No dia 14/04/16, o Plenário do STF, por maioria de votos, reconheceu a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo nº 954.408, reafirmando a jurisprudência dominante da Corte, no sentido de compreender legítimo o pagamento do abono de permanência previsto no art. 40, § 19, da CF/88 ao servidor público que opte por permanecer em atividade após o preenchimento dos requisitos para a concessão da aposentadoria voluntária especial prevista no art. 40, § 4º, da CF/88.
Neste julgado, o STF entendeu que o art. 40, § 19, da Constituição Federal não restringe a concessão do abono de permanência apenas aos servidores que cumprirem os requisitos necessários para a aposentadoria voluntária comum (regra permanente), tampouco veda o benefício aos que se aposentam com fundamento no art. 40, § 4º, da CF/88, na forma de seus precedentes, o ARE 782.834-AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 26/5/2014.
Assim, no entendimento do STF, é legítimo o pagamento do abono de permanência previsto no art. 40, § 19, da CF/88 ao servidor público que, embora tendo preenchido os requisitos para a concessão da aposentadoria voluntária especial do art. 40, § 4º, da CF/88, tenha optado por permanecer em atividade.
Pois bem, a questão aqui apresentada necessita ser analisada com bastante reserva, pois trata de uma modalidade diferenciada de aposentadoria, a especial, que visa, antes de qualquer outro direito periférico, proteger a saúde e a integridade física do servidor e, por que não dizer, sua própria vida.
Indo direito ao ponto, vejamos o que diz o §19 do art. 40 da CF/88, que é uma das hipóteses previstas no texto constitucional para a concessão do abono:
“O servidor de que trata este artigo que tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecidas no § 1º, III, a, e que opte por permanecer em atividade fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contidas no § 1º, II.”
No julgado acima mencionado, o STF firmou o entendimento de que o art. 40, § 19, da Constituição Federal não restringe a concessão do abono de permanência apenas aos servidores que cumprirem os requisitos necessários para a aposentadoria voluntária comum, isto é, a aposentadoria da regra permanente insculpida no art. 40, §1º, III, “a” da CF/88. Com base nesta decisão, os servidores que implementarem os requisitos dos incisos do §4º do art. 40 da CF/88, também farão jus ao abono de permanência previsto no §19.
Ora, vejam só, é tão claro quanto a luz do sol, que o §19 do art. 40, condiciona o pagamento do abono de permanência ao implemento dos requisitos da regra permanente do art. 40, §1º, III, “a” da CF/88.
Portanto, em regra, pelo §19, somente quem tiver implementado 10 anos de efetivo exercício no serviço público, 05 anos no cargo em que se dará a aposentadoria e tiver 35 anos de tempo de contribuição e 60 de idade, se homem, ou 30 de contribuição e 55 de idade, se mulher, fará jus ao abono de permanência.
E tem mais. Na decisão acima citada, o STF também afirma que o §19 não veda a concessão do abono de permanência aos que se aposentam com fundamento no art. 40, § 4º, da CF/88. Ora, obviamente, quando o texto condiciona e restringe, com todas as letras, o pagamento do abono de permanência ao implemento dos requisitos da regra permanente do art. 40, §1º, III, “a” da CF/88, está a vedar a concessão deste direito fora dos requisitos aqui elencados.
Em se tratando do §19, o abono está nitidamente previsto para quem alcançar os requisitos da regra comum, da regra cheia, de regra ordinária. Como assim, a regra permite abono com base em aposentadoria especial?
Mas tudo bem, é possível que nós estejamos fazendo uma interpretação muito rasa da norma constitucional. Uma interpretação pobre, sem a profundidade que o tema exige. Afinal de contas, a aposentadoria especial prevista nos três incisos do §4º do art. 40 da CF/88, nada mais é, como já tivemos a oportunidade de escrever em outro artigo, do que a regra permanente (comum) prevista no art. 40, §1º, III, “a”, com requisitos e critérios diferenciados.
Desta forma, se a aposentadoria especial nada mais é do que a aposentadoria comum com requisitos diferenciados, seria, em tese, lógico imaginar-se que regra especial também proporcionaria ao servidor o direito ao abono de permanência. O §19, portanto, contemplaria a aposentadoria comum e a especial. Seria isso, então?
De fato, esta tese até poderia ser plausível se não fosse um detalhe que faz toda diferença: a aposentadoria especial visa proteger um bem muito maior que o abono de permanência, muito mais valioso que a quantia devolvida pelo Estado a título de contribuição previdenciária. Visa proteger a dignidade, a saúde, a integridade física, a vida do servidor.
Eis aqui o ponto chave: qual a natureza e a razão de ser da aposentadoria especial? De onde veio? Para onde vai? O que objetiva proteger?
Sobre o tema, é de grande valia transcrevermos trecho extraído do artigo de Aline Machado Weber, denominado “Perfil Constitucional da Aposentadoria Especial”, publicado em 2013, no site Jus Navegandi, que define a natureza e o fundamento da existência desse tipo de aposentadoria no ordenamento jurídico pátrio. “In verbis”:
“Por outro prisma, alguns autores sustentam que a aposentadoria especial não constitui compensação ou recompensa pelo desgaste, mas medida antecipatória para que o risco a que se submeteu o segurado ao longo da vida laboral não se transforme em efetivo sinistro. O fundamento da aposentadoria especial, portanto, residiria na necessidade de se retirar o trabalhador do ambiente de trabalho nocivo antes de ter a saúde comprometida. Nesse sentido, Tsutiya defende que a aposentadoria especial foi instituída para afastar o segurado das condições de trabalho que podem lhe trazer prejuízo à saúde ou à integridade física(13). O tempo de contribuição seria diminuído para quinze, vinte ou vinte e cinco anos, a depender da atividade exercida, porque seria o tempo máximo a que o segurado pode ficar exposto sem vivenciar doenças ou, ainda, porque o ser humano submetido a certos esforços físicos ou riscos não tem condições de suportar o mesmo tempo de serviço exigido do trabalhador comum.
Por sua vez, Rocha e Baltazar Jr. entendem que a aposentadoria especial implica redução no tempo de serviço por presumir a lei que o desempenho de algumas atividades profissionais não poderia ser efetivado pelo mesmo período das demais(14). No mesmo sentido, Berbel sustenta que, suposta a perda substancial da capacidade laborativa a partir de certa idade e de determinado tempo de serviço, independentemente da invalidez, é possível, igualmente, prever que tal condição se implemente diante do trabalho em condições desgastantes em menor tempo de serviço(15). O argumento, que nos parece correto, vem complementado pela afirmação de Vianna, para quem o tratamento diferenciado residiria no princípio da igualdade, na medida em que o segurado submetido a condições especiais de trabalho não poderia receber da Previdência Social o mesmo tratamento de quem trabalha sob condições normais.(16)”
https://jus.com.br/artigos/26235/perfil-constitucional-da-aposentadoria-especial
Se esta modalidade de aposentadoria foi formatada no texto constitucional para proteger o servidor que está submetido a condições desfavoráveis de trabalho, cujas atividades ou o meio ambiente podem comprometer seriamente a saúde e a integridade física, como poderia ser plausível admitir-se que ele, invocando regras especiais com requisitos diferenciados, permanecesse nestas atividades prejudiciais com o fito de perceber o abono de permanência?
Compreendemos, pois, que a decisão do STF abre um precedente negativo e dissociado da real natureza jurídica da aposentadoria especial, pois vários servidores (policiais, pessoal da área de saúde, deficientes físicos) com esteio nesta decisão, poderão requerer o abono de permanência com base nos incisos do §4º do art. 40 da CF/88, podendo permanecer em atividade, no exercício destas mesmas atividades de risco e insalubres, até o implemento da idade de 75 anos.
O entendimento do STF, sem sombra de dúvidas, estimulará o servidor a permanecer em atividade, mesmo submetido a condições de risco ou que prejudiquem sua saúde e com um agravante: como a regra especial permite que ele se aposente mais cedo, tecnicamente, poderá permanecer por muito mais tempo, em comparação com a regra comum, percebendo o abono até o implemento da idade da aposentadoria compulsória. Esta realidade está na contramão do objetivo original da regra especial.
Ora, tal situação é de uma teratologia impensável, visto que desnatura completamente a razão de ser da aposentadoria especial. A exposição a agentes químicos e biológicos prejudica a saúde e a integridade física do servidor, abreviando sua vida. Qual o sentido de se permitir que o servidor submetido a condições que lhe prejudiquem permaneça em atividade apenas para receber de volta o valor de sua contribuição previdenciária?
A aposentadoria especial, embora ainda inda pendente de lei complementar que a regulamente, objetiva, em última análise, oferecer condições para que o servidor se aposente mais rápido, com exigência de tempo de contribuição menor em relação ao servidor comum, para que ele possa conviver, dentro do razoável, pelo menor tempo possível com os fatores que lhe prejudicam a saúde.
O servidor, ao invocar quaisquer dos incisos do §4º do art. 40 da CF/88, deve fazê-lo para se aposentar imediatamente, para preservar sua saúde que já está bastante comprometida pelos longos anos submetido a agentes nocivos, inobstante a utilização de EPIs.
Ora, para o servidor fazer jus ao abono, ele precisa implementar os requisitos da aposentadoria voluntária e permanecer em atividade. E invocar a regra especial para permanecer em atividade ao invés de aposentar-se é medida incompatível com o objetivo e o bem maior que a CF/88 visa proteger.
Aposentadoria especial e abono de permanência, portanto, são institutos excludentes. Não se associam, não podem conviver. O primeiro visa proteger um bem muito mais valioso que o segundo. O primeiro não pode ser invocado como supedâneo do segundo. São óleo e água. E não deveria haver alquimia que os misturasse. Mas esta, infelizmente, não é a visão do STF.