Introdução
Após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade experimentou a proliferação e a universalização de direitos, em virtude da alocação da dignidade da pessoa humana como pedra angular dos ordenamentos jurídicos. Ao lado desse fator, houve notável evolução dos meios de produção e de consumo, bem como o emprego de meios de comunicação massificados.
Assim, despontou nos ordenamentos jurídicos a ideia de que os consumidores, polos hipossuficientes na relação de consumo, mereciam proteção legal para que houvesse equilíbrio na aquisição de produtos e serviços. No Brasil, somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que se logrou promulgar um diploma legal concentrado na defesa do consumidores, qual seja, a Lei n. 8.078/90.
Desse modo, o presente trabalho aborda o conceito de consumidor, inserido no ordenamento jurídico pela referida lei. Analisa as divergências doutrinárias existentes e a forma pela qual a jurisprudência pátria lida com a questão.
Por fim, o trabalho trata da questão da vulnerabilidade do consumidor, expondo suas espécies e exemplificando-as.
O trabalho adotou a metodologia da pesquisa bibliográfica, feita através da análise de materiais publicados na literatura específica, além da análise legislativa, especialmente da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor.
Desenvolvimento
O propósito dessa breve abordagem sobre a definição de consumidor perante a Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor – doravante CDC) dispensa digressão aprofundada sobre os marcos factuais e jurídicos sobre os quais lentamente se assentaram os tijolos do direito consumeirista hodierno.
Basta dizer que a sociedade se desenvolveu e que tal evolução mudou, de maneira radical, a forma, o conteúdo e o objeto dos negócios jurídicos, ampliando as relações individuais de aquisição de coisas e serviços em experiências de produção, distribuição e consumo de massas.
Ao debruçar-se sobre a gênese dos modelos jurídicos, Reale concluiu, com a maestria que lhe era pertinente, o que transcrevemos a seguir:
Aos olhos do jurista, o direito se põe prevalecentemente como norma, mas esta não pode deixar de ser considerada uma realidade essencialmente histórica, consoante é próprio de todas as estruturas sociais. Cada norma jurídica significa aquela solução ou composição tensional que, no âmbito de certa conjuntura histórico-social, é possível atingir-se entre exigências axiológicas (pressões políticas ou ideológicas, interesses de ordem econômica, valorações jurídicas, morais, religiosas, etc) e um dado complexo de fatos, isto é, todas as condições, circunstâncias e realidades já existentes no ato em que a norma surge.[1]
Atentos aos ensinamentos de Reale, poderíamos dizer, então, que a criação dessa disciplina jurídica – direito do consumidor – e de suas normas provém da interpenetração entre fatos (p.e. revolução industrial, criação de novos produtos, implemento populacional, surgimento dos meios de comunicação em massa, etc), valores (liberdade individual, busca pela igualdade formal e material, consumismo, etc) e enunciados jurídicos daí advindos.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira das Cartas Políticas nacionais a incluir a defesa do consumidor em seu rol de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XXXII). Ademais disso, a proteção ao consumidor também foi elencada como princípio de integração da ordem econômica (art. 170, V) e, visando evitar que esta norma caísse em desuso pela ausência de legislação regulamentadora, o próprio constituinte determinou que fosse criado, no prazo de cento e vinte dias da promulgação da Constituição Federal, o código de defesa do consumidor (art. 48 do ADCT).
Em 11 de março de 1991, cento e oitenta dias após a publicação no Diário Oficial da União, entrava em vigor a Lei n. 8.078/90. Fruto do PL 3.683/89. Durante a tramitação, o Projeto de Lei do CDC teve trinta e dois dispositivos vetados pelo Presidente da República (art. 6º, IX, art. 11, art. 15, art. 16, art. 45, art. 52, § 3º, art. 5º, §§ 1º e 2º, art. 27, parágrafo único, art. 26, § 2º, II, art. 28, § 1º, art. 37, § 4º, art. 60, §§ 2° e 3º, art. 39, X, art. 51, V e § 3º, art. 54, § 5º, art. 82, §§ 2º e 3º, art. 53, § 1º, art. 55, § 2º, art. 62, art. 67, parágrafo único, art. 83, parágrafo único, art. 96, art. 97, parágrafo único, art. 85, art. 86, art. 89, art. 92, parágrafo único, art. 102, §§ 1º e 2º, art. 106, X, XI e XII, art. 108, art. 109, art. 68, parágrafo único).[2]
No primeiro capítulo, em suas disposições gerais, o CDC preocupa-se em estabelecer os conceitos de “consumidor”, “fornecedor”, “produto” e “serviços” (arts. 1º a 3º). Consumidor, segundo o diploma normativo em espeque, é “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (art. 2º, caput). Com efeito, a Lei equipara à consumidor a “coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo” (art. 2º, p. único).
Vê-se, portanto, que a definição de consumidor é bastante ampla, a começar por abranger pessoas naturais e jurídicas e por não se restringir à noção meramente contratual do adquirente, mas também abarcar as vítimas de ilícitos pré-contratuais e de práticas comerciais abusivas.[3]
A questão principal que se põe ao estudioso do tema, no entanto, é o significado e a extensão do termo “destinatário final”. Veja-se que ele qualifica a relação contratual de aquisição de produtos e serviços como afeta ou não ao direito consumeirista. Em outras palavras, tratando-se do consumidor propriamente dito, também chamado de standard ou consumidor stricto sensu (excluído, portanto, o consumidor por equiparação), a pedra de toque que o define é exatamente esta: saber se ele é o ou não o destinatário final do produto/serviço.
Debrucemo-nos, então, sobre o conceito jurídico em testilha.
Cumpre inicialmente mencionar que duas correntes doutrinárias nasceram com o intuito de explicar o ponto debatido – a maximalista e a finalista.[4]
A corrente maximalista tem uma visão objetiva da relação de consumo, visando descobrir quem seria o destinatário de fato (destinatário fático) do produto ou serviço. Em suma, basta que o produto ou serviço seja retirado do mercado para que seja possível indicar o consumidor.[5]
Essa teoria, então, não perquire a finalidade da coisa ou do serviço adquirido pelo interessado. Ainda que o produto seja revendido pela pessoa que o adquiriu, tal fato não irá desnaturar a relação de consumo que lhe foi subjacente.
A título exemplificativo, a teoria maximalista vê na aquisição de caminhões por transportadora de grande porte uma relação de consumo pautada pelas regras do CDC.
A teoria finalista, por outro lado, tem viés subjetivista, uma vez que se ocupa da destinação econômica do bem/serviço para que a relação seja qualificado como de consumo. Nesse prisma, o destinatário final (e, portanto, consumidor), “seria aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física”.[6]
Pondera, em acréscimo, Claudia Lima Marques:
[...] não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do produto ou serviço, ou como afirma o STJ, haveria consumo intermediário, ainda dentro das cadeias de produção e de distribuição.[7]
A restrição aos destinatários finais, que a princípio pode parecer maléfica aos consumidores, tem justamente o escopo contrário, porque pretende conferir ao consumidor standard um padrão mais alto de proteção, filtrando os casos em que uma das partes seja realmente hipossuficiente perante a outra na relação de aquisição de bens ou serviços.
No exemplo supracitado, a transportadora que adquire caminhões reinsere no mercado de consumo (no caso, por meio da prestação do serviço de transporte) os veículos, de sorte que, apesar de ser a destinatária fática destes bens, não é destinatária econômica, motivo pelo qual não há de se concluir pela relação consumeirista, mas pelo negócio jurídico disciplinado pelas normas do Direito Civil e Empresarial.
De rigor registrar que, logo no início da vigência do CDC, grande parcela da doutrina e dos tribunais seguia a teoria maximilista, a interpretar, de maneira excessivamente ampla, o conceito de consumidor. Houve, de início, certa aniquilação das normas de direito civil, porquanto a maioria dos contratos envolve a transferência de produtos e serviços. Com o tempo, no entanto, o entendimento jurisprudencial evoluiu e, a partir da entrada em vigor do Código Civil de 2002, a doutrina e a jurisprudência enveredaram pela teoria finalista.[8]
Com o enfrentamento de inúmeros casos, criou-se na jurisprudência, especialmente do Superior Tribunal de Justiça, a noção de que, ao lado da finalidade fático-econômica, dever-se-ia analisar a vulnerabilidade do adquirente ou utente para determinar se ele seria ou não consumidor. Essa interpretação, segundo Claudia Lima Marques, pode ser denominada de finalismo aprofundado, tendência que, para a autora, deve ser saudada, porque relativiza eventuais injustiças que poderiam ser cometidas por meio da interpretação pura da teoria finalista.[9] [10]
Assim, em casos complexos, nos quais produtos ou serviços são destinados a empresas pequenas, a análise da vulnerabilidade terá o condão de definir se as normas consumeiristas são aplicáveis à espécie.
Acerca da vulnerabilidade nas relações de consumo, disserta a aludida doutrinadora:
Vulnerabilidade é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo. Vulnerabilidade é uma característica, um estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção.[11]
A vulnerabilidade, segundo a doutrina e a jurisprudência do STJ, ocorre nos planos fático, técnico e econômico[12]. Na fática, a desigualdade entre o consumidor e o fornecedor ressai da “insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica”[13].
Na vulnerabilidade jurídica, o consumidor não possui conhecimentos jurídicos, contábeis ou econômicos para ficar em pé de igualdade com o fornecedor, de sorte a existir aí, também, desequilíbrio entre as partes que clama pela interferência do direito.[14]
Por fim, a vulnerabilidade técnica, tal como obtempera Claudia Lima Marques, é a “ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto do consumo”.[15]
Conclui-se, portanto, que o conceito de consumidor para fins de aplicação do CDC paulatinamente evoluiu, sendo certo que, no primeiro estágio, a teoria maximalista (objetiva) era prevalente na doutrina e nos tribunais, mas tal orientação mudou, passando a seguir a teoria finalista (subjetiva) que, recentemente, foi apurada, a incluir a análise da vulnerabilidade fática, jurídica ou técnica do adquirente ou utente para verificar se há ou não relação de consumo.
Conclusão
Como conclusão, estamos que a Constituição Federal constituiu verdadeiro divisor de águas no que tange à proteção do consumidor, haja vista que incluiu essa defesa no rol de direitos fundamentais e estipulou prazo para que o legislador criasse o Código de Defesa do Consumidor.
Ainda, conclui-se que o conceito de consumidor, expresso no CDC no artigo 2º, foi interpretado de maneira excessivamente ampla pela doutrina e pelos tribunais, em nítida adoção da teoria maximalista. No entanto, com o passar dos anos, os operados do direito paulatinamente abandonaram referida corrente e, hodiernamente, a teoria finalista é amplamente majoritária.
Outrossim, o estudo demonstrou que a teoria finalista tem algumas distorções e que, como forma de corrigi-las, os tribunais passaram a adotar certos critérios a fim de evitar o reconhecimento da relação de consumo em hipóteses nas quais, apesar de haver prestação de serviço/produto, a parte adquirente não é hipossuficiente, além de não ser a destinatária econômica do bem ou serviço recebido.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Adriano; MASSON, Cleber; ANDRADE; Landolfo. Interesses difusos e coletivos. 5 ed. São Paulo: Método, 2015, p. 465.
BRASIL, Câmara dos Deputados. Tramitação da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1990/lei-8078-11-setembro-1990-365086-norma-pl.html>. Acesso em: 17 set. 2016.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp 1038645/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 19.10.2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 17 set. 2016.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp 1195642/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.11.2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 17 set. 2016.
MARQUES, C. L.; BENJAMIN, A. H. V.; BESSA, L. R. Manual de Direito do Consumidor. 6 ed. São Paulo: RT, 2014, p. 98.
REALE, M. O Direito como experiência. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
[1] O Direito como experiência. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 201.
[2] BRASIL, Câmara dos Deputados. Tramitação da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1990/lei-8078-11-setembro-1990-365086-norma-pl.html>. Acesso em: 17 set. 2016.
[3] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 6 ed. São Paulo: RT, 2014, p. 98.
[4] Essas teorias foram identificadas e nomeadas pela Professora Cláudia Lima Marques, que as mencionou pela primeira vez em sua obra Contratos no CDC, edição de 1992.
[5] ANDRADE, Adriano; MASSON, Cleber; ANDRADE; Landolfo. Interesses difusos e coletivos. 5 ed. São Paulo: Método, 2015, p. 465.
[6] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Op. cit., p. 101.
[7] Op. cit., loc. cit.
[8] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Op. cit., loc. cit.
[9] Id. Ibid., loc. cit.
[10] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp 1038645/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 19.10.2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 17 set. 2016.
[11] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Op. cit., loc. cit.
[12] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp 1195642/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.11.2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 17 set. 2016.
[13] Id., ibid., p. 105.
[14] Id., ibid., loc. cit.
[15] Id., ibid., loc. cit.