Análise da conduta médica diante da recusa de tratamento motivada por crença religiosa

05/02/2017 às 10:52

Resumo:


  • O conflito entre crenças religiosas e intervenções médicas necessárias para salvar vidas é uma questão recorrente, especialmente com Testemunhas de Jeová que recusam transfusões de sangue.

  • A Constituição Federal brasileira garante tanto o direito à liberdade de crença religiosa quanto o direito à vida, mas em situações de conflito, o direito à vida prevalece, permitindo intervenções médicas sem consentimento do paciente se houver risco iminente de morte.

  • Conselhos de Medicina e decisões judiciais reforçam que o médico pode e deve realizar procedimentos salvadores de vida, como transfusões de sangue, contra a vontade do paciente se necessário, mas devem respeitar a autonomia do paciente quando não há risco iminente de morte.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Como o aparente conflito entre o direito à vida e a liberdade de crença religiosa é tratado pelo Conselho Federal de Medicina, Conselhos Regionais e pelo Poder Judiciário, notadamente quando é necessária a realização de transfusão de sangue.

Não é raro ocorrer, no dia a dia de clínicas e hospitais, o aparente conflito entre a crença religiosa e a necessidade/direito do médico de adotar conduta adequada para salvaguardar a vida do paciente.

Notadamente isso ocorre com maior frequência com as pessoas que adotam para guiar suas vidas a religião Testemunhas de Jeová. Não é o objetivo deste breve artigo discutir as opções religiosas, em enorme prestígio à liberdade de crença, mas sim apresentarmos uma consequência recorrente desta opção.

A análise passará, de forma sucinta, pelos aspectos constitucionais, legais e éticos da questão, apresentando ainda posicionamentos de nossos Tribunais, Conselho Federal e Conselho Regional de Medicina.

Pois bem.

A liberdade de crença religiosa é direito salvaguardado pela nossa Constituição Federal, dentre os direitos fundamentais previstos no art. 5º, mesma qualificação dada para o direito à vida. E, nesse momento, verifica-se um aparente conflito de direitos fundamentais, porque, ainda que alocados em semelhante posicionamento no ordenamento constitucional, é óbvio e pacifico o entendimento de que o direito à vida sobrepõe a liberdade de crença religiosa.

Vale dizer, o indivíduo não possui livre disposição sobre sua vida, em qualquer situação, apenas porque adotou certa crença religiosa. Como visto, no aparente conflito entre a liberdade religiosa e o direito à vida, deve este último prevalecer.

Já no âmbito Ético, o art. 24 do C.E.M. dispõe que é vedado ao médico “Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo” e vale também transcrever a vedação do art. 31 “Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.” Isso pode apresentar uma falsa sensação de que o paciente pode dispor de sua vida, que o médico não pode nada fazer diante de uma recusa de transfusão de sangue, por exemplo, mas veremos mais adiante que tal raciocínio é equivocado.

Por fim, no âmbito criminal, o Código Penal afirma ser lícita a intervenção médica sem consentimento do paciente e/ou familiar, quando presente o risco de morte. (art. 146, §3º, I).

Por sua vez, o médico tem o direito/dever de salvar vidas, de empregar todos os meios para isso, mesmo contra a vontade da pessoa ou de seus familiares, ainda que a oposição seja apresentada com motivos religiosos.

Mas diante da recusa do tratamento por opção religiosa, dependendo em que momento essa negativa é manifestada, cabe ao médico tomar certas providências para salvaguardar a vida do paciente e o livre exercício de sua profissão, vejamos.

Os Conselhos Regionais de Medicina, bem como o Conselho Federal já enfrentaram a matéria, publicando respostas às consultas formuladas.

No CREMESP, já adotou-se o entendimento de que o Código de Ética Médica vigente deixa ao médico a possibilidade, se ele quiser, de intervir até mesmo contrariamente à vontade do paciente notadamente tratando-se de iminente perigo de vida (Consulta 29.299/96 e Consulta 41.191/99).

No CFM a postura sobre o assunto é a prevista na Resolução CFM nº 1.021/80, em seu artigo 2º, que diz: "Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis”.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, já julgou pela supremacia do direito à vida sobre a liberdade de crença religiosa:

Indenizatória - Reparação de danos - Testemunha de Jeová - Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação - Convicções religiosas que não podem, prevalecer perante o bem maior tutelado peta Constituição federal que é a vida - Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sangüíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos - Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue quando da internação da autora — Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuados com exames médicos, entre outras, que não merece acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante - Recurso improvido. (Apelação 9131552-72.1999.8.26.0000)

É notável que, quando diante do risco à vida do paciente, afigura-se possível a realização da transfusão de sangue, mas há situações em que, afastado o perigo de ofender a vida do paciente, sua autonomia de vontade deve ser respeitada e até prevalecer.

Brilhante e conclusiva é a lição do Conselho Federal de Medicina, na conclusão da Resolução 1021/80, in verbis:

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:

1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.

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Em alguns Conselhos Regionais há ainda a orientação, quanto ao item 1º da Resolução acima dita, de que os médicos deverão reconhecer o direito a liberdade de crença do paciente, atualizar-se em relação às técnicas alternativas à transfusão de sangue, esclarecer o paciente sobre essas técnicas e que respeitando sua convicção religiosa utilizará dos meios que evitam a transfusão, mas se, em situação de risco, for necessária a transfusão ele a fará. Ainda orienta de que, permanecendo o conflito entre médico e paciente aquele poderá renunciar ao atendimento. (vide CREMESC Consulta 2044/2011)

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já se manifestou nesse sentido:

CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL E DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO; É FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR AS ESPECIFICIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA. (Apelação Cível Nº 595000373, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Gischkow Pereira, Julgado em 28/03/1995)

Portanto, diante disso, o sopesamento dos valores constitucionalmente protegidos, quais sejam, o direito à vida e a liberdade de crença religiosa, é questão recorrente no cotidiano da Medicina e merece a devida atenção, para prestígio e preservação do direito de todos os envolvidos. Vale muito, para os médicos terem a orientação adequada de qual atitude tomar diante de uma situação dessas, para que não prejudique a saúde e vida do paciente mas para que também não coloque em risco sua profissão e reputação.

Sobre o autor
Marcelo Lavezo

Advogado especialista em Direito Empresarial - Tributário, pos-graduando em Direito Civil e Processo Civil, atuante também em Direito Médico e da Saúde.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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