Capa da publicação Receptação e ato infracional: um vácuo na lei penal
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Conflito de crime e ato infracional no delito do art. 180 do CPB

14/02/2017 às 16:09
Leia nesta página:

Se o bem provém de ato infracional, há crime de receptação? O artigo discute a lacuna do art. 180 do CP frente ao ECA e a possível reforma para incluir atos infracionais.

Na redação do art. 180 do Código Penal, verifica-se a ausência de subsunção direta com o enunciado necessário à aplicação do crime de receptação ao imputável que adquiriu coisa proveniente de ato infracional, e não de crime.

Com base no que dispõe o art. 103 do ECA e na redação do art. 180 do Código Penal Brasileiro, analisemos os conceitos de crime e de ato infracional.

Crime é uma transgressão imputável da lei penal, por dolo ou culpa, mediante ação ou omissão (delito). Sob o conceito analítico, é a ação típica, antijurídica, culpável e punível. Já sob o conceito material, trata-se do ato que viola ou ofende um bem juridicamente tutelado.

Nos dizeres do Professor Magalhães Noronha:

“A história do Direito Penal é a história da humanidade. Ele surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou.”

Embora seja um fenômeno social, o crime não foi definido pelo Código Penal. Apesar de estudado por diversos ramos, “é uma construção fundamentalmente jurídico-penal”, e seu conceito não é facilmente delimitado.

Para Celso Delmanto, crime, em seu conceito material, é “a violação de um bem jurídico penalmente protegido”.

Na história do Direito, há diversos autores com as mais variadas definições e conceitos, o que dispensa, aqui, aprofundamento.

Na mesma linha, Guilherme de Souza Nucci define a conduta típica, antijurídica e culpável como:

“Ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária ao direito (antijurídica) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito.”

Doutra banda, surge, na história do Direito Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Nele, estabelece-se que o adolescente não comete crime, mas, sim, ato infracional.

Transcreve-se, a seguir, o teor do art. 180 do Código Penal (redação dada pela Lei nº 9.426/1996):

Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

Receptação qualificada (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

§ 1º - Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

§ 2º - Equipara-se à atividade comercial, para efeito do parágrafo anterior, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercício em residência. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

§ 3º - Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

§ 4º - A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

§ 5º - Na hipótese do § 3º, se o criminoso é primário, pode o juiz, tendo em consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. Na receptação dolosa aplica-se o disposto no § 2º do art. 155. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)

§ 6º - Tratando-se de bens e instalações do patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista, a pena prevista no caput deste artigo aplica-se em dobro. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)

Art. 180-A. Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime: (Incluído pela Lei nº 13.330, de 2016)

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 13.330, de 2016).

Analisando o conteúdo do crime de receptação previsto no art. 180 do Código Penal e o conceito de crime já comentado, verifica-se que, na atualidade, entende-se que o adolescente (inimputável) não comete crime, mas ato infracional. Surge, então, o questionamento: quando o imputável pratica os verbos do art. 180, sabendo que a coisa adveio de um ato infracional e não de um crime, comete efetivamente receptação?

Para dirimir a dúvida, vejamos o § 4º do art. 180:

“§ 4º. A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa.”

Nessa vertente, ao se vislumbrar que o imputável adquiriu a res proveniente de ato infracional, não responderia pelo crime de receptação, tratando-se de fato atípico formal por faltar legalidade, haja vista que o adolescente não comete crime, e sim ato infracional. A redação do delito de receptação é clara ao mencionar crime e não ato infracional. Contudo, como punir alguém que adquiriu a res sabendo ser produto de ato infracional?

Nesse diapasão, a discussão torna-se acalorada, podendo haver necessidade de mudança no art. 180 do Código Penal Brasileiro, a fim de permitir a aplicação natural da lei. Não se entende cabível a aplicação da analogia, tampouco a utilização da definição do art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe:

“Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.”

O que se observa é apenas a doutrina fazendo uma consideração linguística à palavra crime praticado por um adolescente, e não um conceito formal. Essa questão merece ser revista.

Concluindo, o presente artigo não tem o condão de exaurir o tema, mas visa, além de aprimorar a doutrina, demonstrar que o imputável não, em tese, cometeria crime de receptação ao enquadrar-se nos verbos do art. 180 do Código Penal, visto que a res teria sido proveniente de ato infracional, uma vez que o adolescente não comete crime, e sim ato infracional.

Não se pode afirmar que haveria analogia apta a adequar o ato infracional ao crime para o imputável que praticasse conduta correspondente aos verbos do crime de receptação. Para que tal desvio se tornasse aplicável, seria necessário que a conduta do receptador estivesse formalmente vinculada à expressão crime constante do art. 180 do Código Penal Brasileiro.

Na doutrina, observando-se o enunciado do art. 103 do ECA, quando se menciona contravenção penal, esta não se enquadra na definição de crime, e, na jurisprudência, não se admite receptação de coisa proveniente de contravenção penal.

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Data venia, dever-se-ia acrescentar ao teor do caput do art. 180 do Código Penal Brasileiro a seguinte redação:

Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que saiba ser produto de crime ou de ato infracional; ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

Pena: reclusão, de um a quatro anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996).

Dessa forma, modificando-se o teor da redação com a inserção da expressão ato infracional no caput do art. 180, ou, ainda, acrescentando-se parágrafo específico no referido artigo, poderia ser prevista a majoração da pena para o receptor que adquirisse coisa proveniente de ato infracional.


Referências Bibliográficas

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: Renovar, 2000.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

Sobre o autor
Carlos Neves Duarte

Agente da Polícia Civil no estado do RN, Bacharel em Direito, especialista em Criminologia, Direito Penal, Processual e Constitucional.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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