Da inexistência do grau de doutor conferido aos advogados por D. Pedro I através de decreto imperial

11/11/2016 às 10:51

Resumo:


  • O decreto imperial de 1827 concedia o título de doutor a advogados e médicos no Brasil.

  • Para obter o grau de doutor, os estudantes deveriam apresentar teses jurídicas aprovadas por todos os professores do curso.

  • A interpretação histórica do decreto mostra que o título de doutor não era automaticamente concedido aos advogados, sendo necessário seguir os requisitos estabelecidos no estatuto da época.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Este artigo pretende interpretar juridicamente e historicamente o decreto imperial promulgado por D. Pedro I, pois acredita-se que este tenha conferido grau de doutor aos advogados e aos médicos.

Muito se comenta no meio jurídico acerca de um tal decreto imperial, o qual concede o título de doutor à advogados e médicos, ficando, sobretudo, consubstanciado aos doutores advogados o direito adquirido de seu título, por lei, e o que é ainda melhor e digno de aclamação popular: pelo imperador do Brasil.

O decreto mencionado é a “Lei de 11 de Agosto de 1827”, o qual D. Pedro I institui os cursos jurídicos no Brasil, tendo em vista a ampla necessidade de obter operadores do direito no então recente independente Brasil, deixando de “importar” profissionais portugueses.

O que alguns advogados utilizam para sustentar a afirmação de que o decreto efetivamente se sustenta como concessão do título de doutor aos advogados são, na verdade, duas questões:

 1. Que o título de “doutor” é concedido a qualquer curso que obtenha os respectivos “estatutos”. Como advogados e médicos possuem “estatutos” (Estatuto da OAB e estatuto do conselho federal de medicina), portanto, estariam aptos à tal título; e

 2. Que as “teses” defendidas são as “teses” do dia a dia do advogado, angariando, então, o grau de doutor conforme disposto no decreto.

 Ocorre que tais alegações não se sustentam quando lido o decreto, e feita a devida interpretação histórica e jurídica.

A começar pela expressão “estatuto”. Por certo, D. Pedro I não tinha o dom da vidência para tratar de Estatutos que só seriam conferidos 170 anos após a promulgação do decreto, como o caso do estatuto da OAB, de 1994.

Vejamos o que nos mostra o art. 9, com cautela:

Art. 9.º - Os que freqüentarem os cinco annos de qualquer dos Cursos, com approvação, conseguirão o gráo de Bachareis formados. Haverá tambem o grào de Doutor, que será conferido áquelles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e sò os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes.

Por “requisitos que se especificarem nos estatutos”, o que tal frase garante é que os doutores, que se formam bacharéis, só poderão colar o grau seguindo o quanto disposto no estatuto.

 Neste sentido, a palavra “estatuto” possui outra conotação no século XIX. Longe de ser o código de ética que disciplina a profissão de advogados e médicos, tal expressão seria o equivalente ao “currículo” escolar de cada curso universitário.

 O estatuto provisório do curso jurídico foi redigido pelo visconde de cachoeira, contendo os exames para conseguir vaga no curso, as matérias que cada ano deverá possuir, e as provas a serem realizadas em cada etapa, conforme art. 10º:

Art. 10.º - Os Estatutos do VISCONDE DA CACHOEIRA ficarão regulando por ora naquillo em que forem applicaveis; e se não oppuzerem á presente Lei. A Congregação dos Lentes formará quanto antes uns estatutos completos, que serão submettidos á deliberação da Assembléa Geral.

 A Congregação dos lentes não chegou a formular estatutos completos, como queria D. Pedro com tal artigo, o que significa que os estatutos do visconde da cachoeira vigoraram durante a vigência deste decreto.

 Uma curiosidade, aliás, era o fato de que existiam provas de geometria e aritmética para ingressar no curso de direito, bem como nos primeiros anos do curso.

De outro lado, se a lei tem de ser interpretada de forma sistemática, como a melhor hermenêutica do profissional de direito nos ensina, ela tem de ser interpretada de acordo com o estatuto redigido pelo visconde de cachoeira, como nos remete o artigo 10º citado acima.

 No estatuto, logo no primeiro capítulo já é tratado do grau de doutor, vejamos:

CAPITULO XIII

DO GRÁO DE DOUTOR

1º Se algum estudantes jurista quizer tomar o gráo de Doutor, depois de feita a competente formatura, e tendo merecido a approvação nemide discrepante, circumstancia esta essencial, defenderá publicamente varias theses escolhidas entre as materias, que aprendeu no Curso Juridico, as quaes serão primeiro apresentadas em Congregação; e deverão ser approvadas por todos os Professores. O Director e os Lentes em geral assistirão a este acto, e argumentarão em qualquer das theses que escolherem. Depois disto assentando a Faculdade, pelo juizo que fizer do acto, que o estudante merece a graduação de Doutor, lhe será conferida sem mais outro exame, pelo Lente que se reputar o primeiro, lavrando-se disto o competente termo em livro separado, e se passará a respectiva carta.

Portanto, para adquirir o grau de doutor, o estudante que obtivesse o grau de bacharel apresentaria “theses”, que seriam apresentadas em congregação, e que deveriam ser aprovadas por todos os professores. Após isso é que se verificaria se o bacharel mereceria o grau de doutor.

Logo, as teses mencionadas nada têm a ver com teses utilizadas no dia a dia do advogado, tratando-se de theses jurídicas das matérias relativas ao curso, e a ser aprovada por professores, como o próprio artigo menciona.

 Fora isso, muito tem se discutido se o próprio estatuto da OAB não teria revogado o decreto imperial. Neste quesito, pouco importa a discussão. Explico: tanto o estatuto da OAB, como o decreto imperial, ambos tratam de matérias divergentes, que não regulamentam a mesma situação jurídica, o que impediria os efeitos de revogação, ainda mais considerando que no estatuto não há qualquer menção de revogação expressa.

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 Enfim, claro está que se utilizar de interpretações elásticas e anacrônicas não é o caminho para legitimar o grau de doutor a advogados e médicos, seja pela própria interpretação histórica da expressão “estatutos”, que é plenamente ignorada e incompreendida, seja pela apresentação das chamadas “theses” para o grau de doutor, seguindo o quanto estipulado pelo estatuto redigido pelo visconde de cachoeira.

 Interpretar um decreto legislativo de 1820 com os costumes, pensamentos e ideia do século XXI é ser anacrônico e esquecer que palavras mudam o seu sentido com o tempo, bem como as leis, os costumes, e as interpretações.

Fica claro, portanto, que tal decreto não institui grau de doutor aos advogados, se aplicada a devida interpretação histórica. Para tanto, seria necessário a apresentação de teses, e a aprovação por todos os professores do curso, o que retira a ideia de que o grau de doutor venha acompanhado do grau de bacharel em direito.

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Sobre a autora
Marina Sartori Guimarães

Advogada formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, militante na área de propriedade intelectual, com mais de 6 anos de experiência na área. Graduanda do 4º semestre de Licenciatura em História perante a FMU - Faculdades Metropolitana Unidas, com pesquisa científica e artigos nas áreas de História Antiga e História do Brasil Colonial

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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