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Sobre a utilização de fetos humanos mortos em pesquisas científicas

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14/07/2004 às 00:00
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DA BIOLOGIA AO DIREITO

Contudo, ainda que analisemos o status desses fetos à partir da biologia, também poderemos chegar ao conceito moral do princípio de dignidade humana. Isto porque na esteira de Ferry podemos fazer uma distinção entre a situação dos fetos e a sua condição própria.

Sabemos que a situação – qualquer situação - é contingente, e portanto impermanente. Sabemos também que a condição de um ser – qualquer ser - é permanente, porque refere-se ao seu próprio modo de ser. (Ainda que hipotéticamente ele pudesse se transformar em outro ser, seria sempre um outro ser, e nessa situação forçosamente teria um modo de ser distinto do precedente). É por isto que em relação aos fetos humanos, podemos afirmar que a contingência da sua situação não tem o poder de modificar a permanência da sua condição. No caso em exame, a situação (eventual) dos fetos é a de estarem mortos. Mas a sua condição (permanente) é a de serem humanos. Considerados deste ponto de vista, os fetos humanos, mesmo mortos, não perdem a proteção jurisdicional porque mesmo na situação de mortos não perdem a sua condição de humanidade: ainda são fetos humanos, e não de porcos, de ovelhas ou de ratos, por exemplo. Não podem ser destituídos da sua condição de humanidade, qualquer que seja a circunstância, simplesmente porque esta lhes é inerente e não lhes pode ser arrancada. É portanto esta sua condição de fetos humanos que lhes confere a dignidade humana que deve ser respeitada por causa da proximidade que nos une a todos, ligados que somos pela solidariedade ontológica existente entre os seres humanos. 25


MAIS OBJEÇÕES

Uma outra objeção seria a de não termos no Brasil uma legislação específica sobre a utilização de fetos humanos (mortos ou vivos) em pesquisas científicas. Valeria então o princípio de segurança jurídica já historicamente consagrado e representado pelo axioma "aquilo que não está proibido, é permitido." 26 Tal objeção seria reforçada pela interpretação de que o princípio de liberdade expresso no item II do Art. 5º da nossa Carta Magna asseguraria uma ampla liberdade para a investigação científica no Brasil. 27

Em resposta a estas novas objeções argumentamos que é de praxe na tradição jurídica, quando não há uma legislação nacional específica, que os ordenamentos nacionais levem em conta o modo como outros países de mesma cultura resolveram aquele problema novo que se apresenta. Se eles também não têm ainda uma solução legal, o caminho indicado é o de guiar-se pelos princípios gerais do Direito, que em geral são cosmopolitas. Por último, na ausência de legislação nacional e alienígena e havendo dificuldades para a aplicação dos princípios gerais do Direito (em caso de conflito entre eles, por exemplo), os valores do ethos local podem servir para balizar as decisões judiciais.28

Ora, nosso ordenamento jurídico segue o padrão romano-germânico, que é também o adotado na maioria dos países europeus e latino-americanos. Assim, na ausência de uma legislação brasileira especifica,29 além das recomendações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde,30 podemos recorrer ao "Convênio para a proteção dos Direitos Humanos e a dignidade do ser humano com respeito às aplicações da Biologia e da Medicina" (1996), em vigor na Comunidade Européia.

Este convênio, que adota recomendações da Associação Médica Mundial (sobretudo as expressas na Declaração de Helsinki e as que a ratificaram ou emendram), enfatiza em seu preâmbulo a "necessidade de respeitar o ser humano ao mesmo tempo como pessoa e como pertencente à espécie humana", bem como ressalta a "importância de garantir a sua dignidade". Além disso, no seu Capítulo VII proíbe expressamente o aproveitamento e a utilização de partes do corpo humano. Devemos por fim nos reportar à Declaração da Associação Médica Mundial sobre os transplantes de Tecidos Fetais (1989), que sob o nome de "Declaração de Hong-Kong" emenda a Declaração de Helsinki, adotada pela maioria dos países ocidentais, inclusive o Brasil.31

Todas estas normas, os princípios gerais do Direito e a nossa cultura latina têm em comum os princípios de respeito à pessoa e de respeito à dignidade do ser humano, ou seja: fundamentam-se naquela "solidariedade ontológica" de todos os seres humanos de que fala Malherbe. Quanto à questão da liberdade absoluta para a pesquisa científica, já vimos que desde a má utilização dessa liberdade pelos nazistas e por outros pesquisadores, a comunidade mundial passou a reconhecer a necessidade da imposição de limites éticos às ditas pesquisas. Prova disto são as sucessivas Declarações da Associação Médica Mundial e de outros organismos supranacionais sobre a matéria, e as leis vigentes na maior parte dos países ocidentais sobre o assunto.


NOVOS QUESTIONAMENTOS

Resolvido este ponto, surgem novas indagações: "Os fetos humanos mortos merecem a proteção legal como pertencentes à espécie humana?" e "Os fetos humanos mortos podem ser considerados como parte extraída do corpo das suas mães?"

Salvo melhor juízo e diante do já discutido acima, a resposta à primeira pergunta é afirmativa. Além do mais, embora não tenhamos na legislação pátria uma definição do estatuto jurídico dos fetos humanos como a têm os italianos, podemos afirmar que entre nós a proteção à persona é uma matéria que transcende à própria personalidade civil, pois a tutela legal abrange o feto (Código Civil)32 e o morto. (Lei dos Transplantes).33 Assim, quer na condição de feto, quer na condição de morto, a dignidade humana está entre nós juridicamente protegida. Da mesma forma, o Pacto de San José da Costa Rica (também conhecido como Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos - 1996) do qual o Brasil é signatário, assegura a proteção da pessoa desde o momento da concepção, e isto abrange os embriões e os fetos.34 Portanto, mesmo que os fetos em questão não sejam titulares jurídicos de um direito fundamental, são contudo merecedores da proteção legal à sua dignidade humana em virtude da sua inafastavel condição de fetos humanos.

Quanto à segunda pergunta, ela também pode ser respondida afirmativamente porque enquanto ainda dependente do corpo da mãe para a sua sobrevivência, o feto efetivamente faz parte daquele corpo. Podemos assim considerar também os fetos em questão como parte do corpo das suas mães, porque foi delas que foram extraídos (ou espontaneamente expelidos).35

Disto decorre para as mães um duplo direito ao exercício da Autonomia, protegido pela Resolução CNS 196/96: quer para dispor de parte do próprio corpo, quer para dispor do destino do seu feto, considerado juridicamente incapaz. Contudo, estes direitos delas não podem ferir o interesse jurídico legalmente protegido deles que é o direito à sua dignidade humana. Este interesse jurídico e esse valor moral precisam, em última análise, serem protegidos por terceiros, já que eles próprios não podem exigir tal proteção. É aqui que entram os Comitês de Ética.


ENCONTRO DA MORAL COM O DIREITO

Chegamos portanto ao ponto do encontro do enfoque legal com o enfoque moral. Nesse contexto, queremos reafirmar o fato de que embora do ponto de vista biológico um feto humano morto não difira muito, por exemplo, de um feto morto de um primata, mesmo assim o feto humano goza daquela proteção oriunda da solidariedade ontológica de que falamos, a qual em última análise traduz-se pelo respeito que a nossa cultura lhe confere em decorrência da sua condição de pertencente à humanidade. Como explica Sádaba,

"aunque en si misma y como producto de la evolución, la humanidad tenga un valor equivalente a otras especies, de ahí no se sigue que tal humanidad como construcción interna nuestra no haya adquirido determinados valores que no tenemos por qué extender, automáticamente, a cualquier otra especie."36

É fundamental enfatizar que isto não envolve qualquer especismo, como equivocadamente alegam os utilitaristas (e Singer, em particular). Especismo seria dizer que nós, os humanos, somos melhores que os primatas e os outros animais tão somente pelo fato de sermos humanos, e nada mais. Enquanto que o que estamos afirmando aqui é apenas que "o embrião humano é engendrado por outros seres humanos" (Malherbe, apud Junges). E também que pelo menos até agora, todos os seres humanos "nascem de uma mulher" e são todos "gerados, e não criados". (Comte-Sponville).

Isto implica reconhecer que embora biologicamente pertençamos ao reino animal com todas as suas limitações e implicações, (somos sublimes e somos cruéis, somos gênios e somos imbecís, somos altruístas e somos crápulas, por exemplo), somos também construtores de valores que apreciamos e que queremos desenvolver ainda mais.37 Dentre esses valores, podemos apontar por exemplo o desenvolvimento do espírito (embora estejamos ainda no início da jornada, pois desenvolvimento intelectual não é o mesmo que desenvolvimento espiritual), e a consecução de uma civilização que estimamos pelo menos como defensável, a qual desejamos manter e melhorar ainda mais. (Desenvolvendo uma cultura da Paz, por exemplo). É por tais circunstâncias que um feto humano, apenas por pertencer à espécie humana, já faz parte destas conquistas e merece todo o respeito à sua dignidade.

Paul Ricoeur e Lucien Sève, do Comitê Francês de Bioética, utilizam o conceito jurídico anglo-saxão de to ascribe (atribuir, que eles traduzem por "ascrição") para dar a dimensão da abrangência dessa dignidade:

"...É óbvio que nem o embrião, nem sequer o feto, nem o louco que perdeu, de vez, o uso da razão e juízo, nem o comatoso em fase final, respondem a esta definição da pessoa. Então, a pergunta é: em virtude de que podemos atribuir dignidade pessoal a estes seres que não se enquadram na definição comum e admitida de pessoa? A resposta da ciência atual é pela "ascrição", isto é, pela atribuição de certa dignidade pessoal, outorgada criteriosamente, a seres que julgamos merecedores dela, pela proximidade que intuímos desfrutar conosco, apesar de eles não satisfazerem os critérios da definição clássica da pessoa, sujeito racional, livre, autônomo e responsável. A "ascrição" não resulta de uma decisão individual, mas de um juízo comunitário, cultural ( do ethos) que admite o mais ou menos, porque toda participação admite o mais ou menos."38

Este conceito de "ascrição" atende portanto satisfatoriamente aos parâmetros filosóficos subjetivos da modernidade, e aos conceitos éticos de alteridade e proximidade daí decorrentes. E serve ainda para assinalar a particularidade própria dos humanos: a de que "nunca existimos no singular" (Levinas). Isto significa reconhecer que a humanidade é também uma transmissão: recebemos de nossos semelhantes não só as potencialidades iniciais, (dimensão filosófica) mas também as ocasiões de atualizá-las; (dimensão prática) não apenas o patrimônio genético, (dimensão orgânica), mas também a rede básica de relacionamentos (dimensão psíquica); e o patrimônio cultural (dimensão simbólica).39

Ou seja: serve para fixar de modo inquestionável o fato de que o ser humano só o é plenamente na intersubjetividade da sua relação com seus semelhantes. É na nossa relação com o outro que nos percebemos como indivíduos únicos, e é no espelho do outro que nós nos aprimoramos. Por isto é que Malherbe diz que não respeitar o semelhante é o mesmo que auto-destruir-se. E Lévinas afirma que "O conhecimento mais audacioso e distante não nos põe em comunhão com o verdadeiramente outro; não substitui a socialidade; é ainda e sempre uma solidão." 40

É importante observar que além de não ser especista, a defesa que aquí se faz da proteção à dignidade humana também não tem cunho vitalista nem muito menos fundamentalista. Isto porque a nossa posição não se embasa em qualquer ideologia nem em qualquer crença religiosa, mas tão somente no reconhecimento de algumas realidades inquestionáveis: primeiro, que a humanidade é um fato antes de ser um valor: "Nascemos homens, tornamo-nos humanos. Mas quem não consegue se tornar, nem por isso deixa de ser homem". (Compte-Sponville, 2002). Isto nos leva ao segundo ponto: o de que o ser humano é um sujeito que se constrói pela realização de valores, e que portanto esses valores devem ser respeitados. O terceiro ponto é que até agora a ciência não conseguiu determinar com precisão o momento em que o embrião passaria a ser humano, questão esta encarada até o momento como um "falso problema" do ponto de vista científico.41 (Como a discussão da teologia escolástica sobre o momento em que a alma entraria no corpo, por exemplo).

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Efetivamente, a ciência até hoje não tem condições de contestar o fato de que "não acontece nenhum fenômeno ulterior que torne humano quem já não o era. Existe o desenvolver de potencialidades que estão presentes desde o início." 42 É por tudo isto que não podemos encontrar soluções para o nosso problema dentro dos restritos domínios da biologia. É também por tudo isto que os parâmetros ético-jurídicos são os mais adequados, e podem ser adotados para este caso com valor de verdade. Ou pelo menos até que uma outra verdade que prove ser mais verdadeira os destitua deste valor.

Ocorre que na jurisprudência pátria encontramos a mesma defesa radical da dignidade humana baseada naquela solidariedade ontológica a que nos referimos: "Aquele que ofende a dignidade de qualquer ser humano, [....] ofende a dignidade de todos e de cada um".43 É igualmente com base no fundamento da dignidade humana que Chieffi reforça o limite ético da liberdade na pesquisa científica:

"El principio general inviolable de respeto a la persona humana constituye un claro límite a la libertad de investigación. La finalidad esencial de este principio estriba en la tutela del individuo contra todas aquellas actuaciones que pueden degradarlo a la categoría de objeto" 44

Nada impede portanto que estendamos aos fetos em questão o respeito à sua dignidade humana, pois vimos que mesmo na situação de mortos eles não perdem a sua condição de humanidade. Ainda que mortos, não podemos permitir sua reificação porque mesmo nessa situação eles não podem ter sua condição reduzida a de meras "peças", simples objetos vazios de significado a serem usados e descartados em nome dos "nobres fins" da ciência. Consideramos portanto que a eles se aplicam as determinações da Resolução CNS 196/96, feita com ampla consulta à sociedade brasileira e refletindo também o nosso ethos.

Conseqüentemente, em casos de pesquisa científica que tenha como sujeito fetos humanos, consideramos adequado solicitar do pesquisador os seguintes procedimentos:

a) que o protocolo de pesquisa esclareça sobre a relevância científica da pesquisa a ser efetuada (R. 196/96, III .3 e VII.14);

b) que o protocolo de pesquisa esclareça o destino final dos fetos após a realização da mesma (R. 196/96, VI.2).

c) que seja solicitado para cada um dos sujeitos da pesquisa um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a ser assinado pelas respectivas mães, ou, na impossibilidade de identificá-las, que seja esclarecida a origem desses fetos e solicitado dos seus responsáveis uma explicação sobre as condições da sua obtenção. (R 196/96, IV.3, e Lei n. 9.434/97, arts. 15-17).

Com o cumprimento de tais exigências, cremos estarem atendidos os requisitos de respeito à dignidade humana dos fetos em questão bem como o respeito à autonomia das doadoras, e com isto igualmente protegidos os interesses da humanidade e da civilização, os quais devem ser defendidos por todos e por cada um de nós, humanos que somos.

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Sobre a autora
Maria Marta Guerra Husseini

jornalista, professora aposentada do Departamento de Filosofia da UFRN, membro da Sociedade Brasileira de Bioética, aluna do Mestrado em Bioética e Direito da Universidade de Barcelona (Espanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HUSSEINI, Maria Marta Guerra. Sobre a utilização de fetos humanos mortos em pesquisas científicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 372, 14 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5451. Acesso em: 22 dez. 2024.

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