Há muito tempo é corrente a afirmação de que o Ministério Público, embora integrando o polo acusador no Processo Penal, não seria propriamente “parte” na relação processual que seria, em verdade, despida de “lide”. O Ministério Público estaria em uma posição idealizada e marcada por uma suposta imparcialidade que lhe retiraria, no Processo Penal, a condição de parte. [1]
Contudo esse é mais daqueles ensinamentos que consiste na repetição acrítica de “tolices mil vezes desmentidas” a que faz menção Barbosa Moreira. [2]
No esforço de desvelar alguns mitos deletérios do Processo Penal brasileiro, assim se manifesta sobre o tema Casara:
“Percebe-se, pois, que a ideia de imparcialidade do Ministério Público choca-se com a concepção moderna do processo penal; ou seja, com a noção de que o processo penal constitui um processo de partes. A afirmação da existência de uma ‘parte imparcial’, crença comum entre os atores jurídicos, expressa contradição em seus próprios termos; tem-se nessa construção teórica, que integra o imaginário dos próprios membros do Ministério Público, verdadeira incompatibilidade ontológica”. [3]
Não há como desvincular o Ministério Público, órgão tipicamente ativo (diversamente da passividade judicial), do nítido compromisso com a tese acusatória.
Fato é que a própria origem da instituição marca a transição do sistema inquisitório para o acusatório, exatamente criando um órgão incumbido da acusação em contraste com a parte defensiva e com o Juiz, este sim, imparcial. Aliás, para que a imparcialidade judicial seja sequer possível de se pensar é necessário que os demais envolvidos na relação processual sejam parciais. Doutra forma a dialética processual é quebrada e desequilibrada porque o Juiz estaria mais próximo do Ministério Público do que da Defesa e, portanto, jamais equidistante.
Não convence o argumento de que a condição de “custos legis” e a possibilidade de o Ministério Público pleitear a absolvição o tornariam uma “parte” diferenciada (uma parte imparcial). Acontece que o exercício da fiscalização da lei não é incompatível ou excludente da condição de parte. Na verdade, a obrigação de zelar pelo cumprimento da lei não é apanágio exclusivo do Ministério Público, mas compõe o rol de deveres de todo e qualquer funcionário público, inclusive o Juiz, o Delegado de Polícia, um Procurador de Estado etc. Dessa forma, até mesmo o eventual pedido de absolvição do órgão ministerial nada mais é do que manifestação do cumprimento do Princípio da Legalidade que orienta toda a Administração Pública (afinal seria inconcebível o pleito de condenação de um inocente quando o Ministério Público tem essa convicção, já que isso não se coadunaria com a legalidade e nem mesmo com a ética). Até mesmo o Defensor constituído, nomeado, dativo ou público devem zelar pela legalidade e quem teria a capacidade de afirmar que estes não são partes no processo penal?
A condição parcial do Ministério Público no Processo Penal não constitui demérito, mas apenas o reconhecimento de sua real posição, bem como da condição humana limitada dos integrantes dessa nobre carreira. Tal qual não pode crer num “Juiz Hércules” criticado por Dworkin, [4] na mesma medida, não é possível crer em um “Promotor Hércules”, dotado de capacidades sobre-humanas.
REFERÊNCIAS
CASARA, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Princípios do Processo e outros temas processuais. Taubaté: Cabral, 2006.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Volume 1. 34ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Notas
[1] Vide já em posição crítica a essa doutrina: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Volume 1. 34ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 29 – 30.
[2] Apud, NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Princípios do Processo e outros temas processuais. Taubaté: Cabral, 2006, p. 109.
[3] CASARA, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 162.
[4] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 288 e seguintes.