A metodologia jurídico-pedagógica em Direito Penal e a necessidade de mudança de paradigma.

Dos antigos dogmas formalistas à crítica sócio-constitucional da proposta de diálogo em sala de aula

11/11/2016 às 19:32
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A principal proposta deste artigo é, em entendimento perfunctório sobre o ensino jurídico do Direito Penal no Brasil, traçar uma proposta de mudança de eixo de entendimento desta matéria.

Introdução

O ensino jurídico brasileiro, em se tratando de matéria penal, tem sido levado a um eixo evolucional, quase que necessário. Necessário, sim, pela mudança de paradigma no estudo do direito dos delitos, no qual se abandona o caráter dogmático de determinados conceitos, e se adentra à nova perspectiva metodológica dialógica de criticidade e contextualização.

O Direito Penal é, sem dúvida, o mais fático dos direitos. Assim sendo, a fonte-motriz desta seara da Ciência Jurídica é a própria sociedade e as relações de interação dos indivíduos neste meio social, que, ao longo do tempo, mostram-secada vez mais dinâmicas e evolutivas.

Desta forma, não se pode conceber a sociedade como objeto passivo do cientista criminal, bem como não se pode mais conceber a idéia epistemológica de que a sociedade seria um campo laboratorial dos que observam e estudam as condutas delitivas.

Ao contrário, a facticidade do direito penal apenas serve para corroborar a idéia de que, em verdade, é a evolução social que dita a “roupagem” a ser adotada por um determinado sistema jurídico criminal, uma vez que os juízos de antijuridicidade de uma conduta, bem como de proporcionalidade de medida sancionatória imposta a esta conduta, são valoradas de modos diferentes ao longo de um determinado lapso temporal e de acordo com os princípios de auto-regulação social de uma determinada comunidade em um determinado período histórico.

Imbuído desta essência fático-social do Direito Penal, dinâmica e evolutiva, é que se faz necessária uma reflexão séria sobre o método utilizado pelo professor da Ciência Criminal utilizado até hoje. Ao que se percebe, ainda há um “conservadorismo” exacerbado entre os mestres do assunto, que encontram dificuldades, até mesmo pela escola tradicionalista a que pertencem, de engavetar a estrutura dogmática sob a qual o Direito Penal sempre foi ensinado no Brasil, e partir para uma ousada análise crítica e valorativa da mesma matéria, entendendo “o direito das condutas e dos delitos” não apenas como ciência de conceitos prontos e perfeitamente acabados, mas, sim, como estudo que leve o aluno a um contínuo questionamento crítico das realidades dogmáticas, sob o “pano de fundo” do contexto social, histórico e antropológico do meio em que se vive, dentro de uma lógica de consonância com a carga principiológica oferecida pela Constituição Federal de 1988, e que como magna carta, deve ser o anteparo para o estudo de diplomas infraconstitucionais, como o Código Penal Brasileiro, e seus conceitos.

A principal proposta deste artigo é, em entendimento perfunctório sobre o ensino jurídico do Direito Penal no Brasil, traçar uma proposta de mudança de eixo de entendimento desta matéria. Propondo a soltura, em sala de aula, das amarras de um método centralizado na “mens legis” ou em estruturas conceituais ditas “infalíveis”, e estimulando, por outro lado, o raciocínio crítico do aluno, sob um profundo espectro de principiologia constitucional, que o convença, principalmente, que a valoração dada ao Direito Penal não se dá nas frias cadeiras legislativas, mas, essencialmente nascem nos atentados à paz social que se dá no calor das ruas, que o Direito Penal encontra a sua essência no tradicionalismo conceitual ou na teimosia doutrinária, mas, sim, na história de um povo e em seu meio social.

  1. Do modelo dogmático do ensino jurídico em Direito Penal: uma visão estritamente legalista e ultrapassada. Das justificativas históricas e sociais.

O método dogmático de ensino jurídico, em Direito Penal, é aquele que a partir de um determinado conceito-chave, deduz toda uma derivação de organogramas em um determinado ordenamento jurídico. Neste modelo, a lei ganha status diferenciado e supremo acima de outras fontes de direito (BLANCHE, 1868), sendo, pois este modelo identificado com o método de ensino utilizado tradicionalmente nas academias brasileiras, e que, até hoje ainda são amplamente utilizados.

Neste diapasão, o professor busca explicar o Direito Penal a partir das compilações de normas (códigos), e se apega quase que ilimitadamente ao princípio da legalidade (nullumcrimensine lege). É este exacerbado apego que reduz as possibilidades interpretativas do estudante (que um dia será aplicador do Direito) às variantes deixadas pelo legislador, pela necessidade do mestre em seguir a mens legis, ou seja, a “mente da lei”, ou “vontade da lei”.

Em primeiro lugar, insta salientar que este método legalista-dogmático difundido em sala de aula por tantos anos tem sua fundamentação no próprio sistema penal brasileiro. Para que isto se torne evidente, basta analisarmos a essência histórica e social do Código Penal Brasileiro, promulgado em 07 de dezembro de 1940.

O Código Penal pátrio, assim como o Código de Processo Penal atual, tem inspirações ítalo-germânicas muito claras, porquanto foi inspirado no Codice Penale Italiano, também conhecido como Código Rocco, uma homenagem a Alfredo Rocco, Ministro de Justiça, à época, do governo do Duce, Benito Mussolini.

Advindo de uma sociedade totalitarista-facista, obviamente, tratava-se de um diploma legal inquisitorial e estritamente legalista, que reduzia as possibilidades de um Direito Penal discursivo, principiológico, interpretativo e, principalmente, constitucional. Um Direito de Lei.

Voltando-se, ainda, um pouco mais sobre as justificativas históricas para o modelo dogmático-legalista europeu que veio a nos influenciar (e, portanto nossa cultura legal e jurídico-pedagógica), encontramos uma importante lição de José De Albuquerque Rocha. Segundo ele, o apego dos modelos jurídicos na Europa continental, dentre os quais se incluem Alemanha e Itália, à lei tem sua explicação na Revolução Francesa, ou Revolução de 1789, no século XVIII, e no receio deste novo modelo social do pesadelo vivido à época do Antigo Regime. Explico.

É que segundo o autor, a burguesia, dominada pelo sistema de governo dos monarcas absolutistas, via-se em um conchavo de ordens e imposições arbitrárias sobre os quais não podiam oferecer resistência, além do que a classe jurídica, à época, era vista como mera referendadora dos atos do Rei, motivo pelo qual os juízes eram vistos pelos revoltosos como apoiadores incontestáveis do Rei.

A partir desta lógica, os vencedores da Revolução, dentre as conquistas políticas efetivadas, conquistaram o direito de ocupação dos cargos legislativos, e passaram a editar leis em consonância com seus interesses. Em ato contínuo, como novos dominantes, difundiram o culto à lei e o respeito à “vontade do legislador”, mecanismo de manutenção da nova ordem social mantida pela burguesia.

A partir de então, é que os juízes, que não detinham a confiança dos vencedores da revolução por serem vistos como aliados ao Antigo Regime, são alijados à simples tarefa de adequação da norma ao fato. Um mero juízo de subsunção normativa, que impede o aplicador do direito de interpretar uma determinada premissa legal e fazê-la aplicada da forma mais coerente. O juiz passou a ser considerado “La bouche de La Loi”, em tradução para o português: “a boca da lei”.

Este modelo é que se expandiu, em especial pela Europa continental, dentre os quais, afetando as estruturas jurídicas ítalo-germânica, que por sua vez, veio a influenciar no modo de edição legal, e, por sua vez, o modelo penalista brasileiro, o que se reflete em sala de aula.

Neste diapasão justificador, é que entendemos as razões pelas quais, em matéria de Direito Penal, nosso modelo pedagógico encontra-se defasado e, consequentemente, deslocado do novo eixo interpretativo do direito, um eixo crítico, dialógico, interpretativo e constitucional, que instigue o estudante a entender o Direito Penal como uma seara da Ciência Jurídica que tem base nos fatos e na realidade histórica e sociológica de um determinado país, e que perceba o crime, como uma conduta valorada comoantijurídica, e que nasce e se dinamiza no interior do grupo social.    

  1.  Da Nova Visão Metodológica: da criticidade e da interpretação principiológica e constitucional sob a aplicação do Direito Penal.

Por outro lado, uma nova perspectiva jurídico-pedagógica, em Direito Penal, é apresentada, conforme ensina João José Caldeira Bastos, na medida em que se aguça o criticismo sob o objeto de estudo e, ao mesmo tempo, em que o “neo-constitucionalismo” e seus efeitos hermenêuticos passam a ganhar destaque.

Ao contrário da primeira ideia, lançada no antigo constitucionalismo, de que o ordenamento jurídico teria formato piramidal em que a Constituição teria lugar ao topo, o “neoconstitucionalismo” propõe a Constituição, não ao topo de uma pirâmide legal (distante e afastadas das leis da base piramidal), mas, sim, estando ao centro do ordenamento jurídico, a que ao redor orbitam, de forma equidistante, os demais dispositivos normativos existentes, igualmente influenciados pela interpretação e pelos valores da Constituição.

É essa verdade neoconstitucionalista que deve ser aplicada, tanto para a aplicação do Direito Penal, quanto, consequentemente, na metodologia de ensino desta matéria nas Universidades, livrando-se, por derivação lógica, da “camisa-de-força conceitual” proposta pelo ultrapassado modelo jurídico e pedagógico engessado, submisso e exegeta.

É exatamente a nova proposta de leitura do Direito, que abre as mentes dos aplicadores do direito e dos professores para uma necessidade inevitável: a de aplicar/ensinar Direito Penal a partir de duas pilastras básicas: a primeira, do entendimento social da matéria, assimilando o crime e a pena como um fator gerado no íntimo do meio social, bem como a suaprovável mutabilidade ao longo das conjunturas históricas e das composições sociais de dominação. A segunda pilastra básica, é entender o estudo do Direito Penal sob a perspectiva de aplicação de uma hermenêutica constitucional intencionada a retirar da interpretação da norma aquilo que melhor se acopla ao sistema de regras e princípios da Constituição.

O criticismo no ensino do Direito Penal é aquele que se propõe a demonstrar a matéria sob o prisma empírico-normativo de caráter histórico-sociológico, que possibilita ao seu adepto o amplo entendimento das origens de suas leis, e que, principalmente concede ao seu adepto a autonomia interpretativa, desde que alinhada a melhor teleologia constitucional.

É o que Caldeira Bastos menciona, está diretamente vinculado à proposta libertadora que José De Albuquerque Rocha também propõe em seu livro, ressaltando, neste sentido, que as origens deste modelo, em que o interprete e sua capacidade de resguardo da Constituição são os protagonistas da aplicação do Direito, vem da Inglaterra e do direito estadunidense. (RODRIGUES, 1992)

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Assim sendo, uma vez lançadas novas bases para o estudo e o ensino do Direito Penal, passa-se a buscar a descrição dos efeitos pedagógicos para a aula de Direito Penal nos moldes do antigo dogmatismo formalista e legalista, para uma nova dimensão didática para a matéria, de acordo com a nova metodologia proposta, centrada na criticidade, no questionamento, no diálogo e na utilização de maior riqueza interpretativa para aprender a Ciência do Direito.

  1. A sala de aula e a mudança metodológica: Da proposta da crítica e do diálogo.

Tradicionalmente as aulas em Direito, inclusive em Direito Penal, sempre possuíram um aspecto de conservadorismo muito grande. Uma matéria de base legalista, e assim considerada exacerbadamente, em que o professor dava as diretrizes procedimentais e conceituais e pouco se discutia a real eficácia social das normas jurídicas ou mesmo sua constitucionalidade. A lei era a lei e isso já bastava. Inclusive, há algumas décadas atrás, existiam as avaliações em estilo de “sabatina”, em que o professor escolhia um aluno e este tinha que recitar os códigos e compilações normativas que o mestre solicitasse. Até mesmo os alunos demonstravam satisfação com seu desempenho a partir dessa memorização das leis.

O professor Tércio Ferraz demonstra, inclusive, o modelo de bacharel (em um sentido geral) que se forma a partir dessa pedagógica “maquinal”, em que o aluno é ensinado aaceitar ao invés de criticar:

Nestes termos a formação do bacharel é entendida como uma acumulação progressiva de informações, limitando-se o aprendizado a uma reprodução de teorias que parecem desvinculadas da prática (embora não sejam), ao lado de esquemas prontos de especialidade duvidosa, que vão repercutir na imagem atual do profissional como um técnico a serviço de técnicos.

Esse era o aspecto pedagógico considerado relevante nos moldes da metodologia dogmática-formalista anteriormente adotada. Nesse sentido, expõe Libâneo:

A idéia mais comum que nos vem à mente quando se fala de aula é a de um professor expondo um tema perante uma classe silenciosa. É a conhecida aula expositiva, tão criticada por todos e, apesar disso, amplamente empregada nas nossas escolas.

É essa a mudança de que necessitamos ao adotar uma nova metodologia em Direito Penal. A adoção e efetivação da Constituição Federal enquanto eixo central interpretativo de todas as leis e a assimilação do caráter histórico-social da produção do Direito Penal, ao entrarem gradualmente no modus de aplicação, implica em uma mudança, inclusive, nessa metodologia em sala de aula, libertando o aluno das amarras da hermenêutica legalista.

A aula de Direito Penal, mais do que qualquer outra, deve ser instigada através do diálogo e da utilização da base de conhecimento prévio dos alunos, uma vez que, por ser o mais fático e social dos Direitos, é imprescindível que o professor busque direcionar o entendimento do conceito social de crime e de pena, bem como de outros conceitos importantes, como “antijuridicidade de conduta”, “punibilidade”, “finalismo”, dentre outras, a partir da leitura do fato social por cada um de seus alunos, considerando suas experiências de vida e buscando integrá-las a uma análise crítica do que está posto em lei, de modo a refletir sobre o caráter constitucional ou inconstitucional de cada norma; da real eficácia ou ineficácia social de cada norma.

  Tudo isso a partir de um prisma dialógico entre professor e aluno e entre os próprios alunos, em uma interação dinâmica e libertadora, assim como propôs Paulo Freire:

O importante, do ponto de vista de uma educação libertadora, e não ‘bancária’, é que, em quaisquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros.

A adoção de uma nova proposta metodológica, a partir de uma nova perspectiva de visualização do direito, pelo agregamento de valores sociais e constitucionais na base deste entendimento, reflete inevitavelmente na postura do professor em sala de aula, e, por corolário lógico, na forma de aprendizado dos alunos, o que, por sua vez, irá formar juristas com valores e sensibilidade social, tornando a aplicação do direito mais coerente, eficaz e humanizada.

Conclusão

A forma de entender o Direito Penal mudou. A lei, antes suprema, encontra um limitador, uma carta de essência política e social, de forte caráter principiológico: a Constituição Federal.

O aplicador do Direito Penal também mudou. Antes, constrangido pela autoridade e autossuficiência da lei, e doutrinado nas Universidades a simplesmente aplica-las cegamente, sem maiores questionamentos, encontra uma nova tendência interpretativa, que culmina com o Direito Penal crítico, questionador, dialógico, social e libertador, que se reflete profundamente no método de ensino jurídico.

Certamente, diante do confrontamento das idéias esposadas, e diante do comparativo que se buscou traçar ao longo deste estudo, é certo o fenômeno do neoconstitucionalismo implicou em uma reavaliação dos métodos jurídicos (e consequentemente jurídico-pedagógicos) que assinalam no sentido de uma importante evolução. Especialmente se considerar-se evolução da Ciência, quando esta se abre de maneira democrática, estimulando a participação ativa, em sua elaboração, e principalmente, em sendo tomada como mais genuína forma de expressão da capacidade cognitiva humana.

A partir de tudo isso, é que se chega a uma nova proposta de ensino do Direito Penal, uma seara do direito especialmente polêmica, por lidar com liberdade e punição de semelhantes, e que por isso mesmo, deve ser estudada e ensinada com a sensibilidade e a ponderação crítica e dialógica ora proposta.

Referências

BASTOS, João José Caldeira. Direito Penal: Visão Crítico-metodológico. in. Seis temas sobre o Ensino Jurídico. Florianópolis: Cabral Editora. Florianópolis, 1993.

BLANCHE, Antoine. Études pratiques surlecodepénal. Paris: Imprimerie et librairiegénérale de jurisprudence, 1868.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. O ensino jurídico. Encontros da UnB: Ensino jurídico, Brasília, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 27. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

LIBÂNEO, José C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995.

RODRIGUES, Lêda Boechat. A corte suprema e o direito constitucional americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

Sobre o autor
Alex Santiago

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Fortaleza. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo elaborado para a disciplina de Didática do Ensino Superior do Curso de Mestrado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza

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