1 INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade do século XX, com a derrocada do nazismo e do fascismo e tomando como base as atrocidades patrocinadas por esses nefandos regimes governamentais, diversas correntes do pensamento puseram-se a desenvolver modernas teorias, hodiernamente rotuladas de pós-positivistas. Todas elas, por mais díspares, contendo um ingrediente comum: apresentar uma solução para os problemas de interpretação da Constituição e para a concretização dos direitos fundamentais ante a evidente insuficiência dos métodos hermenêuticos clássicos, em especial daqueles baseados na lógica formal fruto do positivismo normativista.
O método baseado na lógica-formal-dedutiva de compreender e interpretar o direito e a fórmula da concretização das normas pela via da simples subsunção, a partir do entendimento de que o ordenamento jurídico, dotado de plenitude, conteria as soluções para todos os casos, resta de todo superado, notadamente quando se está diante de um caso de difícil solução.
Com a ideia da superação do paradigma positivista, vê-se ruir, outrossim, a equivocada tese de que a Justiça é valor imanente ao Direito, inserta já em seu conteúdo, o que dispensaria qualquer tipo de valoração a partir de conceitos extrajurídicos. O Direito posto deixa, então, de ser visto exclusivamente como uma realidade dada, pronta e acabada, como o produto de uma autoridade e passa a ser encarado como uma prática social que incorpora uma pretensão de correção ou de justificação. (ATIENZA, 2013, p. 29)
Nesse contexto, surgem as teorias da argumentação jurídica e, com elas, são apresentados novos paradigmas de interpretação do Direito e da Constituição. Embora as teorias da argumentação jurídica que gozam de maior aceitação atualmente (aquelas produzidas a partir do final dos anos setenta do século XX) não tenham como poposta principal servir de contraponto ao método dedutivo, como se propuseram as suas precursoras ainda na década de 50 do mesmo século, preconizam com segurança que a lógica dedutiva não permite realmente uma justificação das decisões judiciais nos casos difíceis. Careceria inegavelmente de outros recursos, notadamente diante da indeterminação normativa e da abertura da Constituição.
Casos há, não há dúvida, de que a solução será facilmente encontrada no ordenamento jurídico e a regra jurídica simplesmente aplicada pelo intérprete, que se servirá de uma lógica matemática e dos métodos clássicos de interpretação propostos por Savigny, sem a necessidade de qualquer atividade criadora ou sem que se façam valorações extrajurídicas de qualquer ordem. Mas inúmeros casos somente encontrarão a sua solução a partir da argumentação racional, da ponderação de princípios - cuja força normativa, ao lado da força normativa da Constituição já não mais se discute - da construção de argumentos e de seu manejo com a habilidade necessária a se demonstrar que nem sempre pelo fato de se encontrar positivada e formalmente válida, uma determinada norma é justa.
O presente trabalho, tomando como ponto de partida essa mudança de paradigma, tem como objetivo realizar um breve estudo da tópica, a arte de interpretar o Direito a partir do problema. A teoria, proposta por Theodor Viehweg na obra “Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos“, publicada pela primeira vez em 1953, como sua tese de livre-docência, inspira-se nas obras de Cícero e Aristóteles e busca, em verdade, promover o resgate da ars inveniendi difundida na antiguidade pelos dois grandes pensadores.
Precursora das modernas teorias da argumentação jurídica, a tópica adota a lógica do provável, resgatando a argumentação retórica, dialética, em contraposição à lógica analítica norteadora do conhecimento apodítico. Em linhas gerais, consiste em uma técnica de se pensar o direito a partir do problema, tendo como referência um catálogo de lugares-comuns - os topoi - para, só então, chegar-se à melhor solução para a concretização dos direitos e garantias fundamentais. Trata-se, na verdade, do primado do problema/caso sobre a norma e o sistema. A solução não parte do sistema ou da norma. É a partir do problema proposto, necessariamente uma aporia, para a qual não há uma solução indicada no sistema, que a tópica orientará o intérprete no caminho pela busca da solução mais adequada. O caso concreto será debatido por uma coletividade de interessados, que buscará no consenso a resposta. Esse processo de argumentação em busca do consenso e, por conseguinte, da melhor solução para a aporia em jogo, é eminentemente retórico, dialético, e tem como norte um catálogo de enunciados diretivos que não se tratam de verdades apodíticas, mas de probabilidades, de possibilidades.
Pretende-se, no presente trabalho, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema ou de apresentar conclusões com foros de definitividade, analisar se a tópica é capaz de fornecer as ferramentas necessárias à argumentação jurídica; se consiste ela realmente em uma fórmula eficaz de concretização do direito, em especial das normas de atuação dos direitos fundamentais e até que ponto esta teoria poderia ser importada e aplicada ao ordenamento jurídico brasileiro. Demais disso, pretende-se verificar se a Corte Constitucional Brasileira, em menor ou maior grau, tem se ancorado na tópica, em contraposição à hermenêutica clássica, para a resolução de casos difíceis, como cada vez mais as cortes Constitucionais de outros países o tem feito.
2 O NEOCONSTITUCIONALISMO E A SUPERAÇÃO DOS PARADIGMAS JUSNATURALISTA E POSITIVISTA
O jusnaturalismo, como muito bem acentua Luis Roberto Barroso (2013), é uma corrente filosófica fundada na existência de um direito natural. Sua ideia básica consiste no reconhecimento de que há, na sociedade, um conjunto de valores e de pretensões humanas que independem do direito positivo. Esse direito natural tem validade em si, legitimado por uma ética superior e estabelece limites à própria norma estatal.
O jusnaturalismo, que começa a se formar no mundo moderno aproximadamente no século XVI, após dominar a filosofia do Direito por longo período de tempo, encontra a sua derrocada, paradoxalmente, exatamente no seu apogeu, já no século XIX, quando as suas premissas, os seus conceitos e preceitos são, de fato, reconhecidos como Direito e positivados, codificados. Ao serem redigidas as primeiras legislações codificadas, transformando em regras escritas e organizadas as normas oriundas do Direito natural e aceitas como existentes, válidas eficazes, a sociedade decide não mais admitir qualquer tipo de regramento estranho ao direito, considerado este apenas como aquele devidamente positivado na forma de lei escrita. A partir de então, direito válido, tanto do ponto de vista formal, como sob a ótica substancial e, Direito justo, é somente o Direito codificado, transformado em regra pelas mãos do Estado legiferante (Barroso, 2013).
Durante séculos, com a superação do paradigma jusnaturalista, o dogma positivista imperou. O Direito não comportaria nenhuma valoração com base em elementos meta ou extrajurídicos, promoveu-se a separação radical entre o Direito e a Moral e o simples fato de restarem positivadas, escritas, desde que produzidas pela autoridade competente e de acordo com o procedimento previamente estabelecido, as normas jurídicas deveriam ser observadas porque existentes, formalmente válidas e a expressão da Justiça. Ao intérprete não restaria nenhum espaço para a criação ou correção material do Direito, cabendo-lhe apenas a tarefa de interpretar a lei, com base nos métodos hermenêuticos clássicos, extrair dela o seu sentido e alcance e aplicá-la ao caso concreto, a partir de um raciocínio lógico-silogístico. Não era tarefa do juiz questionar se a lei era justa ou injusta, mas tão somente aplicá-la de acordo com a vontade estatal nela veiculada.
Não obstante, especialmente a partir da segunda metade do século XX, com a extinção dos regimes nazi-fascistas, tem início o declínio do modelo positivista. Ficou evidente, a partir das atrocidades cometidas pelo Estado nazista e fascista em nome da lei, que nem sempre Direito positivado é sinônimo de Direito justo. Ao contrário, no mais das vezes as leis escritas servem apenas de veículos para as pretensões pessoais ou partidárias dos detentores do Poder, como claramente se verificou, a guisa de ilustração, na Alemanha nazista.
2.1 Pós-positivismo e neconstitucionalismo
O marco teórico do que se considera a superação do paradigma positivista é o pós-positivismo, rótulo sob o qual se abrigam diversas teorias que tentam demonstrar, em linhas gerais, que a validade de um ordenamento jurídico pressupõe a inserção, em seus ditames, de uma pretensão de correção material; que a tarefa do intérprete do Direito vai muito além da simples subsunção lógico-matemática de um fato jurígeno a uma determinada lei expressa; que o direito deve ser criado e recriado no momento de sua aplicação ao caso concreto, a partir de argumentos racionalmente fundamentados.
Para Luís Roberto Barroso (2013, p. 269):
O debate acerca de sua caracterização situa-se na confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes, singularmente complementares. A quadra atual é assinalada pela superação - ou, talvez, sublimação - dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de ideias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo.
Pós-positivismo é conceito que, a seu turno, encontra abrigo na expressão mais ampla neoconstitucionalismo. Neoconstitucionalismo, como nova forma de se pensar o direito, na teoria jurídica e na prática dos tribunais, abriga tanto teorias pós-positivistas, como teorias positivistas, embora nitidamente se possa verificar a abrangência de doutrinas desapegadas do normativismo positivista, notadamente de suas correntes mais radicais.
Como explica Daniel Sarmento (2014), neoconstitucionalismo é a designação que vem sendo emprestada a um novo paradigma emergente no Direito Brasileiro, a partir de um conceito elaborado na Espanha e na Itália e que é responsável por profundas mudanças tanto na teoria como na prática jurídica dos tribunais. As principais mudanças acarretadas pelo neoconstitucionalismo, segundo o renomado autor envolveriam vários fenômenos diferentes, que podem assim ser sintetizados:
a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou estilos mais abertos de raciocínio jurídico [...] ; c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; d) reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da filosofia nos debates jurídicos; e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário. (Sarmento, 2014, p. 2)
2.2 O neoconstitucionalismo no Brasil
Ao destacar o papel da doutrina brasileira na mudança de paradigma do Direito Constitucional brasileiro, Daniel Sarmento observa que a evolução da doutrina pátria na direção do neoconstitucionalismo ocorreu em dois momentos. O primeiro deles, já ressaltado acima, constitui o que o autor, parafraseando Cláudio Pereira de Souza Neto (Sarmento, 2009), chamou de “constitucionalismo brasileiro da efetividade“, que consistiu basicamente no reconhecimento da força normativa da constituição. O segundo momento desta evolução seria o pós-positivismo constitucional.
Daniel Sarmento (2014) esclarece que, de fato, o primeiro momento para o aparecimento do neoconstitucionalismo na doutrina brasileira ocorreu logo após o advento da Constituição Federal de 1988 e consistiu justamente no fato de parte dos doutrinadores começarem a advogar a tese da força normativa da Constituição.
Konrad Hesse (1991), no mesmo sentido, em brilhante e clássico ensaio, contrariando a tese central de Ferdinand Lasalle sobre a essência da constituição jurídica, que para este último seria nada mais do que um pedaço de papel, que sucumbiria diante dos fatores reais de Poder, sempre que com estes conflitassem, também reafirma a força normativa da Magna Carta:
Ainda que não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem significado próprio. Sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo no campo das forças do qual resulta a realidade do Estado. A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia. [...]. (Hesse, 1991, p. 18-25)
Um outro ponto fulcral dessa mudança paradigmática, ao lado da sedimentação do reconhecimento da força normativa da constituição, é o reposicionamento dos princípios dentro do ordenamento jurídico e a consideração também do seu caráter normativo. Os princípios perdem o status de meros adornos e passam a ser definitivamente considerados como uma das espécies de normas, ao lado das regras.
O reconhecimento da força normativa dos princípios passa necessariamente por sua redefinição e realocação dentro do sistema jurídico e, em especial, pela diferenciação entre princípios e regras, contributo dado nos tempos atuais por Robert Alexy, muito embora já tivesse suas bases desenvolvidas anteriormente. (2008)
Consoante a lição de Luís Roberto Barroso (2013, p. 226), após longo processo evolutivo, consolidou-se na teoria do Direito a ideia de que a norma jurídica é um gênero que comporta, em meio a outras classificações, duas grandes espécies, as regras e os princípios. Em outras palavras, princípio seria uma subspécie do gênero norma, possuindo, portanto, força normativa e não meramente programática, assim como as regras, embora destas últimas se diferencie:
Tal distinção tem especial relevância no tocante às normas constitucionais. O reconhecimento da distinção qualitativa entre essas duas categorias e a atribuição de normatividade aos princípios são elementos essenciais do pensamento jurídico contemporâneo. (Barroso, 2013, p. 226)
Para Robert Alexy (1997, p. 86), em sua clássica teoria dos direitos fundamentais, a distinção entre princípios e regras, ambos como categorias, espécies do gênero normas jurídicas, é ponto fulcral e decisivo a fim de caracterizar o princípio não como uma mera aspiração a ser observada pelo operador do Direito de acordo com sua livre oportunidade e conveniência, mas como verdadeira norma, mandado de otimização, de observância cogente: “El punto decisive para la distinction entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenam que algo seja realizado na mayor medida possible […]“. (1997, p. 86)
As normas constitucionais – princípios e regras – assim, conforme adverte Barroso (2013, p. 78), como qualquer outra norma contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Assim, tem-se que a inobservância dos princípios, como normas constitucionais que são “há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das consequências da insubmissão ao seu comando“. (BARROSO, 2013, p. 78)
O pós-positivismo constitucional contagiou a doutrina brasileira por meio das obras de diversos autores, apontados como seus expoentes - malgrado muitos deles não se auto intitulem neoconstitucionalistas - tais como Robert Alexy, Ronald Dworkin, John Rawls, Jurgen Habermas, dentre tantos outros.
A partir dessa mudança de paradigma, pelo menos na seara doutrinária, o constitucionalismo brasileiro sofre uma verdadeira revolução. Fica evidente a necessidade de se adotar o novo paradigma, que “já não mais se assenta apenas em um modelo de regras e de subsunção, nem na tentativa de ocultar o papel criativo de juízes e tribunais.“ (Barroso, 2013, p. 289)
Mas não se pode negar que a evolução, no Brasil, em direção ao neoconstitucionalismo, não só chegou um pouco tarde, se comparada aos demais países, em especial a Itália e a Espanha, como se dá de forma lenta e gradual. Reconhecidas por parte importante da doutrina, que desde então “passa a enfatizar o caráter normativo e a importância dos princípios constitucionais, e a estudar as peculiaridades da sua aplicação“ (Sarmento, 2009, p. 289), as mudanças de paradigma fruto do neoconsticionalismo e do pós-positivismo são, ainda, muito pouco exploradas pela jurisprudência de nossos tribunais, incluindo os pretórios superiores.
Essa constatação não passou ao largo da percepção de Manuel Atienza. O autor, ao afirmar que a prática do Direito consiste, fundamentalmente, em argumentar, e ao preconizar que a qualidade que melhor define um bom jurista é a sua capacidade de construir bons argumentos e manejá-los com habilidade, testifica que “pouquíssimos juristas leram uma única vez um livro sobre a matéria e seguramente muitos ignoram por completo a existência de algo próximo a uma teoria da argumentação jurídica“ (Atienza, 2003, p. 17).
É possível afirmar, então, que malgrado arraigados na doutrina do Direito Constitucional brasileiro, os preceitos do neoconstitucionalismo ainda não contagiaram, como deveria, a prática de nossos Tribunais.
3 Teorias da argumentação jurídica e os novos métodos de racionalização do processo de interpretação e de aplicação do Direito
Dentre as teorias jurídicas contemporâneas que podem ser inseridas no que se convencionou chamar de neoconstitucionalismo não-positivista, destacam-se as teorias da argumentação jurídica. São várias as teorias ligadas ao enfoque argumentativo do Direito, com diferentes concepções, mas todas, contudo, com algo em comum: “[...] a rejeição do modelo da lógica dedutiva. [...] Esses autores não tratam simplesmente de mostrar que a concepção lógico-dedutiva tem seus limites [...]; eles também afirmam que pretender reconstruir a argumentação jurídica a partir disso é um equívoco ou, pelo menos, tem valor reduzido.“ (Atienza, 2003, p. 118)
Atienza (2003) observa que durante as duas últimas décadas do século XX o estudo da argumentação jurídica constituiu, sem dúvida, um dos principais centros de interesse da atual teoria e filosofia do Direito. Para o autor, de certo modo, a teoria da argumentação jurídica é a versão contemporânea da velha questão do método jurídico.
Dentre as principais teorias da argumentação jurídica, introduzidas pelo pós-positivismo e que consubstanciam os novos métodos que visam a racionalização do processo de interpretação e de aplicação do Direito, destacam-se a nova retórica de Chaim Perelman, a lógica-informal de Toulmin, a tópica de Theodor Viehweg e as teorias da argumentação de Robert Alexy e de Neil MacCormick.
Manuel Atienza condensa estas principais teorias da argumentação jurídica em duas fases distintas: “la de los precursores y la de la elaboración de la teoría estándar.“ (2013, p. 30). Os precursores teriam desenvolvido suas teses nos anos cinquenta do século passado, caracterizando as suas teses o argumento de que o raciocínio jurídico não pode se apresentar como um raciocínio dedutivo. Viehweg, como precursor, sustentava que a característica peculiar do raciocínio jurídico se encontraria na tradicional noção de tópica, ressaltando que a tópica não seria uma ars judicandi, uma técnica que caminharia das premissas até a conclusão, mas de uma ars inveniendi, voltada para a descoberta de premissas e centrada na noção de problema.
Por outro lado, os autores que integrariam a concepção nominada por Atienza de estandar, dentre eles Alexy e McCormick, o raciocínio jurídico não apareceria como contraposto ao raciocínio dedutivo propriamente. O que destacam esses autores é que para compreender o raciocínio jurídico em toda a sua complexidade seriam necessários outros recursos ademais do método dedutivo e da lógica em sentido estrito. (2013, p. 31)
Não se pretende, neste capítulo, desenvolver de forma exauriente e detalhada as teorias da argumentação jurídica, tarefa que não se compatibilizaria com os objetivos específicos do presente trabalho. O que se presente é apresentar um rápido panorama dos fundamentos basilares das principais correntes, à exceção da tópica, de Theodor Viehweg, que será tratada de forma mais detalhada no capítulo seguinte, uma vez que esta teoria se insere no ponto central deste escorço jurídico.
3.1 A teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy, MacCormick, Chaim Perelman e Toulmin
Dentre as diversas teorias da argumentação que surgiram nas últimas décadas, “as que têm maior interesse e talvez também as que foram mais discutidas e alcançaram maior difusão“ (Atienza, 2003) foram as elaboradas por Robert Alexy e por MacCormick.
MacCormick desenvolve uma teoria integradora da argumentação jurídica, tendo como base a crença de que a argumentação jurídica cumpre uma função de justificação que para ele seria a única capaz de possibilitar a persuasão. A justificação teria como esteio as normas jurídicas em vigor e os fatos estabelecidos, de sorte a indicar as razões que mostrem que a decisão final é a expressão da justiça. O convencimento do auditório - imprescindível para a legitimação da decisão - é buscado a partir de toda uma cadeia argumentativa, marcada pela coerência, passando pela apresentação e aceitação de premissas que conduzirão à aceitação, ao consenso sobre a decisão. Apenas os casos fáceis, para McCormick poderiam ser resolvidos de acordo com o tradicional método dedutivo, sendo certo que os hard cases para serem solucionados dependeriam do emprego da racionalidade, do senso de justiça, da humanidade, da compaixão.
Robert Alexy, a seu turno, tem como elemento de destaque de sua teoria da argumentação jurídica a tese do caso especial. Para Alexy, o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. Caso especial porque embora se refira a questões práticas cuja decisão passa por uma pretensão de correção, o discurso jurídico ocorre sob circunstâncias especiais, limitado que é pela lei, pelos conceitos jurídicos, pelas circunstâncias, pela necessidade de se seguir um procedimento legal, assim como limitações de tempo, de espaço, necessidade de concisão, etc. As decisões jurídicas devem ser fruto de uma fundamentação racional, com base no ordenamento jurídico que não será tido como existente se não estiver dotado de uma pretensão de correção. A lei injusta deve ser afastada pelo aplicador do Direito sempre que a injustiça pretender alcançar os seus limites extremos e o método lógico-dedutivo somente será possível quando se estiver diante dos casos fáceis. Os casos difíceis devem ser decididos com base no manejo adequado dos meios disponíveis, através do processo de argumentação jurídica. Diversamente dos positivistas, que defendem a tese da separação entre Direito e Moral, para Robert Alexy moral e Direito são conceitos vinculados. Afirma que a moral determina que o conceito de Direito seja definido de modo que contenha elementos morais. (Alexy, 2011).
Embora não gozem da mesma projeção que as teorias da argumentação anteriores, não se pode deixar de fazer menção às teorias de Chaim Perelman e de Toulmin, dada a sua importância histórica e de seus inegáveis contributos para o procedimento argumentativo e para o desenvolvimento das modernas teorias de maior expressão.
Chaim Perelman, influenciado pro Cícero e Aristóteles, apresenta a nova retórica, que se baseia, em linhas gerais, na ideia de um auditório, de cuja perspectiva os destinatários do discurso são persuadidos ou convencidos, a partir de suas próprias convicções, livres de coação. A solução dos problemas do cotidiano, baseados em valores, é buscada na arte da discussão. O objeto da nova retórica é, desta forma, “o estudo das técnicas discursivas que visam provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses apresentadas a seu assentimento.” (Perelman, 2004, p. 141). Perelman adere à lógica, todavia, diferentemente da lógica matemática neopositivista, a lógica da argumentação seria uma lógica dos valores, do razoável, do preferível. Todo discurso argumentativo para Chaim Perelman possui um contexto e um auditório para o qual ele é direcionado. Perelman idealiza, assim, três espécies de auditório: o universal (toda a humanidade), o particular (o partícipe de um diálogo) e o próprio sujeito (processos de auto-conhecimento). Pode-se afirmar que os conceitos-chave a nova retórica de Chaim Perelman são o orador, o auditório e o discurso. O auditório, não obstante, não se trata de um conjunto de ouvintes, mas de um grupo de indivíduos a quem se busca persuadir. A preocupação de Perelman é maior com a adesão dos interlocutores do que com a verdade. É imprescindível, para argumentar, que o orador reflita sobre os argumentos que poderão influenciar um determinado auditório: argumentos quase lógicos, argumentos baseados na estrutura do real e argumentos que fundam a estrutura do real.
Com sua lógica-informal, Toulmin não pretende resgatar a tópica ou a retórica a exemplo de Viehweg e Chaim Perelman, respectivamente. Toulmin refuta por completo a aplicação da lógica formal dedutiva no campo da razão prática, haja vista que para ele a argumentação que a lógica utiliza só se prestaria para o campo da matemática. Toulmin, na verdade, pretende apresentar uma nova concepção da lógica. Apresenta um modelo de argumentação que se desenvolveria em várias etapas - na forma de procedimento - e a conclusão se o argumento, ao final, estaria adequado, ficaria na dependência do contexto histórico, social e disciplinar.
3.2 As principais contribuições das teorias da argumentação jurídica para a aplicação e interpretação do Direito
Ainda no limiar do século XX, a praxis jurídica, marcadamente positivista, orientava-se pela concepção de que o Direito, como toda e qualquer ciência, buscava a verdade das coisas. Ao jurista, como cientista do Direito, reservava-se o papel de encontrar no arcabouço de normas, princípios e conceitos jurídicos de um determinado ordenamento, com base na razão prática, o conhecimento das coisas, que pode ser traduzido como a busca da verdade que deveria ser cientificamente comprovada a partir do instrumental jurídico previamente colocado à sua disposição. Para a solução das mais diversas controvérsias, ao aplicador do Direito, ao responsável pela tomada de decisões, restava apenas a adoção de um procedimento, calcado na lógica-formal, a partir do emprego do método dedutivo, que consistia basicamente no fazer aplicar a norma jurídica previamente cunhada pelo Estado, ao caso concreto, de forma matemática. À norma (premissa maior), deveria subsumir-se o fato (premissa menor), de onde se extrairia friamente a decisão (conclusão), fruto do silogismo puro. Ao intérprete aplicador do Direito não caberia nenhum tipo de indagação sobre elementos morais, sobre se o resultado da decisão obtido a partir da lógica meramente formal seria justo ou injusto. Em outras palavras, a tarefa criadora do intérprete era de todo limitada, não havendo espaço para a criação, para a valoração, para a busca da decisão mais justa, restando afastada qualquer tipo de pretensão à correção. Em um ordenamento jurídico fechado, a solução para todos os casos deveria ser encontrada sem apelo a nenhum elemento extrajurídico, quer de ordem moral, filosófica ou social.
Com a mudança de paradigma pós-positivista, em especial a partir da introdução dos métodos propostos pelas mais diversas teorias da argumentação jurídica, deixa de existir um método jurídico específico para conhecer e efetivar o Direito e “passa a existir uma gama de métodos, fazendo emergir a noção de que a realização do direito não ocorre em modelos fechados, mas de forma plural e no embate de várias opiniões e pontos de vista, como no decorrer de um diálogo“ (Pontes, 2012). O sistema jurídico passa a ser visto como um sistema aberto de normas e princípios, sistema esse obviamente não dotado de completude, mas de natural incompletitude, haja vista a incapacidade lógica de se prever a solução para todos os problemas, de todas as mais intrincadas ordens. O juiz, por outro lado, deixa de ser um mero executor da vontade fria do legislador e adquire, notadamente nos casos difíceis, a missão de encontrar a melhor e a mais justa solução para o caso concreto, espelhando-se na norma e nos conceitos jurídicos, mas devendo e podendo valorá-los a partir de elementos morais na tarefa criadora do direito. (Pontes, 2002)
Nesse novo cenário, os princípios, como visto, adquirem papel especial, agora na qualidade de verdadeiras normas, de observância obrigatória, sob pena de consequências sancionatórias. As decisões devem ser fruto da criação e do manejo racional dos argumentos, devidamente fundamentadas. As decisões não mais simplesmente brotam da mecânica dedução silogística, mas têm como fonte uma árdua e complexa tarefa de análise de pontos de vista e argumentos, de ponderação de princípios, da análise valorativa. Nas palavras de Karl Larenz, citado por Robert Alexy, “ninguém mais pode afirmar seriamente que a aplicação das normas jurídicas não é senão uma subsunção lógica às premissas maiores abstratamente formuladas“.(Alexy, 2005)
3.3 Casos fáceis e casos difíceis
Os casos difíceis (hard cases) são aqueles que apresentam dificuldades na determinação da norma aplicável (interpretação) ou no suporte fático (prova dos fatos) ou, ainda, na dedução (qualificação). Os casos fáceis são aqueles em que a solução pode ser facilmente encontrada com base no raciocínio dedutivo de uma norma válida e aceita. (Lorenzetti, 2010)
Conforme muito bem observado por Luis Roberto Barroso, a proposta pós-positivista do neoconstitucionalismo, não pretende o rompimento radical com os preceitos do positivismo jurídico. “O debate acerca de sua caracterização situa-se na confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito [...] mas por vezes singularmente complementares.“ (Barroso, 2013, p. 269)
De igual sorte, as teorias da argumentação jurídica procuram apresentar métodos alternativos para a interpretação e aplicação do Direito, em contraposição aos clássicos métodos e instrumentais positivistas, apenas para aquelas situações, mais complexas, em que a resposta não pode ser extraída das regras predispostas no ordenamento jurídico a partir da lógica-formal dedutiva. Ou seja, o foco principal destas teorias são os casos difíceis. Situações haverá em que se fará necessária a busca por soluções fora do âmbito do ordenamento jurídico e que a aplicação das regras hierarquicamente estatuídas deverá ceder espaço para a aplicação dos princípios, no âmbito da ponderação. E, nesses casos, a vagueza semântica dos princípios acarreta como consequência algumas dificuldades de ordem prática, dentre elas a possibilidade da existência de várias respostas corretas para a mesma hipótese fática.
Por outro lado, em muitos casos, talvez a maioria deles, a solução poderá ser encontrada no ordenamento jurídico, de forma simples, clara e segura. Nesses casos, a melhor saída é mesmo a simples aplicação da regra jurídica, a partir da dedução lógica do sistema, tal qual preconizado pelo positivismo jurídico.
O acerto desse raciocínio resulta evidenciado com muita precisão do esquema de raciocínio jurídico proposto por Ricardo Luis Lorenzetti (2010), que afirma que a dedução é a regra (casos fáceis) e a argumentação é a exceção (casos difíceis).
O entendimento atualmente prevalente é o de que existem tanto casos fáceis, como casos difíceis. “Prova disso é que as teorias atuais partem da demonstração da insuficiência“ (Lorenzetti, 2010, p. 158) do entendimento segundo o qual todos os casos seriam fáceis e solucionáveis pela lógica-formal dedutiva.
Os casos fáceis, segundo Lorenzetti, são resolvidos “mediante a dedução das regras; os casos difíceis devem utilizar princípios para informar a discricionariedade; os paradigmas constituem guias políticos que requerem a compatibilização dos modelos no marco da ordem social. “ (Lorenzetti, 2010, p. 159)
Robert Alexy, ao desenvolver a sua teoria da argumentação jurídica, também prega a necessidade de se diferenciar os casos fáceis dos casos difíceis, sendo certo que os primeiros continuariam a ser solucionados pela via tradicional da simples dedução dos cânones jurídicos previamente codificados e dispostos hierarquicamente e os demais pelos modernos preceitos das teorias argumentativas. (Alexy, 2005, p. 25).
4. TÓPICA
4.1 A tópica – conceito e aspectos gerais
A tópica trata-se, em linhas gerais, “de uma técnica do pensamento que está orientada para o problema. É um método de interpretação que pretende proporcionar orientações e recomendações sobre o modo como se deve comportar numa determinada situação caso não se queira restar sem esperança“ diante de um problema. Constitui, pois, “a técnica de pensar problematicamente“. (Viehweg, 2008, p. 33/34)
Atienza (2003, p. 49) define a tópica como uma parte da retórica que se caracteriza por três elementos ligados entre si:
[...] por um lado a tópica é, do ponto de vista de seu objeto, uma técnica do pensamento problemático; por outro lado, do ponto de vista do instrumento com que opera, o que se torna central é a noção de topos ou lugar-comum; finalmente, do ponto de vista do tipo de atividade a tópica é uma busca e exame de premissas: o que a caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas premissas, e não nas conclusões.
Problema aqui deve ser compreendido como sinônimo de hard case, de aporia, caso de difícil solução, para o qual inicialmente não é encontrada uma resposta satisfatória dentro das regras predispostas no ordenamento jurídico, pelos meios interpretativos convencionais. A primeira leitura do caso e seu confronto com as regras predispostas no ordenamento jurídico causa, na verdade, perplexidade.
Alexy (2005, p. 36/38), citando G. Otte, aduz que a tópica pode ter três sentidos: uma técnica de busca de premissas, uma teoria sobre a natureza das premissas e uma teoria do uso dessas premissas na fundamentação jurídica.
Como técnica de busca de premissas, a tópica pressupõe a busca de todos os pontos de vista que se possam levar em conta. Aqui podem ser de grande ajuda os catálogos de topoi. Struck reuniu, talvez com finalidade crítica, um catálogo de sessenta e quatro topoi. Nele se encontram elementos tão heterogêneos como lex posteriori derrogat legi priori e o inaceitável não pode ser exigido. [...] A concepção da tópica como uma teoria sobre a natureza das premissas é mais interessante. Quem argumenta topicamente não parte, por um lado, de enunciados demonstrados como verdadeiros, tampouco [...] arbitrariamente estabelecidos, senão de [...] enunciados verossímeis, plausíveis, geralmente aceitos ou prováveis. [...] Finalmente, a teoria esboçada pela tópica sobre o uso de premissas na fundamentação dos juízos singulares mostra-se problemática. A regra aqui vigente de considerar todos os pontos de vista não diz nada sobre qual deve prevalecer.
Canotilho classifica a tópica entre os métodos de interpretação da Constituição, como uma arte da invenção, uma técnica do pensar problemático. Para o constitucionalista português, a tópica nada mais é do que um método tópico problemático de interpretação da constituição e que teria como premissas o caráter prático da interpretação, o caráter aberto, fragmentário ou indeterminado das normas constitucionais e a preferência pela discussão do problema em virtude da abertura das normas constitucionais (Canotilho, 2000, p. 1.175). A interpretação da Constituição, para Canotilho, por meio da tópica “reconduzir-se-ia, assim, a um problema aberto de argumentação entre os vários participantes (pluralismo de intérpretes) através da qual se tenta adaptar ou adequar a norma constitucional ao problema concreto“.(Canotilho, 2000, p. 1.175)
Os aplicadores-interpretadores servem-se de vários tópoi ou pontos de vista, sujeitos à prova das opiniões pró ou contra, a fim de descortinar, dentro das várias possibilidades derivadas da polissemia de sentido do texto constitucional, a interpretação mais conveniente para o problema. A tópica seria, assim, uma arte de invenção (inventio) e, como tal, técnica do pensar problemático. Os vários tópicos teriam como função: (i) servir de auxiliar de orientação para o intérprete; (ii) construir um guia de discussão dos problemas; (iii) permitir a decisão do problema jurídico em discussão.
Tem sido muito comum, como observa Böckenförde, o recurso ao processo tópico, por diversos ordenamentos jurídicos, no atual estágio do desenvolvimento do constitucionalismo (1993, p. 20).
Mas o recurso ao método tópico, todavia, não necessariamente vem sendo invocado no estrito sentido em que teorizou Viehweg, com a produção de um catálogo de enunciados diretivos, previamente elaborado e a busca de um consenso a partir de um debate sobre os diversos pontos de vista promovido no âmbito de um processo dialético em sua acepção mais pura. A aplicação da Tópica, mesmo em razão das lacunas apontadas pelos críticos na teoria preconizada por Theodor Viehweg, tem se dado muito mais de forma acrítica, com amplas variações a depender da sistematização de cada ordenamento em que é invocada, a começar pela categoria de enunciados, aforismos, princípios e regras que são elevados, em cada ordenamento, à categoria de topoi. O que não afasta, todavia, a necessidade de se estudar, ainda que perfunctoriamente, a tópica tal qual proposta pelo jurista e filósofo alemão.
4.2 A tópica no pensamento de Theodor Viehweg
O jurista alemão Theodor Viehweg, considerado por muitos como o pai da tópica moderna, apresentou a sua obra fundadora no início dos anos 50 do século XX, mais precisamente no ano de 1953, como tese de livre-docência na Universidade de Munique, sob o título Tópica e Jurisprudência. Viehweg partiu das concepções de Gian Battista Vico (alusão de Vico), que no primeiro decêndio do século XX escreveu uma dissertação por meio da qual contrapunha o método então atual do pensamento e aplicação do Direito - o método crítico, calcado no cartesianismo, que se baseava num primum verum, em pontos de vista que constituiriam a verdade - ao método antigo, que tinha como base a retórica e como seu pano de fundo, a tópica, esta que partia de pontos de vista que não constituiriam necessariamente uma verdade absoluta, indiscutível, mas juízos de verossimilhança obtidos a partir do consenso.
Viehweg, inspirado na proposta de Vico, propõe uma moderna teoria da argumentação jurídica, que como as demais, busca romper com o radicalismo da lógica-formal positivista. A tópica tem como um de seus pilares a técnica do pensar por problemas, arte que teve seu desenvolvimento, na verdade, iniciado ainda com Aristóteles, e constituiria uma das seis obras aristotélicas que sucessivamente foram reunidas no Organon (Viehweg, 2008, p. 21). Aristóteles, que foi quem emprestou essa designação (tópica) a esta forma de ars inveniendi, propôs-se à tarefa de encontrar um método com base no qual fosse possível estabelecer conclusões relativamente a todos os problemas apresentados a partir de proposições opináveis. Partindo do problema proposto, a solução deveria ser encontrada em um catálogo de tópicos, de premissas que se traduziriam, grosso modo, em opiniões respeitadas, acreditadas e verossímeis, das quais se pudesse presumir aceitação (Viehweg, 2008, p. 24). Cícero, cerca de 300 anos depois, também escreveu a sua tópica, baseada na obra de Aristóteles. A obra de Cícero, segundo o próprio Viehweg, teria tido maior importância histórica (Viehweg, 2008, p. 28) e sua proposta era a de elaborar um catálogo completo de topoi, diversamente de Aristóteles que propunha uma ordenação teórica dos topoi.
A tópica, portanto, tal qual proposta por Viehweg, tem seu nascedouro na retórica aristotélica e se apresenta como uma alternativa ao já superado modelo positivista de se pensar e aplicar o Direito, especialmente diante dos casos difíceis. O método positivista, da lógica-formal, da aplicação do Direito limitada à busca de respostas em um ordenamento jurídico fechado e dotado de plenitude, pode muito bem servir à solução dos casos fáceis, mas não se mostra adequado ou suficiente para a solução dos problemas para os quais se apresentam inúmeras possibilidades interpretativas, com mais de uma resposta para o mesmo caso. Diante de uma hipótese fática para a qual se apresentam várias respostas, faz-se necessária a imposição de parâmetros a serem observados pela argumentação jurídica para que ela possa ser considerada válida.
A abertura da Constituição, o seu caráter fragmentário e a indeterminabilidade de suas normas exige, até com certa naturalidade, o manejo de outros recursos de interpretação muito além da lógica cartesiana e demanda a busca por recursos de interpretação diversos do modelo proposto por Savigny e complementado por Ihering, evidentemente insuficiente para a concretização dos direitos fundamentais preconizados nas mais diversas cartas políticas em todo o mundo.
A tópica pressupõe o primado do caso concreto, do problema, sobre a norma e o sistema, diferentemente do que acontece no sistema hermenêutico clássico. O que não significa, todavia, o rompimento com a normatização, com as regras e princípios jurídicos. Estes últimos, antes, formarão, ao lado de tantos outros, um catálogo de topoi, de premissas, de lugares comuns, de enunciados-guia. O caso concreto será, então, amplamente debatido pelos diversos participantes do auditório erguido sob um processo dialógico, discursivo, à luz daquelas premissas (jurisprudência, ciência jurídica, princípios e regras legais e constitucionais, princípios gerais de direito, todos os demais meios de interpretação). A solução mais justa para o caso concreto será extraída do consenso obtido nesta única instância de controle (a discussão) que indicará qual ou quais os pontos de vista deverão preponderar, decorrendo, a validade do Direito e a legitimidade da decisão, desse acordo. Os lugares-comuns, assim, é que fornecerão os elementos para a argumentação jurídica.
Não há, todavia, um conceito claro e objetivo de topos, tampouco foram estabelecidos por Viehweg quais os critérios orientariam a seleção dos topoi. De igual forma, não há um sistema de hierarquia entre os tópicos, nem mesmo qual ou quais deles em determinada circunstância deveriam prevalecer sobre os demais. O processo de argumentação jurídica é que irá conduzir essa prevalência que ocorrerá apenas no caso concreto, como a seleção das premissas também será fruto do processo dialógico argumentativo.
Em se deparando com uma solução teratológica, que cause perplexidade, o processo de discussão será retomado, até que a solução mais justa e razoável seja encontrada.
4.2.1 Tópica de primeiro grau e tópica de segundo grau
Tópica de primeiro grau, consoante preconiza Theodor Viehweg, é a tópica que não se ancora em um catálogo predisposto de premissas, de lugares comuns, de pontos de vista. Em outras palavras, a tópica de primeiro grau, diante de cada problema a ser analisado, parte na busca da criação dos tópicos que não necessariamente estarão explícitos, mas que serão ocasionalmente criados sempre que deles se necessitar para a solução do caso concreto. Não há formado um catálogo de topoi, mas o apoio para o deslinde da questão é buscado ocasionalmente em premissas que se afigurem as mais adequadas.
A tópica de segundo grau, ao contrário, é aquela que procura a premissa adequada em um catálogo de topoi explícito, previamente construído. Ou seja, quando da solução do caso concreto, o melhor sistema é procurado em um repertório pronto de pontos de vista disponíveis.
Naturalmente, se num problema há conflito em alguma parte, pode-se proceder, simplesmente, a se escolher livremente de modo tal a se aferir por meio de tentativas de pontos de vista mais ou menos ocasionais. Deste modo, busca-se as premissas que sejam adequadas e profícuas no mérito, que permitam levar a consequências idôneas e que apresentem alguma coisa esclarecedora. A observação evidencia que na vida diária quase sempre assim se procede. Também nesses casos uma análise ulterior, mais precisa, conduz resultar em relativa orientação determinada por pontos de vista diretivos. Entretanto, eles não são explícitos. Em síntese, a esse procedimento se dá o nome de tópica de primeiro grau. A sua incerteza é evidente e se torna compreensível que se tenha de buscar um apoio, que de uma forma mais simples se tem num repertório de pontos de vista já disponíveis. Desta forma vêm a ser formados os catálogos de topoi, e um procedimento que se serve de tais catálogos, e denomina-se tópica de segundo grau. (Viehweg, 2008, p. 37)
Como Viehweg não elaborou um catálogo de lugares-comuns, tampouco forneceu, em sua teoria, elementos que possibilitassem, de forma objetiva, esta elaboração, nesse ponto, como se verá, a sua teoria é bastante criticada por vários e importantes teóricos do Direito. O que não impede, já se adiante, o recurso ao processo tópico, cabendo ao intérprete, em cada realidade dada, encontrar estas premissas no foro discursivo que se constituir como instância de controle e busca da racionalidade.
4.2.2 Das críticas à tópica de Viehweg
Os principais críticos à proposta formulada por Theodor Viehweg, de resgate da retórica por meio da tópica como alternativa ao modelo positivista baseado na lógica-formal e aos métodos clássicos savignyanos, apontam como pontos negativos principais, a imprecisão de seus conceitos, a incompletude da teoria, em especial porque Viehweg não se dispôs a elaborar o catálogo de topoi por ele tido como essencial à concretização de sua teoria, a possibilidade de esse tipo de interpretação poder conduzir a um casuísmo sem limites e, ainda, o fato de que a interpretação tal qual sugerida pela tópica partiria do problema em direção à norma, quando, na verdade, como uma atividade normativamente vinculada, a interpretação jurídica não admitiria o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade do problema. (Canotilho, 2000, p. 1.175).
Ademais, a tópica, segundo os críticos, iria de encontro à noção de sistema, o que a tornaria inviável como método de interpretação da Constituição, notadamente porque, em matéria de hermenêutica constitucional, a ideia de sistema seria um referencial obrigatório. Canaris, defensor da concepção sistêmica do Direito, sustenta que a técnica do pensamento problemático não teria acrescentado muito à ciência jurídica, já que todo o pensamento científico é em geral pensamento problemático - pois um problema nada mais é do que uma questão cuja resposta não é, de antemão, clara. Para Canaris o uso da tópica seria impraticável na ciência jurídica tendo em vista o fato de ser atrelada à retórica e as premissas hão de ser determinadas para os juristas através do Direito Objetivo, em especial através da lei. (MACHADO, p. 2).
Para muitos críticos, assim, “a concretização do texto constitucional a partir dos topói merece sérias reticências.“ (Canotilho, 2000, p. 1.175)
Segundo Manuel Atienza, “praticamente todas as noções básicas da tópica são extremamente imprecisas e, inclusive, equívocas. Para o autor, por tópica, na obra de Viehweg, poder-se-ia entender três coisas diversas. Uma técnica de busca de premissas, por ul lado. Uma teoria sobre a natureza das premissas, por outro. E, ainda, uma teoria sobre o uso das premissas, além do que o conceito de problema seria excessivamente vago. Não bastasse, para o autor, o conceito de topos foi historicamente equívoco e seria usado em vários sentidos, dificultando sobremodo a interpretação. (Atienza, 2003, p. 53)
Prossegue Atienza (2003, p. 55) prelecionando que
A tópica permite explicar [...] certos aspectos do raciocínio jurídico que passam despercebidos quando abordamos esse campo por uma vertente exclusivamente lógica. Basicamente se poderia dizer que ela permite ver que não há apenas problemas de justificação interna, o que, por certo, não deve levar tampouco a pensar que a lógica formal não tenha nenhum papel na justificação externa. Mas obviamente a tópica por si só não pode dar uma explicação satisfatória sobre a argumentação jurídica. A tópica não permite ver o papel importante que a lei [...], a dogmática e o precedente desempenham no raciocínio jurídico; ela fica na estrutura superficial dos argumentos padrões e não analisa a sua estrutura profunda, permanecendo num nível de grande generalidade que está distante do nível da aplicação como tal do Direito [...]. Ela se limita a sugerir um inventário de tópicos ou de premissas utilizáveis na argumentação, mas não fornece critérios para estabelecer uma hierarquia entre eles.
Malgrado as inúmeras críticas, muitas delas inegavelmente procedentes, não se pode negar que a tópica, tal qual proposta por Viehweg, é uma teria da argumentação jurídica. A começar pelo fato de que suas balizas se identificam com a maioria das características apresentadas por um de seus críticos mais tenazes, Manuel Atienza, como aspectos fundamentais de uma teoria que compreende o direito sob o enfoque argumentativo.
Com efeito, a tópica trata de justificar racionalmente as decisões, enfatizando, portanto, o raciocínio jurídico, como característica essencial de uma sociedade democrática; rompe com ou possibilita o enfraquecimento das fronteiras entre Direito e Moral; busca integrar as diversas esferas da razão prática; tem em mente o fato de que a atividade do jurista não está guiada exclusivamente pelo êxito, mas pela ideia de correção, pela pretensão de Justiça; parte da ideia de que a jurisdição não pode ser vista em termos simplesmente legalistas, de sujeição à lei, pois a lei deve ser interpretada de acordo com os princípios constitucionais; entende a validade não em termos meramente formais mas, também, e sobretudo, no sentido material de que para ser válida uma lei deve respeitar a Constituição, seus princípios e direitos nela estabelecidos; a importância da interpretação é vista mais que como um mero resultado fruto de um silogismo, mas como um processo racional e formador do Direito. (Atienza, 2012, p. 95).
No mínimo, assim, a tópica deve ser reconhecida como uma valorosa precursora das teorias da argumentação que surgiram na contemporaneidade. Como uma teoria ideal, ademais, deve ser reiteradamente estudada a fim de que seus conceitos basilares possam ser aplicados ainda que apenas em parte, a depender das particularidades de cada ordenamento jurídico, do momento histórico e das peculiaridades que marcam as mais distintas realidades sociais que pretendam se valer de seus critérios da busca da solução mais justa e adequada para a concretização dos preceitos constitucionais, em especial do catálogo de direitos fundamentais contemplado nas mais distintas constituições.
Mesmo aqueles que não reconhecem na tópica uma teoria da argumentação jurídica pronta e terminada, livre de contradições e da vagueza de seus conceitos principais, não podem negar a importância do método proposto, consistente na procura pela melhor premissa, na técnica de pensar a partir do problema, na escolha do melhor ponto de vista para sustentar a pretensão de correção em meio a uma série de opções - ainda que não necessariamente escritas em um catálogo previamente elaborado - fruto do raciocínio jurídico, do debate, do diálogo envolvendo uma pluralidade de sujeitos.
Paulo Bonavides, nesse sentido, reconhecendo a debilidade dos métodos hermenêuticos tradicionais e sua evidente insuficiência para a concretização dos Direitos Fundamentais diante da abertura e da intensa carga valorativa apresentada pelas Constituições hodiernas, percebe a tópica como uma teoria apta a atender as falhas deixadas pela hermenêutica constitucional clássica. (1991).
O jurista alemão Ernst-Wolfgang Böckenförde (1993, p. 20), na mesma esteira do pensamento de Paulo Bonavides, primeiro reconhece que o método tópico orientado ao problema cada vez mais é praticado na jurisdição constitucional, para, em seguida, afirmar que o recurso à tópica se torna cada vez mais natural à luz do caráter fragmentário, frequentemente indeterminado da Constituição, que necessita do pensamento problemático para remediar a insuficiência das regras clássicas de interpretação e evitar o non liquet, atualmente impossível diante da jurisdição constitucional. Nas palavras de Böckenförde (1993, p. 20):
La idoneidad de la Tópica y del pensamiento problematico precisamente para la interpretación de la Constituición, se ha basado también, en la apertura estructural de la Constituición, en la brevedad y perdurabilidade de sus textos, la amplitud e intederminación de sus elementos fundamentales. Por eso, incluso la ha calificado SCHEUNER como la especifica hermeneutica jurídico-constitucional.
O jurista alemão Peter Haberle, ao apresentar a sua compreensão da Constituição como uma carta aberta que deve ser interpretada não apenas pelos órgãos estatais, mas por uma sociedade aberta de intérpretes, que envolve todas as instâncias políticas, todos os órgãos públicos, todos os cidadãos e grupos, nada mais faz do que aderir integralmente ao pensamento tópico-problemático. Para Haberle, quem vive e atualiza a Constituição também a interpreta. Todas as forças realmente relevantes que atuam sobre a Constituição, têm também relevância teórica, são partícipes legitimados a interpretar a Constituição. E se a estrutura da Constituição é reconhecidamente aberta, a esta estrutura pertencem a indeterminação e a mutabilidade (Böckenförde, 1993, p. 26). Diante desse cenário, desta abertura, mutabilidade e indeterminabilidade, a Constituição somente pode ser concretizada a partir do consenso, de uma interpretação plural, típica do método tópico-problemático.
O reconhecimento da tópica como genuíno método de interpretação e, mais do que isso, como verdadeira teoria da argumentação jurídica e a irradiação de seus princípios pelos mais diversos ordenamentos jurídicos é, portanto, uma realidade que não se pode negar.
4.3 A tópica e a interpretação e aplicação da Constituição no sistema jurídico brasileiro
Sem embargo dos abalizados e entendimentos em sentido contrário, parece evidente que a incompatibilidade da tópica não é necessariamente com a noção de sistema, mas, sim, com a compreensão de um sistema jurídico fechado, completo, axiomático e lógico-dedutivo.
Em um sistema jurídico tal qual preconizado pelo positivismo normativista radical, a solução para os conflitos devem ser encontradas ali mesmo no ordenamento jurídico, partindo-se sempre do sistema em direção ao problema e não o contrário. A tarefa do intérprete consiste tão somente em desvendar o objeto “direito“ e aplicá-lo a um caso concreto, valendo-se, para tanto, da dedução lógico-matemática e do processo subsuntivo. Segundo Viehweg, em um sistema dedutivo, toda proposição usada como premissa será reconduzida a outra e, finalmente, a uma proposição central, que, ao contrário, é derivada dela ou que é ela própria estabelecida como proposição central. (Viehweg, 2008).
Para o pensamento tópico-problemático, o que se enfatiza não é o sistema, mas o problema e, a partir deste, será escolhido o sistema que melhor oriente a busca da solução mais justa e adequada. Não há, outrossim, nenhuma ordem lógico-formal entre as premissas, tampouco critérios rígidos de escolha dos pontos de vista objeto da discussão no âmbito do processo dialógico.
Notadamente como critério orientador da prática jurídica, a tópica se apresenta, no constitucionalismo atual, como meio adequado para a interpretação das normas constitucionais. Segundo Paulo Bonavides, “a constituição representa, pois, o campo ideal de intervenção ou aplicação do método tópico.“ (1991). Em razão da natureza da Constituição, compreendida em seu aspecto material e não meramente formal, composta por um conjunto de normas abertas, de caráter fragmentário, necessariamente a tarefa de interpretá-la deve ir além dos cânones e métodos hermenêuticos clássicos.
A Constituição integra um sistema, todavia, um sistema aberto de regras e de princípios, e não um sistema fechado, completo, axiomático-dedutivo. Essa nova compreensão de sistema no qual se vê inserida a Constituição é, portanto, terreno fértil para a tópica, como método concretizador dos direitos e garantias fundamentais.
Adotar o método tópico orientado ao problema, portanto, não corresponde a abrir mão da normatização, tampouco de um sistema jurídico destinado a assegurar positiva e previamente os direitos e garantias fundamentais. O intérprete continuará a buscar a solução para a imensa maioria dos casos nas regras e princípios sistematizados. Nos casos fáceis, o método lógico-formal poderá ser empregado sem nenhuma restrição, haja vista que a solução que puder ser extraída das regras é sempre a mais segura e adequada. Nos casos ineludíveis, quando se estiver diante de uma verdadeira aporia, de um hard case, em que a solução não estiver contemplada em nenhuma regra do ordenamento jurídico, de sorte que possa ser simplesmente encontrada pelo intérprete a partir do silogismo ancorado nos critérios hermenêuticos savignyanos, o intérprete dará maior relevo ao problema e partirá dele em busca do melhor sistema de solução, deixando de enfatizar o sistema, sem, contudo, abandonar arbitrariamente o conjunto de regras e princípios integrantes do ordenamento jurídico. As normas, in casu, não deixarão de ser consideradas, mas apenas erigidas à categoria de lugares-comuns, de pontos de vista, que ao lado de tantos outros orientarão a tarefa da “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.“ (HABERLE, 1997).
En sus decisiones fundamentales y normaciones singulares, la Constituición se convierte, con esto, en una combinación de puntos de vista relevantes para la solución de problemas, junto a otros, cuya relevancia en el caso concreto no viene ya determinada por si mesmos, sino por la correspondiente precompreensión consensuada. Esta compreensión ya no es sólo el cuestionamento o la hipótesis com la que se empreende la interpretación constitucional, antes bien, tiene efecto normativo como tal y desde si mesma. (Böckenförde,1996, p. 23)
A tópica, assim, tem tido papel de enorme destaque nos estudos jurídicos no Brasil e no mundo. Métodos de interpretação têm sido desenvolvidos por diversos teóricos, em especial, pelos juristas alemães, que incorporam princípios básicos da teoria de Viehweg. Proliferam, outrossim, artigos jurídicos e trabalhos acadêmicos que contemplam o tema, garantindo-lhe o lugar de destaque no universo do Direito como argumentação.
A partir da democratização da interpretação da Constituição e do reconhecimento de aspecto material, cada vez mais é possível vislumbrar nos mais diversos ordenamentos jurídicos a aplicação de métodos oriundos da tópica quando da concretização das regras e princípios constitucionais. Em menor ou maior grau, destaste, é forçoso concluir que a tópica de Viehweg tem se apresentado como alternativa viável de interpretação do Direito Constitucional, frente a já mencionada insuficiência dos métodos tradicionais.
No sistema brasileiro não poderia ser diferente. A despeito das críticas e dos abalizados entendimentos em sentido contrário, a tópica, tal qual preconizada por Viehweg ou simplesmente como uma técnica de busca de premissas, ou como uma teoria sobre a natureza das premissas, ou, ainda, na forma de uma teoria do uso das premissas na fundamentação jurídica, é perfeitamente compatível com o ordenamento jurídico brasileiro e pode mesmo ser aplicada na concretização da Constituição Federal de 1988, notadamente na efetivação dos direitos e garantias fundamentais nela preconizados.
É claro que críticas como aquelas formuladas por Robert Alexy e Manuel Atienza acerca principalmente da estrutura superficial e da ausência do estabelecimento de hierarquia dos argumentos standard (os topói) e da suposta falta de importância dada pela tópica de Viehweg à lei, à dogmática e ao precedente judicial, não podem ser ignoradas.
Mas é preciso ter em mente que a par de suas imprecisões terminológicas e das deficiências e lacunas da tópica tal como fora até o momento desenvolvida - debilidades, que, aliás, em menor ou maior grau, podem ser verificadas em todas as grandes teorias - não se pode perder de vista que a tópica se trata de uma teoria ideal de aplicação e interpretação do Direito, como solução para a insuficiência dos parâmetros fornecidos pelo positivismo jurídico para a solução dos casos difíceis. E como uma teoria ideal, nada impede que seja ela transposta e aplicada ao Direito brasileiro ainda que apenas em parte, quanto àqueles aspectos que se compatibilizam com a realidade e com as possibilidades jurídicas e sociais de nosso país.
Prova maior disso é que o Supremo Tribunal Federal, conquanto não o reconheça explicitamente e o faça muitas vezes de forma acrítica, vem adotando a tópica, sistematicamente, quando da resolução dos casos complexos (hard cases).
De fato, antes de proferir a sua decisão final em muitos dos casos de alta indagação julgados ou em julgamento nos últimos anos - união homoafetiva, aborto anencefálico, pesquisas com células tronco embrionárias - o Pretório Excelso promoveu a análise pública do problema e conclamou os mais diversos segmentos sociais a apresentarem os seus pontos de vista sobre os intricados temas.
Resulta claro que ao promover as audiências públicas, colher os mais diversos pareceres técnicos e jurídicos sobre o caso a ser julgado, ao admitir na forma verbal ou escrita argumentos dos mais distintos segmentos sociais, como associações civis, fundações, organizações não governamentais, médicos, juristas, servidores públicos, pessoas comuns do povo, o Supremo Tribunal Federal - STF está se valendo, em menor ou maior grau, dos pressupostos teóricos extraídos da tópica de Theodor Viehweg.
A Corte Suprema brasileira, com efeito, tem sistematicamente organizado auditórios com diversos partícipes - cidadãos comuns, servidores públicos, órgãos públicos, organismos políticos - e proposto discussão em busca de um consenso sobre a solução mais justa e adequada para determinados casos de difícil solução, para os quais não é possível encontrar, no ordenamento, pelos meios clássicos de interpretação e de subsunção, a regra a ser aplicada. Nesta instância de controle, a sociedade aberta dos intérpretes se orienta a partir de pontos de vista que ainda que não se apresentam formalmente e previamente reunidos em um catálogo de topói, cuidam-se de premissas fruto de longos debates e de pré-compreensões e largamente utilizadas já com caráter de norma em inúmeros outros precedentes, a saber, princípios de interpretação da Constituição, princípios gerais de direito, normas constitucionais, regras infraconstitucionais, precedentes jurisprudenciais e doutrinários, que se juntam a tantos outros.
O STF-Supremo Tribunal Federal brasileiro, de fato, inaugurou, ainda nesta década, a realização de audiências públicas que, condicionadas à admissibilidade da ação, destinam-se ao debate e à colheita de argumentos dos mais diversos segmentos sociais, sobre casos polêmicos antes de sua submissão ao plenário de julgamento.
A ADIN-Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, que questionava a possibilidade da realização de pesquisas com células-tronco embrionárias, conquanto ajuizada em data posterior à discussão ocorrida no âmbito da ADPF-Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (aborto anencefálico), inaugurou o procedimento de audiências públicas em casos difíceis perante o STF. Mas a primeira ação ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal em que houve decisão formal de determinação da realização de audiência pública (embora a audiência em si tenha sido, por questões acidentais, realizada após a audiência pública realizada no bojo da ADIN 3.510) para a promoção do debate acerca de um caso difícil, foi mesmo a ADPF 54. Depois dessas primeiras audiências públicas, parece que o procedimento foi incluído de forma definitiva nos julgamentos de casos polêmicos perante o Pretório Excelso, de que são exemplos os já casos citados e tantos outros (como o caso das uniões homoafetivas, a possibilidade de se conferir poderes investigatórios ao Ministério Público em matéria criminal etc).
A prática decorre da autorização legal contida no § 1°, do art. 6°, da Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999, que diz textualmente:
Art. 6º Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias.
§ 1º Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
§ 2º Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo
No âmbito da ADPF 54, vários representantes da sociedade civil pleitearam o ingresso na ação como amicus curie. Embora indeferida esta participação, os interessados foram, depois, convidados e autorizados a participar do amplo debate promovido na forma de audiência pública. Na audiência, o caso problema foi apresentado aos participantes, qual seja, a eventual inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, que condicionava a interrupção terapêutica do parto, após constatada a anencefalia do feto, salvo autorização judicial expressa em sentido contrário.
Exposto o problema, durante quatro dias a sociedade, representada por cerca de 22 entidades e instituições, debateu amplamente o problema proposto, sob os seus mais diversos enfoques: legal, jurídico, científico, religioso, consequencialista/econômico, etc. Os mais distintos segmentos sociais foram separados em bloco, sendo possível identificar os percentuais aproximados de 45,5% das instituições inscritas compondo o bloco comunitário, 31,8% das entidades integrando o bloco científico, 22,5% compondo o bloco religioso. Pelo que se pôde dessumir da audiência pública, malgrado a divisão em blocos previamente etiquetados, os grupos não se limitaram ao debate em sua área específica de conhecimento. Na audiência foram apresentados argumentos científicos, filosóficos, políticos, religiosos, éticos, jurídicos, legais dentre outros.
O procedimento adotado pelo STF no bojo da ADPF 54, nada mais é do que o procedimento proposto pela tópica de Theodor Viehweg: pensar o caso difícil a partir do problema e procurar o melhor sistema para a sua solução em um catálogo de premissas, pontos de vistas, lugares-comuns, construído e/ou discutido através de amplo debate, por um auditório plurissubjetivo. Mesmo sem a necessidade do consenso, esses pontos de vista foram apresentados não como primum verum, não como verdades absolutas, mas como entendimentos dotados de verossimilhança suficientes para orientar a concretização da Constituição Federal da forma mais justa e adequada. O STF, em outras palavras, buscava, com o procedimento, a legitimação da decisão, a partir da adoção clara da técnica consistente em pensar a partir do problema, orientada por um catálogo de topoi.
Com este proceder, o STF nada mais faz do que colocar em prática a arte de pensar a partir do problema, promovendo, a um só tempo, a busca incansável por premissas, premissas estas que não consubstanciam verdades absolutas, senão que opiniões dotadas de verossimilhança, obtidas a partir do debate plurissubjetivo. Em maior ou menor grau, assim, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado em seus julgamentos os pressupostos basilares do método tópico orientado ao problema, a exemplo de outras cortes constitucionais, como o Tribunal Federal Alemão.
5 CONCLUSÃO
A tópica, ou simplesmente o método tópico orientado ao problema, embora preconize o primado do caso concreto sobre a norma, não é incompatível com a noção de sistema aberto de normas e princípios constitucionais, senão com a ideia de um sistema jurídico fechado, lógico-dedutivo. Apresenta-se, dessa forma, a tópica resgatada por Theodor Viehweg da antiga retórica Aristotélica, como uma importante teoria da argumentação jurídica e como imprescindível instrumento de interpretação da Constituição.
Os pressupostos teóricos desenvolvidos por Theodor Vieweg, de fato, encontram terreno fértil no constitucionalismo moderno, em que os métodos hermenêuticos clássicos, propostos por Savigny, já não são suficientes para a solução das aporias, dos casos ineludíveis ligados à concretização dos direitos e garantias fundamentais, diante da abertura e indeterminação das normas constitucionais.
Esta constatação tem levado inúmeros teóricos do Direito no mundo todo, notadamente na Alemanha, a desenvolver novos paradigmas de interpretação das normas constitucionais permeados por pressupostos extraídos da tópica de Viehweg. Nessa mesma linha, as cortes Constitucionais de diversos Estados, de que são exemplo o Brasil e a Alemanha, têm recorrido sistematicamente à tópica como recurso interpretativo das normas constitucionais, como forma de garantir a solução de casos difíceis, envolvendo os direitos humanos positivados em suas Constituições e evitar o non liquet que já não é mais possível diante do constitucionalismo atual.
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