiçoa e se torna mais complexa, na medida de seus avanços, a utilização de álcool como mola propulsora de atividades de socialização, além de ser difundida mundialmente, trouxe consigo a necessidade de tutelar os excessos causados por este. Em outras palavras, as descobertas e evoluções históricas como um todo, precisaram passar por um processo de domesticação para adequar-se ao convívio social harmônico.

Desde a Antiguidade Clássica, fala-se a respeito dos limites e intercessões entre o álcool e o Direito Penal.

[...] punimos uma pessoa até por sua ignorância, se ela for considerada responsável pela ignorância, como quando as penalidades são dobradas, no caso da embriaguez; efetivamente, a origem da ação está no próprio homem, pois estava ao seu alcance não ficar embriagado, e a embriaguez foi a causa de sua ignorância. (ARISTÓTELES, 1992, p.57)

Aristóteles demonstra profundo conhecimento da natureza humana, quando reconhece que, até em situações de desconhecimento de normas, a chamada ignorância, o agente não pode se isentar da responsabilidade da consequência de seus atos, uma vez que a origem da ação de embriagar-se, está no próprio homem.

A partir desta cisão existente entre os efeitos do excesso de álcool e a necessidade de adequar-se a um modelo social determinado por um ordenamento jurídico, muito falou-se a respeito dos efeitos devastadores da embriaguez

Em sua Criminologia, formula Afrânio Peixoto verdadeiro libelo-crime acusatório contra o alcoolismo. Começa por dizer que é irrisão ter o homem feito das fezes de uma bactéria – o álcool é o produto de desassimilação de um saccharomyces sua delícia. Mostra as desastrosas consequências sobre o organismo humano e sobre a descendência do alcoólatra. Aponta as estatísticas da criminalidade, registrando seus índices mais elevados nos sábados e domingos e decrescendo daí por diante. Chama a atenção para a conduta dos governos, que não vacilam em auferir rendas a sua custa. Lembra a dizimação que ele produziu no pele-vermelha da América do Norte e em nosso selvagem, queimando-se antes com o cauim e mais tarde com o cauimtatá (cachaça) que o civilizado lhe deu. (NORONHA, 1991, p. 178).

Nesse sentido é a lição de Noronha, ao dissertar sobre a proposição de Peixoto acerca das causas escatológicas para um consumo reduzido, ou até mesmo totalmente extinto de álcool.

Não há, contudo, esforços ou estudos capazes de dissuadir até os mais esclarecidos quando estes estão cientes de suas vontades e, sobretudo, confiantes em suas habilidades de controle. Cabe, portanto, ao Direto Penal estabelecer parâmetros limitadores.

Existem métodos empregados em diversos países buscando coibir os efeitos danosos do álcool, não somente as transgressões penais oriundas do excesso alcóolico, mas também a patologia, o alcoolismo. Datam o início do século XIX as primeiras manifestações de lideranças religiosas e políticas no sentido de proibir o uso de álcool nos Estados Unidos.

 O período da “Lei Seca”, que vigorou nos Estados Unidos no ano de 1920, quando o Congresso criou uma Emenda Constitucional proibindo a fabricação e a venda de bebidas alcóolicas, até 1933, foi altamente reforçado por estas manifestações. Seria, entretanto, reducionista, afirmar que a proibição de bebidas foi fruto tão somente destas manifestações religiosas e políticas.

É necessário um olhar apurado para o contexto histórico da época. No ano de 1917 os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial. A partir de então surgiu a necessidade de racionamento de gastos, uma vez que os custos gerados pela Guerra foram altíssimos. O gasto com cereais para a fabricação de bebidas alcoólicas, portanto, era algo a ser evitado. Assim, as manifestações de cunho religioso, moral e político, aliados ao momento histórico oportuno culminou na sanção da “Lei Seca” em 1920.

Uma imposição jurídica que atinja a liberdade individual é algo frágil sob todos os prismas de observação. Isto pois atinge costumes que já estão, muitas vezes, arraigados na cultura de determinada sociedade. Há, portanto uma intercessão entre a vontade individual e a custódia do Estado. No caso da Lei Seca nos Estados Unidos, alternativas ilegais foram se delineando de maneira a suprir as necessidades já enraizadas como um hábito social.

A partir de então, bares clandestinos foram criados, e os chamados “gângsteres” ascenderam na pirâmide de poder, contrabandeando a mercadoria de outros países. No ano de 1933 o governo liberou a produção de cerveja, sendo a Lei Seca completamente revogada pouco tempo depois.

O exemplo americano ilustra que as proibições estatais que interfiram na esfera de hábitos privados de uma cultura são extremamente delicadas. Parece mais oportuno tratar a questão do ponto de vista educacional. Nessa perspectiva Mansur defende a educação sobre o álcool como a única alternativa “unanimemente defendida pelos envolvidos na prevenção dos problemas associados ao beber, com programas escolares e campanhas dirigidas a todos” (MANSUR, 1988, p. 74). O autor destaca aqui a prevenção, e não a coação após o ilícito já ter acontecido, como única medida viável para a conscientização acerca do problema do álcool.

A embriaguez alcoólica, em seus diferentes níveis de manifestação, recebe atenção diferenciada sob a ótica do Código Penal Brasileiro. Isto pois existem diferentes fases, classificadas de acordo com as manifestações físicas e psíquicas produzidas, que influem diretamente na capacidade de compreensão e autodeterminação do indivíduo que comete um ilícito penal sob efeito de uma intoxicação etílica.

No Brasil, o uso de álcool se relaciona, sobretudo, com as culturas indígenas, que sempre tiveram como costume social o hábito de beber em rituais, ritos de passagem ou por mero prazer. Para o índio a utilização de álcool ajuda no contato com o sobrenatural. Por esta razão os excessos são tolerados, desde que não firam a harmonia social. O uso de bebidas nativas por missionários no Brasil colonial era muito comum. As bebidas eram feitas a partir de frutos da terra, como abacaxi e jabuticaba (RAMINELLI, 2005, p. 255).

Os fins sobrenaturais e de purificação que faziam parte da vivência do índio com o álcool, não eram, contudo, parte integrante do consumo alcóolico pelos colonos. Nesta senda é pertinente a observação de que o álcool, se torna problema de interesse social e estatal a partir de sua interação com outros fatores. Como salienta ACSELRAD:

O problema da droga não existe em si, mas resulta do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sócio-cultural. Isto quer dizer que qualquer pessoa, a qualquer momento, pode encontrar um produto tóxico em seu caminho, mas sem dúvida, a maioria das pessoas que experimentam drogas, uma ou algumas vezes, não se tornarão doentes. Isso significa dizer que, diante da droga, não existe um destino “igual para todos (ACSELRAD, 2005, p. 199)

Existem, inclusive relatos, que remontam o Brasil colonial e apontam para o uso de álcool como como meio para uma maior submissão social. O beber indígena, antes revestido de significados místicos e traço cultural pungente de uma sociedade, foi substituída pela embriaguez, muitas vezes geradora de uma dependência alcóolica, do mesmo modo que acontecera com os escravos (RAMINELLI, 2005 p.300). As preocupações jurídicas no ordenamento brasileiro que se relacionam com a embriaguez foram surgir muito tempo depois. No Brasil, a preocupação do Estado com as substâncias entorpecentes surge, pela primeira vez, no Regulamento Imperial de 1851, que instituía a polícia sanitária e disciplinava a venda de remédios (RODRIGUES, 2004, p.126).

No século XIX, entretanto, a preocupação não era com a dignidade do ser humano, como detentor de direitos, nem tampouco o Estado procurando garantir tais direitos. Sob essa perspectiva, consoante a lição de Rodrigues:

A medicina se torna um instrumento do Estado na medida em que o corpo do indivíduo se torna alvo de vigilância e preocupação estatais, num instante em que o capitalismo industrial nascente visa a força produtiva do trabalhador, não estando em jogo sua capacidade intelectual, mas sua disponibilidade física para o trabalho (RODRIGUES, 2004, p. 96). 

O autor acima citado clarifica que a preocupação do Estado não era com a saúde intelectual do indivíduo, mas sim com suas aptidões físicas, uma vez que o homem, era, naquele momento histórico, motor principal da produção O seu valor era diretamente proporcional a sua força produtiva.

Trata-se de uma preocupação meramente relacionada com a força produtiva, o ser humano não é enxergado como tal, mas como parte de uma engrenagem que configura todo um aparato de trabalho gerador de capital. Não há que se falar em preocupação do Estado com os efeitos nocivos de substâncias entorpecentes, mas sim em zelo com a força produtiva.

“A embriaguez pode ser definida como a intoxicação aguda e transitória provocada pela ingestão de álcool ou de substâncias de efeitos análogo” (BATTAGLINI, 1973, p.261). Há que se falar, contudo, da diferenciação, do ponto de vista médico-legal, entre embriaguez alcoólica e alcoolismo. A embriaguez alcoólica se caracteriza, sobretudo, pelo seu caráter passageiro e esporádico, podendo se manifestar de maneira mais branda ou mais intensa. Tratam-se, portanto, de episódios esporádicos, sem viés de patologia. O alcoolismo, entretanto, é uma doença crônica, que se caracteriza pela ingestão de álcool de maneira periódica e habitual.

Definido ainda pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um conjunto de comportamentos físicos, cognitivos e psicológicos que se desenvolvem graças ao consumo imoderado e repetido de álcool, o alcoolismo recebe tratamento diferenciado no Código Penal:

A embriaguez patológica manifesta-se em pessoas predispostas, e assemelha-se à verdadeira psicose, devendo ser tratada juridicamente como doença mental, nos termos do art. 26 em seu parágrafo único (BITENCOURT, 2008, p.158).

O presente estudo buscou aprofundar-se na embriaguez não patológica, suas diferentes fases e formas de manifestação, bem como as consequências relativas à culpabilidade e consequente imputabilidade referente a cada modalidade de embriaguez.

Frisa-se também que, o ordenamento jurídico brasileiro compreende embriaguez como o estado físico e psicológico decorrente da utilização de álcool e outras substâncias análogas. Para os fins deste estudo, a análise minuciosa será no que tange à embriaguez causada pela intoxicação etílica aguda, visto que, neste estágio, o indivíduo apresenta o comportamento agressivo que muitas vezes culmina na prática do ilícito penal.

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2.1 Aspectos médico-legais

A embriaguez alcoólica tem diferentes fases de perturbação e confusão mental que se relacionam não somente com a quantidade de bebida ingerida, mas também com a tolerância alcoólica de cada organismo. Por este motivo uma mesma quantidade de álcool consumida por diferentes organismos pode ocasionar diferentes reações.

A tolerância alcoólica, capacidade que cada indivíduo tem de ficar sóbrio, depende de outros fatores, não somente a dosagem ingerida. O peso, a habitualidade no ato de beber, o estado emocional, a ingestão de álcool administrada com outras substâncias entorpecente, são determinantes nas manifestações comportamentais do embriagado. Estes comportamentos têm a denominação médico-legal de manifestações clínicas.

Ao cometer um ilícito penal, em um suposto estado de embriaguez, o indivíduo é submetido a uma perícia clínica que não se resume a uma simples determinação do teor de álcool no sague. Outros fatores externos são avaliados, a fim de conferir maior segurança à perícia.

A influência do álcool no comportamento de cada indivíduo é algo extremamente relativo.

Sendo relativa, para cada indivíduo a influência do álcool, prevalece a prova testemunhal sobre o laudo positivo da dosagem alcoólica. Impõe-se a solução, eis que aquela informa com maior segurança sobre as condições físicas do agente. (TACRIM – AC – Juricrim – Relator Correia das Neves Franceschini, nº 2.008).

Disto depreende-se a importância do exame clínico realizado pelo perito. Tal questão, contudo, ainda não foi pacificada, tanto que muitos ainda defendem a dosagem de álcool no sangue como o modo mais seguro e confiável de determinar a embriaguez. De acordo com os que coadunam com este pensamento, o teor alcóolico que classifica a embriaguez varia entre 0,6 e 2,0 decigramas de álcool para cada1.000 mililitros de sangue.

No exame clínico de embriaguez, o perito é obrigado a responder algumas questões que vão além da taxa de álcool no sangue, como por exemplo se a embriaguez é completa ou parcial, se o paciente, no estado em que se encontra, pode colocar em risco a sua segurança e a segurança de outros, se há necessidade de tratamento compulsório, dentre outros.

A perícia da embriaguez é extremamente complicada justamente por questões que abrangem aspectos pessoais e circunstanciais. Devido a circunstâncias variáveis de acordo com o organismo de cada indivíduo que ingere álcool, uma mesma taxa de álcool por litro de sangue pode determinar o estado de embriaguez ou não.

Independente da coleta de sangue, o exame clínico é capaz de detectar sinais de ebriedade, como por exemplo o andar cambaleante, instabilidade de irritabilidade, comportamentos agressivos e pupilas dilatadas que não reagem ao estímulo da luz.

Em se tratando de crimes de trânsito, o Código de Trânsito Brasileiro sofreu alterações pela Lei 12.760/2012. O procedimento para detectar o estado de embriaguez, nestes casos, é diferente. Cuida-se da verificação do teor de álcool por litro de ar alveolar através do etilômetro, popularmente conhecido como bafômetro.

Neste caso, o instrumento em questão mede a concentração de álcool etílico no ar pulmonar, sendo considerado incapacitado de direção de veículo automotor aquele que, ao submetido ao etilômetro, apresentar concentração igual ou superior a 0,3 miligramas de álcool por litro de ar. A não obrigatoriedade do exame, contudo, reforça mais uma vez a importância do exame clínico

Em razão do princípio da legalidade e do princípio da não autoincriminação é que se depreende a não obrigatoriedade se se submeter ao teste de alcoolemia. Mais uma vez a importância do exame clínico fica clarificada, visto que, ainda que o indivíduo se recuse ao teste do etilômetro e a fazer a coleta de sangue, as alterações psicomotoras severas podem ser facilmente detectadas no exame clínico. Em outras linhas, o motorista pode se recusar a fazer o exame de sangue e o teste do etilômetro, mas não de passar pelo exame clínico.

Há ainda, outras formas de detectar a presença de álcool no organismo, como por exemplo, através da saliva, da bílis e da urina. Apesar de serem outras alternativas, a confiabilidade dos resultados obtidos através da coleta de sangue e do teste de etilômetro são maiores. No caso da saliva, por exemplo, existem muitas substâncias redutoras voláteis que podem levar a conclusões equivocadas.

A concentração de álcool na urina também é extremamente variável, por fatores como o número de micções, a quantidade de líquidos ingerida pelo paciente, o tipo de bebida consumida, tornando-a um método de aferição não confiável. Em se tratando de pesquisa bioquímica em cadáveres, desde que ainda não tenha ocorrido a putrefação, a aferição poderá ser realizada a partir da coleta do sangue retirado da veia femoral. Isto pois a putrefação produz substâncias que se assemelham ao álcool.

É aconselhável que o corpo ou o sangue coletado sejam mantidos em baixas temperaturas nas primeiras 24 horas para que não haja alterações na composição sanguínea. No caso de morte violenta, o que é relevante, sobretudo em situações de acidentes de trânsito, a medicina legal aponta a coleta do sangue venoso periférico como a mais prudente, uma vez que é esta que se aproxima mais precisamente à concentração de álcool no sangue.

2.2 Fases da embriaguez

A medicina legal se reporta a uma lenda árabe para fazer a distinção das fases da embriaguez. A doutrina majoritária aponta como sendo três estas fases, quais sejam, a fase de excitação, fase do macaco, a fase de confusão e agitação, a fase do leão, e a fase de sono, a fase do porco, também chamada de fase comatosa.

Na primeira fase, o indivíduo aparenta contentamento, se mostra bem-humorado, satisfeito, muitas vezes exibido e loquaz, proveniente disto a comparação ao macaco. Nesta fase inicial, o indivíduo busca a autoafirmação e ainda possui a capacidade cognitiva afiada o suficiente inclusive para inventar histórias de grandes feitos (LUIZ, 2007, p.59).

É sabido que o comportamento delituoso pode acontecer em qualquer uma das fases de embriaguez, no entanto, a medicina legal não tem atenção focada nesta fase uma vez que o ébrio se encontra, muitas vezes inofensivo, com preocupação de se fazer notar, e para tanto, revela segredos íntimos, apresenta comportamento egocêntrico, preocupado em demonstrar uma capacidade intelectual maior do que a sua efetiva. O comportamento extremamente instável é o único fator que merece certa atenção nesta fase.

Na segunda fase, a fase da confusão e da agitação, o indivíduo apresenta perturbações sensoriais, se mostra agressivo, rebelde e mais predisposto a prática de ilícitos penais, sendo por isso a maior fase de interesse, também chamada de fase médico-legal. A comparação animal aqui é feita com o leão, uma vez que o embriagado se mostra claramente agressivo, comportamento comum, sobretudo no trânsito (LUIZ, 2007, 59). Não observa atentamente as sinalizações ou opta sumariamente por ignorá-las, bem como semáforos e pedestres.

É nesse segundo estágio de embriaguez que normalmente acontecem os casos de embriaguez preordenada, onde o agente deliberadamente se embebeda para a prática do delito. Na fase médico-legal, o comportamento agressivo e rebelde do agente, gera maior predisposição para transgressões uma vez que as percepções morais se mostram alteradas.

O último estágio de embriaguez, a fase do sono ou fase comatosa é aquela em que a consciência do agente se encontra completamente comprometida. O andar cambaleante, a dificuldade de se manter em pé sem se apoiar em paredes ou objetos, a perda da noção de higiene, portanto a alusão ao porco como animal definidor de tal fase, até chegar, por fim, ao estágio de sono profundo. A capacidade de compreensão e as habilidades motoras também se encontra comprometidas de tal forma que o cometimento de delitos esbarra em uma impossibilidade física (LUIZ, 2007, p.60).

Ora, se o agente em questão mal consegue se manter de pé, e sua tolerância alcoólica encontra-se comprometida de tal forma que o resultado final de tal estágio é o sono profundo, fica clarificado a atenção especial dada à segunda fase. O agente ingeriu uma dosagem alcoólica que compromete suas percepções, mas não a ponto de deixá-lo com a capacidade motora e sensorial plenamente debilitada.

Trata-se de uma divisão feita por doutrinadores da medicina legal pois, em termos práticos, o cometimento de crimes e contravenções não está necessariamente atrelado a uma fase específica. Para fins de estudos das nuances do comportamento humano, bem como para estudos estatísticos, a divisão da embriaguez em fases se encontra plenamente justificada.

Importa notar a questão da quantidade de álcool ingerida como não sendo, obrigatoriamente fator determinante do grau de embriaguez, em virtude das particularidades do organismo de cada um, bem como circunstâncias que influem diretamente na alteração do estado de consciência do agente. Em outras palavras, um mesmo teor de álcool ingerido por três indivíduos diferentes, pode repercutir de modo que cada um se comporte de acordo com as particularidades de cada fase, que não necessariamente é a mesma.

2.3 Modalidades de embriaguez

A embriaguez, além de se manifestar de diferentes formas de acordo com o teor alcóolico ingerido, é dividida também de acordo com as circunstâncias em que o indivíduo se coloca em estado de embriaguez. Acerca da embriaguez, colaciona-se a lição de Bitencourt:

A embriaguez no nosso ordenamento jurídico, sob o aspecto subjetivo, isto é, referente à influência do momento em que o agente coloca-se em estado de embriaguez, pode apresentar-se como: a) não acidental: voluntária (intencional) ou culposa (imprudente); b) acidental: caso fortuito ou força maior; c) preordenada. d) habitual e/ou patológica. (BITENCOURT,2008, p.368).

Trata-se de uma diferenciação fundamental no que tange à culpabilidade do autor da conduta delituosa em estado de embriaguez. Isto pois, ainda de acordo com essa divisão, existem situações em que o agente se encontra debilitado e alterado biologicamente de tal forma, sem que para tanto tenha manifestado tal vontade, que pode ter sua responsabilidade penal excluída ou diminuída.

O Código Penal, em sua exposição de motivos, aceitou a teoria do actio libera in causa para tratar dos crimes cometidos em estado de embriaguez. Esta teoria abrange não somente a conduta delituosa, mas tem o seu olhar voltado para as circunstâncias confluentes na embriaguez, isto é, ora o estado de plena consciência e vontade, ora arrastado ao estado de inconsciência.

A divisão se faz fundamental pois reflete na imputabilidade penal do agente, ou seja, a capacidade de autodeterminação acrescida à motivação voluntária ou involuntária no ato de embriagar-se tem como resultado a responsabilização ou isenção penal. Ao contrário da divisão de estágios de embriaguez, que possui um cunho muito mais teórico e voltado para estudos específicos acerca do tema, as divisões referentes às formas de embriaguez têm efeitos práticos que atingem diretamente o tratamento penal recebido pelo agente infrator.

Os motivos do tratamento diferenciado de acordo com as circunstâncias que resultaram na embriaguez são facilmente compreendidos quando se analisa que o Código Penal Brasileiro é essencialmente repressor, ou seja, a razão de ser da norma penal é inibir a conduta delituosa. Deste modo, ao igualar a vontade do ébrio à vontade consciente de qualquer agente imputável, a intenção do legislador é prevenir a embriaguez (BITENCOURT, 2008).

Ainda segundo Bitencourt (2008, p. 367):

Pelos postulados da actio libera in causa, se o dolo não é contemporâneo à ação, é, pelo menos, contemporâneo ao início da série causal de eventos, que se encerra como resultado danoso. Como o dolo é coincidente com o primeiro elo da série causal, deve o agente responder pelo resultado que produzir. Transportando essa concepção para a embriaguez, antes de embriagar-se o agente deve ser portador de dolo ou culpa não somente em relação à embriaguez, mas também em relação ao fato delituoso posterior.

2.3.1 Embriaguez não acidental

  1. Voluntária (intencional)

A embriaguez voluntária é aquela em que o agente, com plena consciência e capacidade de autodeterminação imaculada, ingere bebida alcóolica com o intuito de se embriagar. O aspecto voluntário aqui não diz respeito à conduta pratica sob efeito do álcool, mas sim ao ato de embriagar-se em si.

A partir disso, pode-se concluir que a embriaguez voluntária ou dolosa, pode levar ao cometimento de crimes dolosos e culposos. O tratamento penal dado, entretanto, não exclui nem diminui a responsabilidade penal, uma vez que o ato de se embriagar foi voluntário, bem como resultados provenientes desta embriaguez, poderiam ser previstos.

  1. Culposa

A embriaguez culposa é aquela em que o agente não tem o intuito de se embriagar, mas assim o faz por excesso. Cuida-se de uma ingestão alcóolica imprudente. O excesso não é pretendido pelo agente, que, apesar de ter plena condição de autodeterminação antes do consumo alcóolico, não o fez visando a ebriedade.

Mais uma vez, o agente pode dar causa a crimes culposos ou dolosos ainda que sua embriaguez tenha sido culposa. Pune-se assim o agente que não se embriagou de forma acidental, independente do aspecto subjetivo do crime por ele cometido.

2.3.2 Embriaguez acidental

  1. Caso fortuito e força maior

Em se tratando de embriaguez por caso fortuito, o agente não tem consciência de que está ingerindo substância entorpecente ou até mesmo, não tem ideia de que aquela substância na quantidade ingerida tem condições de provocar o estado de embriaguez.

No caso da embriaguez por força maior, não há associações entre a ingestão de substância entorpecente e vontade do agente. Isto pois, apesar de saber que está sendo submetido ao consumo de algo que pode gerar a embriaguez, não tem como evitá-lo. É o que acontece em casos de coação, onde o indivíduo é obrigado a ingerir a substância entorpecente.

Nesta senda, vale mencionar:

No caso fortuito não se evita o resultado porque é imprevisível; na força maior, mesmo que seja previsível e até previsto, o resultado é inevitável exatamente em razão da força maior. Se a embriaguez acidental for completa, poderá acarretar a irresponsabilidade penal, desde que advenha a respectiva consequência psíquica. Considera-se completa a embriaguez no segundo estágio, isto é, quando os reflexos ficam lentos, o pensamento fica confuso, a coordenação motora apresenta deficiências, a noção de distância fica prejudicada. Nessas circunstâncias, o agente perde a capacidade de entendimento ou de autodeterminação. Configurada a embriaguez completa e acidental é necessário comprovar-se que ela provocou, efetivamente a consequência psíquica, que é a perda de capacidade de discernimento ou de autodeterminação, ou de ambos, para então isentar a pena. (BITENCOURT, 2008, p. 370).

Percebe-se aqui a preocupação do legislador em assegurar que, apesar das circunstâncias que deram causa a embriaguez, a responsabilidade penal só resta completamente afastada caso haja total comprometimento da capacidade de autodeterminação, ou seja, que a embriaguez seja completa.  Em outras palavras, para reconhecimento da imputabilidade penal, exige-se que a embriaguez acidental seja completa.

Em detrimento da coerência e observando ainda o aspecto subjetivo do ato de embriagar-se, a embriaguez acidental incompleta também recebe tratamento diferenciado pelo Código Penal, cuida-se da imputabilidade diminuída, ou seja, uma causa de diminuição de pena. Percebe-se que ainda que o agente não tenha dado causa a embriaguez, ou seja, se embriagado de forma voluntária, estando ele dotado de capacidade de autodeterminação, tendo consciência da ilicitude de sua conduta, não há porque se falar em excludente de responsabilização penal, mas sim em atenuante de pena.

Em aspectos práticos, a embriaguez acidental é rara, sendo a não acidental a mais comum e verificada na prática. A distinção feita entre os casos de embriaguez por força maior e caso fortuito é relevante, sobretudo, para fins didáticos.

Costuma-se distinguir-se entre caso fortuito e força maior: no primeiro, o resultado, se fosse previsível, seria evitável; na segunda, ainda que previsível ou previsto o resultado, é inevitável. Juridicamente (ou para o efeito de isenção de punibilidade), porém, equiparam-se o casus e a vis major: tanto faz não poder prever um evento, quanto prevê-lo ou poder prevê-lo, sem, entretanto, poder e, evitá-lo. (HUNGRIA, 1978, p. 138).

2.3.3 Embriaguez preordenada

Na embriaguez preordenada o agente não só tem a intenção de se embriagar, como faz de tal, mola propulsora para a prática delituosa. A embriaguez é o elemento necessário para fortalecer a coragem do indivíduo, que, desvinculado de suas inibições morais, se sente determinado e corajoso o suficiente para cometer o crime em questão.

Há que se fazer a distinção necessária, entretanto, da simples embriaguez voluntária para a embriaguez preordenada. Na embriaguez voluntária o indivíduo tem o claro desejo de ebriedade, mas não há, contudo, a intenção de se utilizar desse estado para o cometimento de ilícitos. Ao passo que a vontade anterior ao ato de embriagar-se no caso de embriaguez preordenada, denota o fim criminoso e a utilização de substância entorpecente como meio.

A embriaguez preordenada não constitui somente causa de responsabilização penal, de punibilidade, mas também, devido ao alto grau de reprovabilidade da conduta, também é causa de aumento de pena. O propósito criminoso desencadeia todo o processo que resulta no estado de embriaguez, para só assim, levar a cabo a intenção delituosa pensada.

2.3.4 Embriaguez patológica

A embriaguez patológica recebe tratamento diferenciado pelo Código Penal. Ela é tratada, juridicamente, como doença mental, sendo, portanto, uma excludente de culpabilidade. Trata-se de um alcoolismo crônico, o indivíduo, por predisposição genética e outros fatores biológicos tem com a bebida uma verdadeira relação de dependência.

O alcoolista não é dono de sua vontade, a medida em que ele se encontra em total estado de dependência da bebida alcóolica. Não se fala aqui em vontade, mas sim em necessidade biológica. Ao contrário da embriaguez involuntária completa em que o agente faz jus à isenção de pena, neste caso o agente é inimputável.

As diferentes modalidades de embriaguez apresentam tratamento diferenciado no Código Penal. O aspecto subjetivo é levando em consideração não em relação a conduta delituosa, mas sim em relação a fase anterior a esta conduta, ou seja, o momento de embriaguez. O aspecto subjetivo é auferido quanto as causas voluntárias ou involuntárias que deram vazão a embriaguez, justificando assim o resultado penal diferente para cada modalidade.

                           

REFERÊNCIAS

____. Código Penal anotado e legislação complementar. 2ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998.

____. Direito Penal e Ação significativa. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.

ACSELRAD, G. A. Educação para a autonomia: construindo um discurso democrático sobre as drogas. In ACSELRAD, G. (Org.) Avessos do prazer: Drogas, AIDS e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário da Gama Kury. 2. ed. Brasília: UnB, 1992.

BARRETO, João de Deus Menna. Novo prisma jurídico da embriaguez. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979.

BATTAGLINI, Julio. Direito Penal Parte Geral, 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 1973.

BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 1. 13ª ed. São Paulo, Saraiva, 2008.

BRASIL, CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, de 23 de setembro de 1997. Lei nº 9.903. Código de Trânsito Brasileiro, Brasília, v. 1, nº1, outubro de 1997.

BUSTOS RAMIREZ, Juan & HORMAZÁBAL MALARÉE, H. Pena y Estado, In: Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá. Temis, 1982.

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