Tempos perdidos.

Nessa modernidade líquida, todas as relações sociais são por meras conveniências

21/09/2016 às 02:24
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Há um culto exacerbado ao individualismo, à solidão, onde ninguém deseja partilhar de suas vidas, angústias, nem sequer ocupar-se em discutir as questões de relevância social.

                                        

                                                                                           

            Há alguma coisa fora da ordem ou essa sensação decorre do fato de estarmos vivendo uma zona fronteiriça entre um período e outro da humanidade? Será que o sentimento de total deslocamento temporal e espacial decorre de algum fenômeno natural de transição, onde tudo se neutraliza para partir de um novo recomeço?

            Se tem algo que vem me intrigando, nos últimos tempos, é essa estranha sensação de ser um alienígena, um ser de outro planeta, de outra dimensão cósmica. As vezes penso que conviver em sociedade é, tão somente, parte de um sacrificante mal necessário, uma inevitável conveniência social. Talvez, se o Estado não detivesse o monopólio dos recursos naturais, e se toda e qualquer atividade, ainda que de subsistência, não fosse regulada pelo poder público, eu já teria aderido a um estilo de vida absolutamente eremítico. O problema é que tudo está nas mãos do capital e, por isso, tudo é uma relação mercantil. Desde a moradia, por menor que seja o pedaço de terra, tudo está tomado por algum detentor mais afortunado ou mais bem relacionado com o poder político. Os bens e produtos necessários à sobrevivência, tudo isso são mercantilizados e exigem de quem deles necessitam o necessário engajamento nessa relação de compra e venda. Até mesmo os sentimentos, o prestígio social, o prazer sexual, o afeto romântico, o respeito e consideração das pessoas, não passa de uma relação mercantil. É claro que tudo isso sempre foi assim. Em algumas épocas e povos às vezes menos, às vezes mais. E é exatamente esta a razão pela qual cada indivíduo está inevitavelmente interligado nessa organicidade social. Até os pobres, os miseráveis. Enganam-se aqueles que pensam que também os miseráveis não fazem parte da composição social. Talvez não integrando a sociedade de consumo. Mas são extremamente úteis às engrenagens do sistema político e econômico, aqueles que detêm o controle social. Possivelmente os moribundos não saibam, mas pobre e extremamente lucrativo. Que o diga a classe política.

            Reiteradamente, tenho manifestado que ando com uma visão um tanto quanto niilista da sociedade contemporânea. Mas, percebo que a sociedade brasileira tem uma peculiaridade. Há uma certa letargia mental que a caracteriza, tornando-a cada vez mais insuportável. Talvez seja em decorrência do reflexo dessa fase transitória pela qual atravessa o próprio universo. Sim. O universo está em período de transição: expansão em escala acelerada, a chamada “constante de Hublle”; aquecimento global, proximidade e riscos cada vez mais reais de algum asteroide ou cometas colidirem com a terra, etc. Entretanto, tem algo na sociedade brasileira que vem demonstrando que o Brasil está se tornando um lugar ruim para se viver. Há algo de errado com a nossa gente.

            Não são raras as vezes em que chego a pesar que está havendo a ação devastadora de algum vírus ou bactéria desconhecidos a corroer nossos cérebros, silenciosamente. Imperceptivelmente. Está em franca expansão uma multidão de zumbis, seres autômatos que marcham absolutamente resignados, programados, subservientes, totalmente desprovidos de qualquer capacidade de pensar, de refletir, de questionar. Tudo e todos parecem obedecer a um movimento previamente ajustado, onde não é permitido falar por si mesmo, pensar, em avançar a linha delimitadora imposta por uma nova modalidade de controle e disciplinamento social: o senso comum, ou, também conhecido como “politicamente correto”. A consequência disso é que todas as grandes questões que, em outras épocas e em outras sociedades, já foram de grande relevância da coletividade social, hoje passam ao largo, incólumes e indiferentes diante até mesmo daqueles que um dia foram conhecidos como “pessoas cultas e esclarecidas”.

            Possivelmente, o contexto político e social mundial esteja contribuindo para com esse estado de letargia. Não há mais utopias. Os jovens não são mais a força propulsora das revoluções. As inquietudes, outrora tão necessárias para impulsionar as transformações – científicas, sociais, artísticas, literárias, políticas -, foram substituídas pelo comodismo, pela aceitação de uma realidade vazia, sem sentido, embusteira, alienadora. E o que é pior: como a juventude não tem paradigmas nos humanos adultos, tudo indica que tardará muito para que desponte algum lampejo de luz no horizonte. Certa vez, presenciei, durante o intervalo de aula, na sala de professores em uma universidade, uma discussão absolutamente banal. Não que fosse uma conversa distraída. Tratavam, mesmo, de um assunto sério. E entre uma verborragia e outra, eles repetiam, em estribilho, que os jovens de hoje são mais burros, menos comprometidos com o ensino, apesar do farto e fácil acesso aos meios de informação. Eu redargui que, sim, é verdade. Todavia, isso não decorre de um fenômeno isolado. Para mim, trata-se da outra ponta, um reflexo, uma relação de causa e efeito. Se é verdade que os cursos universitários se propagam, dando ênfase ao mercantilismo e despejando trimestralmente bacharéis despreparados, como se fossem produzidos em série, é, igualmente, verdadeiro o fato de que também nunca houve tantos professores mestres e doutores. E a pergunta é: E daí? Então por que não se formam alunos para se tornarem profissionais e pessoas melhores, mais conscientes, mais críticos? Se os professores são mais cultos e melhores preparados tecnicamente, então por que razão formam tão precariamente os seus alunos?

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            Certa vez, durante um debate em sala de aula, alguns alunos manifestaram-me que se sentiam incomodados com a falta do debate político e social entre os estudantes. Reclamaram que em um momento tão importante da vida política no Brasil os Centros Acadêmicos (CAs) são pelegos que só se ocupam em promover baladas. Diante do desalento de uma jovem acadêmica eu tentei “reconfortá-la”: a situação do país está bem pior que isso. Acabei de sair da sala dos professores e, lá, ao invés do diálogo, havia gritaria, cada um buscando defender seus candidatos e partidos políticos. Todos visando seus interesses ou paixões partidárias. E as grandes questões políticas e sociais do país eram travadas como uma briga de torcida de futebol de terceira divisão. O país está atravessando uma crise histórica, com afetação danosa em instituições importantes à organização social como o judiciário, o ministério público, o sistema político, a violação e supressão sistemática dos direitos humanos e, principalmente, para a segurança jurídica em um estado democrático. A corrupção grassa desenfreada, atingindo e corroendo as instituições públicas em geral, com nefastos efeitos em nossa estrutura social e nossas aspirações civilizatórias. Todavia, ao invés da proposição do debate sério e responsável, assistimos aos efeitos da total falência ética, ocasionando a disputa sectária entre grupos que se rivalizam no afã de demonstrarem suas forças em defesa de seus inescrupulosos preferidos. Como as pessoas se odeiam, e não há nenhum sentimento de pertencimento numa sociedade marcada pelo egoísmo e pelo sentimento de mais valia, formam-se subgrupos, diversos deles, cada um engajado na defesa de seus interesses. Jamais, em hipótese alguma, visam o bem coletivo, a unidade social. Não é por acaso que a sociedade está subdividida em distintos fragmentos que se portam como se fossem absolutamente diferentes e pertencentes às classes distintas e incomunicáveis como gays, negros, lésbicas, feministas, etc. Agem como produtores de “estranhos sociais”, pois, ao invés de buscarem a integração, instigam e se empenham em fomentar o distanciamento, a segregação social, muitas vezes sob o pretexto cínico de “luta pela defesa dos direitos iguais”. Em uma definição de Richard Sennett, citado por Zygmunt Bauman, “uma cidade é um assentamento humano em que estranhos têm chance de se encontrar. Isso significa que estranhos têm chance de se encontrar em sua condição de estranhos, saindo como estranhos do encontro casual que termina de maneira tão abrupta quanto começou. No encontro de estranhos não há uma retomada a partir do ponto em que o último encontro acabou, nem troca de informações sobre as tentativas, atribulações ou alegrias desse intervalo, nem lembranças compartilhadas: nada em que se apoiar ou que sirva de guia para o presente encontro. O encontro de estranhos é um evento sem passado. Frequentemente é também um evento sem futuro”.

            As pessoas pretensamente mais esclarecidas parece que desistiram de vez de suas responsabilidades. Estão contribuindo para com o apequenamento das questões que, por sua natureza, são de grande importância social. Aderiram, portanto, à simbiose da futilidade, da indigência intelectual. Há um culto exacerbado ao individualismo, à solidão, onde ninguém deseja partilhar de suas vidas, angústias, nem sequer ocupar-se em discutir as questões de relevância social. E isso por uma razão muito óbvia: as pessoas não se sentem mais como sendo parte do corpo social. O contato social é efêmero e deve durar apenas o tempo indispensável às relações de consumo. Para Sennett, outra vez citado por Bauman, o que conhecemos por “civilidade” é a atividade que protege as pessoas umas das outras, permitindo, contudo, que possam estar juntas. Usar uma máscara é a essência da civilidade. A civilidade tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso”.  E é essa modernidade líquida, numa definição baumaniana, que contribui para com essa enorme depressão coletiva, onde as relações sociais estão se tornando cada vez mais insuportáveis e, dado ao seu estado de saturação, colapsando-se em si mesmas.

Sobre o autor
Manoel L. Bezerra Rocha

Advogado Criminalista, professor de Direito Penal, Processo Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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O presente texto pretende debater sobre a solidão social, na qual o indivíduo, tomado e dilacerado pela angústia de ter que suportar uma sociedade egoísta e narcisista, vê-se envolto em um terrível drama existencial. Esse drama, não raramente, conduz-o à indiferença e ao distanciamento das causas que, verdadeiramente, são de vital importância social.

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