Ausência de contato físico no crime de estupro de vulnerável

03/11/2016 às 07:28
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Superior Tribunal de Justiça entende que o contato físico é irrelevante para a consumação no crime de estupro de vulnerável.

Quando estamos a tratar de crimes que ofendem a dignidade sexual, a polêmica sem dúvida é certa, isto porque há posições nos mais variados sentidos. A sociedade sempre caminha na direção de buscar o caráter punitivo e mais severo para o criminoso, enquanto a defesa e o próprio acusado trazem argumentos sobre a gravidade da pena em abstrato, ausência de violência e contato físico, consentimento da vítima, dentre outros.

Demais fatores também contribuem para a prática dos crimes sexuais, a exemplo está à prostituição. Os índices registrados desta prática no Brasil são bastante significativos, não sendo incomum ver crianças e adolescentes seguindo o caminho da prostituição, muitas vezes por falta de oportunidade na vida, desestrutura familiar e, ainda, fazendo disso seu próprio sustento e de sua família. Em razão disso, é corriqueiro visualizar-se as chamadas cifras negras: crimes que não chegam ao conhecimento das autoridades.

Só aí, já dá para se notar o tamanho da polêmica que versa o tema. Igualmente, se percebe que nem sempre os atos sexuais são praticados de maneira forçada, sendo, especificamente, nos casos de prostituição, praticados de modo consentido, na maioria das vezes.

Em que pese haver vários crimes sexuais, relacionados às crianças e adolescentes, nos limitamos a examinar o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), baseado na jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, exarada no informativo nº 587.

Inicialmente, antes de ser revogado, o art. 224 do CP (revogado pela Lei nº 12.015/09), previa formas de presunção da violência aptas a configurar os crimes contra a dignidade sexual, sendo elas: a) vítima não ser maior de catorze anos; b) vítima for alienada ou débil mental e o agente conhecia essa circunstância; c) vítima não pudesse, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

Todavia, com o surgimento da Lei nº 12.015/09, o delito de estupro cometido contra pessoa sem capacidade ou condição de consentir, com violência ficta, deixou de integrar o art. 213 c/c art. 224 do CP, para ganhar nova roupagem e configurar crime autônomo, previsto no art. 217-A do CP, sendo intitulado de “estupro de vulnerável”. Veja-se:

Estupro de vulnerável 

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. 

Pela análise do Código Penal, nota-se que a diferença do crime de estupro (art. 213) para o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A) é que neste último o sujeito passivo é pessoa menor de 14 anos, a ação penal é pública incondicionada e a pena para este crime é maior.

Como já comentado, este delito goza de bastante gravidade e, sem dúvida, deve ser reprimido, de modo que quanto a isso não se discute.

Na realidade, o que vem sendo alvo de críticas e gerando certa indecisão por parte da doutrina está na interpretação acerca da necessidade (ou não) de contato físico para a configuração do crime em análise. Isto, porque, parte da doutrina defende que deve haver algum tipo de contato físico, enquanto outra parcela dispensa tal contato.

Para ilustrar, imagine o seguinte caso prático: Maria, menor de 12 anos de idade, é convencida por João, sujeito maior de idade, a se dirigir até a sua casa, após este dar a ela uma quantia em dinheiro. Lá chegando, ao invés de manter relações sexuais, João simplesmente pede à Maria que fique nua para que ele possa satisfazer-se a olhando, sem haver qualquer contato físico. Em seguida, João já satisfeito, pede a Maria que ela se vista e vá embora. Notando o sumiço da garota, a mãe de Maria a confronta e descobre a verdade, levando o caso às autoridades, o que gerou denúncia em face de João pelo crime de estupro de vulnerável.

Considerando o caso hipotético acima, começaram a surgir correntes afirmando não haver consumação do crime em questão, justamente, pela ausência de contato físico. Em razão desta discussão o caso chegou ao STJ, a quem deu o veredito.

Na decisão, que se deu em sede de recurso ordinário em habeas corpus – RHC 70976/MS – o ministro relator Joel Ilan Paciornik, decidiu que não havia necessidade de contato físico para a configuração do crime de estupro de vulnerável. Ademais, sustentou que a dignidade sexual não se ofende apenas por meio de lesões de natureza física, mas também com transtornos psíquicos que a vítima terá que suportar. Assim, ocorrendo lesões físicas à vítima, estas serão levadas em consideração no momento de dosimetria da pena.

Nesse sentido, segue de forma mais detalhada e na integra a ementa da decisão:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL EM CONTINUIDADE DELITIVA.  TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E ATIPICIDADE DA CONDUTA. CONTEMPLAÇÃO LASCIVA DE MENOR DESNUDA. ATO LIBIDINOSO CARACTERIZADO. TESE RECURSAL QUE DEMANDA REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO.   AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. RECURSO DESPROVIDO.

O Parquet classificou a conduta do recorrente como ato libidinoso diverso da conjunção carnal, praticado contra vítima de 10 anos de idade.  Extrai-se da peça acusatória que as corrés teriam atraído e levado a ofendida até um motel, onde, mediante pagamento, o acusado teria incorrido na contemplação lasciva da menor de idade desnuda.

Discute-se se a inocorrência de efetivo contato físico entre o recorrente e a vítima autorizaria a desclassificação do delito ou mesmo a absolvição sumária do acusado.

A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do Código Penal - CP, sendo irrelavante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido.

O delito imputado ao recorrente se encontra em capítulo inserto no Título VI do CP, que tutela a dignidade sexual. Cuidando-se de vítima de dez anos de idade, conduzida, ao menos em tese, a motel e obrigada a despir-se diante de adulto que efetuara pagamento para contemplar a menor em sua nudez, parece dispensável a ocorrência de efetivo contato físico para que se tenha por consumado o ato lascivo que configura ofensa à dignidade sexual da menor. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física.  A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena, na hipótese de eventual procedência da ação penal.

In casu, revelam-se pormenorizadamente descritos, à luz do que exige o art. 41 do Código de Processo Penal - CPP, os fatos que, em tese, configurariam a prática, pelo recorrente, dos elementos do tipo previsto no art. 217-A do CP: prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal com vítima menor de 14 anos. A denúncia descreve de forma clara e individualizada as condutas imputadas ao recorrente e em que extensão elas, em tese, constituem o crime de cuja prática é acusado, autorizando o pleno exercício do direito de defesa e demonstrando a justa causa para a deflagração da ação penal.

Nesse enredo, conclui-se  que  somente  após  percuciente incursão fática-probatória  seria  viável acolher a tese recursal de ausência de  indícios  de autoria e prova de materialidade do delito imputado ao  recorrente. Tal providência, contudo, encontra óbice na natureza célere do rito de habeas corpus, que obsta a dilação probatória, exigindo que a apontada ilegalidade sobressaia nitidamente da prova pré-constituída nos autos, o que não ocorre na espécie.

Assim, não há amparo para a pretendida absolvição sumária ou mesmo o reconhecimento de ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal para apuração do delito.

Recurso desprovido.[1]

Na mesma linha segue o enunciado do informativo nº 587 do STJ:

DIREITO PENAL. DESNECESSIDADE DE CONTATO FÍSICO PARA DEFLAGRAÇÃO DE AÇÃO PENAL POR CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL.

A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável. A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do CP, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. No caso, cumpre ainda ressaltar que o delito imputado encontra-se em capítulo inserto no Título VI do CP, que tutela a dignidade sexual. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena. RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 2/8/2016, DJe 10/8/2016. (Informativo 587)[2]

Veja-se, então, que no exemplo trazido anteriormente, diante do teor do julgado, consumado está a prática de estupro de vulnerável, pois a contemplação lasciva, sem contato físico, mediante pagamento, com pessoa menor de 14 anos, configura o ato libidinoso constitutivo do tipo penal do art. 217-A do CP. 

A título de definição, a contemplação lasciva consiste no ato de, sem tocar na vítima, mesmo à distância, satisfazer a sua libido com a nudez alheia. Logo, sendo a vítima deste ato, pessoa menor de 14 anos, o constrangimento passa a ser presumido.  

Percebe-se que o fato criminoso se consuma ainda que inexista o contato físico, pois é dispensável contato físico entre agente e vítima para que ocorra o ato libidinoso.

 Vale mencionar que o CP não trouxe o conceito/definição de ato libidinoso, deixando tal papel a cargo da doutrina. Assim, segundo a maioria dos autores, para que se configure ato libidinoso, não se exige contato físico entre ofensor e vítima.

Logo, o simples fato de o agente ficar olhando a vítima nua com o objetivo de satisfazer sua lascívia (contemplação lasciva) já será suficiente para caracterizar ato libidinoso e, portanto, configurar o delito de estupro (art. 213) ou de estupro de vulnerável (art. 217-A).

Entretanto, como já dito, há doutrina que sustente pela necessidade de contato físico, seguindo caminho contrário a posição do STJ. É a posição, por exemplo, de Fernando Capez (2012, p. 25/26):

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Ato libidinoso: compreende outras formas de realização do ato sexual, que não a conjunção carnal. São os coitos anormais (por exemplo, a cópula oral e anal), os quais constituíam o crime autônomo de atentado violento ao pudor (CP, antigo art. 214). Pode-se afirmar que ato libidinoso é aquele destinado a satisfazer a lascívia, o apetite sexual. Cuida-se de conceito bastante abrangente, na medida em que compreende qualquer atitude com conteúdo sexual que tenha por finalidade a satisfação da libido. Não se incluem nesse conceito as palavras, os escritos com conteúdo erótico, pois a lei se refere a ato, ou seja, realização física concreta.

Por seu turno, Rogério Sanches Cunha (2016, p. 460) aduz pela desnecessidade do contato físico entre a vítima e o agressor:

De acordo com a maioria da doutrina, não há necessidade de contato físico entre o autor e a vítima, cometendo o crime o agente que, para satisfazer a sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo (masturbando-se), somente para contemplação (tampouco há que se imaginar a vítima desnuda para a caracterização do crime - RT 429/380).

Diante de todo o exposto, como se evidenciou, o tema é alvo de ampla discordância na doutrina. Bem por isso, foi de suma importância o STJ se manifestar sobre o assunto, que muito embora a decisão seja desprovida de caráter vinculante, uma vez que se deu em sede de recurso em habeas corpus, ainda assim, tende a ser seguida pelos tribunais do país, sendo, inclusive, um forte argumento para a acusação.

Portanto, cabe deixar bem claro que a dignidade sexual da pessoa não se ofende somente com lesões de natureza física, pois o abalo psíquico pode nunca ser curado. Desse modo, mesmo não havendo contato físico, o delito estará configurado, salientando-se que a ausência de contato físico certamente terá influência na fixação da pena, pois na análise do art. 59 do CP, o juiz analisará essa ausência física como uma circunstância judicial favorável em prol do ofensor.

REFERÊNCIAS

Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 70.976/MS. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=201601218385.REG.> Acesso em 02 de novembro de 2016.

Superior Tribunal de Justiça. Informativo nº 587. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/> Acesso em 02 de novembro de 2016.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 3, parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual a dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359-H) – 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 25/26.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte especial. 8ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 460


[1] RHC 70976/MS. http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=201601218385.REG. (acesso em: 02/11/2016)

[2] Informativo 587. https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/ (acesso em: 02/11/2016)

Sobre o autor
Willion Matheus Poltronieri

Delegado de Polícia. ex-Analista Judiciário. ex-Advogado. Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil. Pós-graduado em Direito Constitucional. Pós-graduado em Direitos Humanos Internacionais. Bacharel em Direito. Bacharel em Administração.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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