RESUMO
O presente artigo discorre, sobre Tratados Internacionais de Direitos Humanos, fazendo uma breve explanação sobre conceito, finalidade e surgimento, entretanto, tendo como objeto e foco especial de estudo o Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário, tratando-se da sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro e a colisão de algumas de suas disposições, com preceitos fundamentais expressos na Constituição Federal de 1988, principalmente no que diz respeito a aplicação de pena de caráter perpetuo que é vedada na ordem jurídica pátria, como também a entrega de nacional ao Tribunal Penal Internacional para submissão de julgamento, o que gera muitas controvérsias no âmbito jurídico nacional e doutrinário. Sendo de fundamental importância uma análise do referido estatuto sob a ótica da Constituição Federal.
Palavras-chave: Tratados internacionais; Estatuto de Roma; Constituição Federal.
Introdução
Não há que se olvidar que o ser humano é um ser mutável e social, ou seja, é um ser em constante processo de mudança e evolução e que não vive isoladamente.
Sendo assim, necessário perfaz, para que haja harmonia entre a coletividade, a obediência às regras internas, noutras palavras, a observância da Lei Maior (Constituição), em que se encontra positivada, as normas de direitos fundamentais da pessoa humana, direitos estes que, em tese, garantem a paz e harmonia dos nacionais do Estado, bem como, ao estrangeiro que nele resida ou se encontre transitoriamente, prestando desta forma a tutela jurisdicional sempre que alguém sofre lesão ou ameaça de lesão aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Com a nova dinâmica do mundo contemporâneo, devido aos reflexos trazidos pela globalização, que diminui “distâncias” e aproximou nações de todo mundo, necessário também, demonstrou-se uma proteção no plano internacional, proteção esta que se deu através de convenções, protocolo, tratados entre outros, que convergem ao desenvolvimento da paz e harmonia no âmbito internacional, submetendo os Estados membros à observância as ratificações dos tratados, acordos, convenções ou qualquer outro diploma legal do qual fizerem parte.
Nesta, diapasão, tem o presente artigo o escopo de analisar a inserção e aplicação de tais diplomas, no ordenamento jurídico brasileiro, em especial o Estatuto de Roma, objeto do presente trabalho e alvo de muitas controvérsias, uma vez que fora inserido no ordenamento jurídico brasileiro antes da emenda constitucional 45/04, não sendo pacífico qual seria o seu status na ordem jurídica pátria, como também, a polêmica envolvendo alguns de seus artigos de lei que mitigam a soberania interna e submetem nacionais brasileiros a penas que são vetadas pela ordem jurídica constitucional, levantando questionamentos acerca da inconstitucionalidade do ato que ratificou o supra Estatuto.
Assim, tem-se na primeira parte do presente trabalho, uma explanação acerca do surgimento dos tratados, com seu respectivo conceito e fim especifico para qual foi criado.
Doutra parte, faz uma breve análise dos tratados de direitos humanos, surgimento e finalidade para qual foi desenvolvido, perpassando-se a um quadro demonstrativo com os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, com o advento da Constituição de 1988, chegando-se ao Estatuto de Roma, objeto do presente trabalho acadêmico, onde serão discutidos pontos relevantes e controversos do referido Estatuto.
Por fim, encerra-se o artigo com as considerações finais, nas quais serão elencados os principais aspectos debatidos no desenvolvimento deste trabalho.
1 TRATADOS INTERNACIONAIS
O ser humano é a espécie que mais evoluiu na face terrena. Conseguiu se organizar e modificar o ambiente em sua volta, de acordo com as suas necessidades e ambições. Uma das suas características marcantes é a vida em comunidade, estabelecendo relações fundadas em sentimentos variados, a exemplo de amizade, amor, realização pessoal, fins econômicos, interesse social, paz.
Apesar de pertencente à mesma espécie, é peculiar da pessoa humana, a sua bagagem cultural, valorativa e crítica que muitas vezes colide com os interesses dos seus semelhantes. Por isso, no intuito de regular essas relações, foi criada a figura do Estado, que por meio de grande estrutura, é responsável pela formulação e aplicação adequada do Direito.
O complexo normativo de um Estado deve refletir a realidade do povo que vive sob a sua égide. É o que se extrai da teoria tridimensional do Direito, formulada por Miguel Reale (2003), a qual, ao editar uma lei, faz-se necessário considerar os fatos e os valores sociais daquele momento histórico. Nesse sentido, é pertinente que a legislação evolua conjuntamente à sociedade.
Com a globalização e os seus reflexos, as relações entre os povos de todo o planeta se tornaram corriqueiras, ensejando regramento próprio, uma vez que cada Estado possui as suas normas internas. Nessa perspectiva surgiram os tratados, acordos, convenções, protocolos, entre outras denominações que convergem a um fim específico, patentemente, criar mecanismos para que a comunidade internacional consiga alcançar os seus objetivos de desenvolvimento e paz mundial.
Tratando o tema conceitualmente, é mister aduzir de forma literal, o que ficou consignado na Convenção de Viena (1969) acerca de Direitos dos Tratados. O conceito formulado e assinado pelos signatários prescreve no art. 2º, 1, a, que Tratado significa: “um acordo internacional concluído entre Estados em forma escrita e regulado pelo Direito Internacional consubstanciado em um único instrumento ou em dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a sua designação específica”.
Como verificado, o tratado internacional pode versar sobre as mais variadas matérias, sejam elas com finalidade econômica, educacional, saúde, paz, entre outros. Contudo, o estudo em questão, traz um recorte, direcionando as análises aos tratados de Direitos Humanos, em especial, o Estatuto de Roma, ratificado pelo Brasil, constituindo o Tribunal Penal Internacional.
1.1 TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS
Os horrores provenientes das guerras, a ocorrência de crimes repugnantes e crueis, tratamentos desumanos dispensados a determinados grupos, suscitaram revoltas e muitas discussões em todo o mundo. A resolução de conflitos sociais por meio da violência não mais tem sustentação na contemporaneidade. Os atos de intolerância às diferenças, são combatidos na forma da lei.
Após muitos anos de violações, foi reconhecido que a pessoa humana é dotada de direitos naturais. Não precisa estar escrito para entender que a vida e a liberdade são preceitos fundamentais inerentes ao existir. Com isso, iniciou a era dos Direitos Humanos, fundamentada na Carta das Nações Unidas (1945), bem como, na Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH (1948) e outros diplomas internacionais importantes.
Os Direitos Humanos consolidam-se como reunião de valores inerentes à pessoa humana no tocante ao respeito à vida em seus diversos aspectos, em todas as gerações. São condições básicas para que o ser possa ter uma vida digna (MORAIS, 2002).
Segundo Piovesan (2008), o conceito de Direitos Humanos atual é decorrente da DUDH de 1948, inspirada em valores universais e indivisíveis. Sendo universais, por contemplar indistintamente a todos, bastando ostentar a qualidade de pessoa humana como único requisito. Já a indivisibilidade está entrelaçada pelo fato do Direito ser uno, ou seja, não pode ser tratado e concedido como dimensões isoladas, contemplando parte e cerceando outra. Portanto, direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais dever ser garantidos de forma completa, interdependente.
A dignidade da pessoa humana é o preceito basilar da constituição de muitos Estados e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Para que esses tratados ganhem força e irradiem as suas disposições é preciso que cada Estado signatário o ratifique, assinando e incorporando ao seu ordenamento jurídico.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, o Brasil ratificou relevantes tratados internacionais de Direitos Humanos, como descreve o quadro 01 abaixo.
Quadro 01 – Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil a partir da Constituição de 1988
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Denominação do Tratado |
Data de Ratificação |
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Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura |
20 de Julho de 1989 |
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Convenção contra Tortura e outros Tratamentos Crueis, Desumanos ou Degradantes |
28 de Setembro de 1989 |
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Convenção sobre os Direitos da Criança |
24 de Setembro de 1990 |
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Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos |
24 de Janeiro de 1992 |
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Convenção Americana de Direitos Humanos |
25 de Setembro de 1992 |
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Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher |
27 de Novembro de 1995 |
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Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte |
13 de Agosto de 1996 |
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Convenção Interamericana para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência |
15 de Agosto de 2001 |
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Estatuto de Roma – Criando o Tribunal Penal Internacional |
20 de Junho de 2002 |
Fonte: Piovesan, 2008.
O Brasil é signatário de diversos tratados de Direitos Humanos. O quadro acima foi idealizado para ilustrar alguns tratados ratificados a partir da vigência da Constituição Federal de 1988, que confere ampla proteção à dignidade da pessoa humana. Destaque-se, o último do elenco. Justamente, o Estatuto de Roma, foco central desta produção acadêmica.
1.2 O ESTATUTO DE ROMA E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
O Estatuto de Roma é um tratado internacional de Direitos Humanos, fruto de longos anos de discussão acerca da constituição de um tribunal permanente para dirimir questões da seara penal de grande vulto, ou seja, de interesse da sociedade mundial.
Foi firmado em 17 de Julho de 1998, em Roma, na Itália. Esse documento, composto por 128 artigos, criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), com jurisdição nos territórios dos países signatários e competência para julgar demandas criminais gravíssimas, a exemplo de genocídio e crimes de guerra. Dos países presentes, 120 votaram a favor, 7 votos contra e 21 abstenções (SILVA, 2002, pág. 13-14).
Antes do TPI, outros tribunais foram instituídos para julgar crimes contra a humanidade, mas com finalidade pontual e efêmera. São exemplos, o tribunal de Ruanda e de Nuremberg, sendo o último bastante criticado. O tribunal quando criado para julgar um caso especial acaba por configurar o que denomina-se pela doutrina especializada de “tribunal de exceção”. Contrário aos tribunais ad hoc, o TPI tem caráter permanente e sede fixa em Haia.
Um dos requisitos para que o estatuto tenha eficácia é a integral ratificação dos dispositivos nele inseridos. Isso significa que ao ratificar a participação, o Estado signatário aceita o texto com todos os seus artigos, implicando submissão total ao TPI. É o que se vê nos artigos 12 e 120 do comentado diploma internacional que assim expressa: “Art. 12. Condições prévias para o exercício da jurisdição: § 1º o Estado que se tornar parte no presente Estatuto aceita, por esse ato, a jurisdição do Tribunal sobre os crimes a que se refere o artigo 5º.” Outrossim, o art. 120 prevê que não se admite reservas ao estatuto.
Os supramencionados artigos (12 e 120) são temas férteis, responsáveis por muitas discussões doutrinárias e judiciais, tendo em vista, que ao aceitar tais medidas, o Estado mitiga a sua soberania e contraria alguns dispositivos do ordenamento jurídico interno.
Mais dois artigos são destacados para fins de discussão. É o 5º, que trata dos crimes de sua competência; e o 77, prevendo as penas aplicáveis pelo tribunal. O art. 5º estabelece a sua abrangência ao prescrever: a) O crime de genocídio; b) Crimes contra a humanidade; c) Crimes de guerra; d) O crime de agressão. Já o art. 77, determina que:
1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas:
a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou
b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem,
2. Além da pena de prisão, o Tribunal poderá aplicar:
a) Uma multa, de acordo com os critérios previstos no Regulamento Processual;
b) A perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa fé (BRASIL, 2002, p. 34-35).
Os crimes de jurisdição do TPI são demasiadamente graves e merecem tratamento preventivo e repressivo condizente a cada caso concreto. Ressalte-se que o ordenamento jurídico brasileiro também possui previsão para tais condutas criminosas, fato que tem levantamento questionamentos acerca de uma eventual inconstitucionalidade do ato que ratifica o comentado tratado. É o que se verá adiante.
2 OS DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, traz em sua essência a proteção aos Direitos Humanos, pois tem como seu fundamento de validade a dignidade da pessoa humana. Sendo assim, quase todos os seus dispositivos objetivam o reconhecimento da condição humana.
No entanto, pode-se enfocar o artigo 1º, III que fala da dignidade da pessoa humana; o art. 3º, que trata dos objetivos fundamentais da República; o art. 4º, II, que prevê a prevalência dos direitos humanos; e art. 5º, que elenca um rol de 78 incisos, com os direitos e garantias fundamentais, trazendo no seu caput a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, seja ao brasileiro ou estrangeiros residentes no Brasil (BRASIL, 1998).
Piovesan (2003) entende que a Constituição Federal Brasileira de 1988 é uma das mais avançadas do mundo em matéria de Direitos Humanos. Inovando ao incluir o princípio da prevalência dos Direitos Humanos, que regerá suas ações ao se relacionar com os demais Estados da ordem internacional. Dessa forma, o Brasil irá ponderar os dispositivos normativos internos com os internacionais tendo os Direitos Humanos como paradigma. A autora compreende que a soberania estatal poderia sofrer flexibilização em prol de um bem maior.
2.1 A INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Cada Estado signatário possui as suas regras próprias para incorporar os tratados ao seu ordenamento jurídico interno. A celebração de tratados pelo Brasil ocorre em momentos distintos, sendo que a primeira fase é concretizada com a participação do Presidente da República, dotado de competência privativa, por força do art. 84, VIII. É o momento de participação e assinatura do documento. Em seguida, vem a fase de ratificação, necessitando da aprovação do Congresso Nacional.
No que concerne à segunda, ocorre por competência exclusiva do Congresso Nacional, através de decreto legislativo. É o que observa no art. 49, I, da CF/88, ao aduzir que: “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; [...]”. Com a autorização do Congresso é que o Presidente da República ratifica um tratado e ele passa a produzir seus efeitos na ordem interna.
Segundo Moraes (2014) esse mecanismo de ratificação brasileiro dos tratados internacionais segue uma tendência internacional, pois se reproduz nas constituições de outros Estados, como exemplo, Espanha, Argentina, Suíça, Áustria, França e Grécia. A supremacia das normas constitucionais sobre os atos e tratados internacionais também é uma regra no direito comparado.
A força normativa dos tratados no ordenamento jurídico brasileiro depende da matéria e da forma de incorporação, ou seja, de acordo com o quórum de aprovação. Pode ter status de norma constitucional, supralegal ou infraconstitucional.
2.2 OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS COM STATUS DE EMENDA CONSTITUCIONAL
Na regra geral, os tratados são regulados por decreto legislativo. No entanto, os tratados internacionais sobre Direitos Humanos sofreram sensível mudança com o advento da Emenda Constitucional 45/04, que possibilitou a sua incorporação com status constitucional. Para tanto, deve-se observar o que dispõe o § 3º do art. 5º, CF/88. Este dispositivo prescreve que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (BRASIL, 2004).
Dessa forma, o tratado ganha status de norma constitucional, pois pelo poder reformador, nesse formato de ratificação, o documento internacional é equivalente a uma emenda constitucional. Sendo assim, os tratados e convenções internacionais podem ser classificados enquanto aqueles que tratam de Direitos Humanos e os que versam de outras matérias. Aos que regulam Direitos Humanos, há uma subdivisão entre os aprovados com quórum e requisitos de emenda constitucional, recebendo tal status; e aqueles que não observaram esses requisitos, sendo recepcionados como supralegais, de acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal (LENZA, 2015).
O Estatuto de Roma foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro antes da edição da emenda constitucional 45/04, razão pela qual, possui status de lei ordinária. Contudo, esse entendimento não é pacífico no meio doutrinário. Há aqueles que entendem tratar-se de norma materialmente e formalmente constitucionais. Nessa perspectiva é o pensamento de Piovesan (2008).
A análise acerca da hierarquia do tratado no âmbito do ordenamento jurídico interno é bastante relevante, uma vez que em caso de conflito, torna-se fácil adotar um posicionamento adequado.
No caso em tela, Data vênia, aos grandes especialistas, levando em consideração que o Estatuto de Roma foi ratificado antes da aludida emenda, sem os requisitos necessários, porém, como envolve tratado sobre Direitos Humanos, a solução seria adotar o posicionamento do STF, ao entender pelo status de norma supralegal. Isso porque, quando o tratado de Direitos Humanos não segue o rito das emendas constitucionais, é ratificado como norma supralegal.
3 INCOMPATIBILIDADES DO ESTATUTO DE ROMA COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, é sem dúvidas, um diploma internacional relevante no processo de universalização dos Direitos Humanos em todo o mundo. Todas as iniciativas que vierem a garantir o reconhecimento de direitos em prol do ser humano, são bem vindas. Todavia, as normas devem ser interpretadas num contexto sistemático, verificando possíveis violações a direitos sedimentados.
Esta seção se dedica a discutir hipóteses de incompatibilidade de alguns artigos do referido estatuto com a atual Constituição Federal do Brasil. Os pontos mais controversos são os que tratam da pena de prisão perpétua, vedada pela Constituição Brasileira; a entrega de nacional à jurisdição do TPI, também vedada pela CF/88; a submissão total do Estado à jurisdição do TPI.
A discussão é polêmica e as opiniões dos especialistas, bem divergentes. Em linhas gerais, os que entendem haver incompatibilidade, fundamentam a tese, principalmente, na inconstitucionalidade, tendo em vista que a Constituição Federal prevê no seu art. 5º, XLVII, b, a vedação à pena de caráter perpétuo; por outro lado, os que sustentam não haver incompatibilidade, entendem tratar-se de norma internacional, onde o indivíduo será julgado fora do Brasil. Nesse caso, não haveria aplicação de norma interna.
Ao ratificar o tratado, o Brasil concordou com a hipótese de que um brasileiro, quando preenchidos os requisitos, pode ser submetido à jurisdição do TPI, no qual será julgado em outro território e sujeito a uma pena privativa de liberdade com caráter perpétuo. Em termos práticos, com pena mais gravosa, do que se fosse condenado no Brasil. Tal fato configura renúncia de soberania pelo Estado brasileiro.
3.1 PENAS DE CARÁTER PERPÉTUO
É o art. 77, 1, b, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional que dispõe acerca da possibilidade de prisão perpétua, colidindo frontalmente com o disposto no art. 5º, XLVII, b, CF/88. Para o Brasil, trata-se de um retrocesso, pois passa a admitir uma pena muito cruel ao ser humano. É o cerceamento vitalício de um Direito Fundamental, previsto constitucionalmente.
Corroborando com a tese que afirma não ocorrer incompatibilidade, mas apenas, de cunho aparente, a argumentação é no sentido de que o art. 5º da CF/88 não alcança legislações internacionais. Não evitando que a prisão perpétua seja aplicada fora do Brasil, pois versa sobre um bem maior do que os de interesse interno (MAZZUOLI, 2008).
Segundo Silva (2002), entendendo também que não há violação constitucional, porque até o próprio STF teria admitido que a proibição da pena de prisão perpétua, imposta pela Constituição Federal Brasileira tem aplicabilidade restrita aos limites do território nacional, não podendo ser imposta a outros Estados.
No entanto, é preciso verificar que o art. 5º da CF/88 é uma cláusula pétrea, como dispõe o art. 60, § 4º, IV, conferindo proteção aos direitos e garantias individuais. Nesse sentido, não se admite que um tratado, de hierarquia questionável, tendo em vista, que não há consenso se o referido diploma legal tem caráter de norma ordinária, supralegal ou constitucional. Mesmo na hipótese de tratar-se de norma constitucional, ela não poderia abolir uma cláusula pétrea.
É patente que o julgamento e o cumprimento da pena ocorrerá em território distinto do nacional, porém, cabe destacar que a discussão aqui suscitada, está centrada no cidadão brasileiro que será entregue para cumprir uma pena que não existe no seu país de origem. Nesse ponto, o Brasil não estaria cumprindo o dever de resolver os seus conflitos e proteger os nacionais.
3.2 EXTRADIÇÃO DE BRASILEIRO
O art. 89 do Estatuto de Roma regulamenta a entrega de pessoas ao tribunal para fins de julgamento. Em contraponto, o art. 5º, LI, CF/88, veda a extradição de nacional. Trata-se de outro conflito normativo, que a corrente doutrinária entende não existir, por fazer distinção entre extradição e entrega. Segundo a tese defendida por eles, fundada no próprio estatuto, art. 102, os termos não se confundem, uma vez que a entrega seria de uma pessoa por um Estado ao Tribunal; e extradição, a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado (SOUZA, 2011).
Em termos práticos, distinguir extradição de entrega não modifica as consequências que o ato desencadeará. Isso porque, ao retirar o brasileiro do território nacional e encaminhar ao TPI, estarão descortinando uma proteção constitucional e deixando o acusado bastante vulnerável, fragilizando-o.
Portanto, ao combinar afronta à extradição, entrega, encaminhamento, ou outro termo que queiram utilizar para denominar a retirada do nacional do seu Estado de origem; com a aplicação da pena de prisão perpétua, estarão criando insegurança jurídica. O mais grave de tudo isso é que o dispositivo violado é uma norma de proteção aos Direitos Humanos, gravada no seio da CF/88 como intocável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o fim especifico de criar mecanismos para que a comunidade internacional alcançasse seus objetivos de desenvolvimento e paz mundial, surgiram os tratados, acordos, convenções, protocolos e outros mais que regularam as relações entre os estados signatários dos referidos diplomas.
Após os horrores provenientes das guerras, como a ocorrência de crimes bárbaros, tratamentos desumanos e anos de violações aos direitos da pessoa humana, reconheceu-se que a pessoa humana é portadora de direitos naturais intrínsecos a sua subsistência, como o direito à vida, à liberdade e à dignidade da pessoa humana, iniciando-se, assim, a era dos Direitos Humanos, fundamentada, principalmente, na Carta das Nações Unidas (1945) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Neste contexto histórico em que surgiu os Direitos Humanos, vários diplomas legais, de proteção a pessoa humana eclodiram, destes, vários foram ratificados pelo ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição de 1988, entre eles Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI).
Contudo, o referido estatuto, em que pese os entendimentos contrários, com o advento da emenda 45/2004, defende-se aqui, ter o mesmo, o status de lei ordinária, uma vez que, ele foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro, antes do advento da emenda supra. Desta forma, o mesmo não se submeteu ao rito disposto no § 3º, do art. 5º, da Constituição Federal, que lhe conferiria status de emenda constitucional.
Por consequência, embora, um dos requisitos para que o Estatuto de Roma tenha eficiência seja a integral ratificação pelo estado signatário, entende-se e defende-se no presente trabalho a não aplicação do referido estatuto no que tange a pena de prisão perpetua, por ser a mesma incompatível e inconstitucional, dado que a Constituição Federal, em seu Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, art. 5º, XLVII, b, veda este tipo de pena, pouco importando o fato do indivíduo ser julgado fora, onde não incidiria aplicação da norma interna, pois no ordenamento jurídico pátrio também há previsão para tais condutas criminosas e que não comina na pena de prisão perpétua.
Por fim, ressaltar-se, no presente trabalho, o entendimento de não aplicação do art. 89 do estatuto supra que regulamenta a entrega de pessoas ao tribunal para fins de julgamento, vez que colide com o preceito constitucional, art. 5º, LI, da CF/88 que veda a extradição de nacional, retirando-lhe uma garantia constitucional e gerando uma temerária insegurança jurídica aos brasileiros, uma vez que estaria mitigando uma norma constitucional e fundamental prevista expressamente na Carta Magna do ordenamento jurídico pátrio.
REFERÊNCIAS
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______. Decreto nº 4.388, de 25 de Setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Brasília: Presidência da República, 2002.
______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988.
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MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro. 2ª Ed., São Paulo, 2008
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______. A Proteção dos Direitos Humanos no Sistema Constitucional Brasileiro. Revista dos Tribunais. V. 11, n. 45, São Paulo, Out./Dez. 2003.
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003.
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SOUZA, Mateus Gaspar Luz Campos de. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi. Teresina, ano 16, n. 2941, 21 Jul. 2011. Disponível em:< https://jus.com.br/artigos/19595/o-tribunal-penal-internacional-e-a-constituicao-federal-de-1988/1>. Acesso em: 13 de Out. 2016.