Responsabilidade civil no Direito de Família.

Elementos e limitações do dever de indenizar em casos de abandono afetivo paterno-filial

04/04/2017 às 11:40
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A Responsabilidade Civil por abandono afetivo paterno-filial. Elementos e limitações do dever de indenizar nos casos de abandono afetivo dos pais sobre seus filhos.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo traz à baila a discussão concernente à responsabilidade civil por abandono afetivo, permeada em estudos nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial. Destaca-se que o mencionado tema não está positivado em leis ou na Constituição Federal, mas as transformações sociais fizeram com que a jurisprudência contemporânea analisasse situações envolvendo o abandono afetivo dos pais perante seus filhos, aderindo ou não à tese da reparação civil nesses casos.

A instituição família vem sofrendo diversas modificações ao longo dos anos, e com essas constantes mudanças o afeto passou a ser considerado núcleo basilar das relações familiares. Através do elemento afetivo é que se constituem as famílias atuais, e não somente através do biológico, sendo, portanto, essencial para o desenvolvimento dos filhos.

A afetividade, princípio constitucional, é considerada o fundamento principal das relações familiares pós-modernas. Parte-se, portanto, para a discussão a respeito da possibilidade de reparação civil pela ausência de afeto no âmbito familiar, através da verificação de precedentes dos Tribunais brasileiros, com argumentos contra e a favor dessa possibilidade, a depender, evidentemente, dos casos concretos.

Desta forma, no primeiro capítulo demonstrar-se-á o fundamento das relações familiares hodiernas, qual seja, a afetividade. Nesse compasso, oportuno enfatizar a evolução histórica do instituto família, bem como a sua concepção contemporânea, evidenciando, assim, de que modo a afetividade tornou-se a base das relações familiares pós-modernas. Ademais, destaca-se os princípios constitucionais que envolvem a proteção familiar, e de forma mais restrita, os que têm relação com a proteção da criança e do adolescente abandonados afetivamente pelos genitores (ou por um deles), sendo, portanto, imprescindíveis para o estudo do Direito de Família.

No segundo capítulo, pretende-se examinar os aspectos da responsabilidade civil, trazendo à baila algumas considerações gerais acerca do referido instituto, tais como sua conceituação jurídica, as espécies e os elementos ou pressupostos gerais relacionados ao dever de indenizar.

Aborda-se, no último capítulo, a responsabilidade civil com foco no abandono afetivo dos pais ou responsáveis perante seus filhos, crianças ou adolescentes. Sob este aspecto, verifica-se de que modo pode ser feita a reparação civil nos casos desse tipo de abandono, enfatizando a questão do dano moral. Além disso, destacar-se-á controvérsias doutrinárias a respeito da reparação moral nas relações familiares, elencando decisões dos tribunais brasileiros nesse sentido.

O estudo acerca desse tema é de importância no que concerne à observância do afeto, bem como no reconhecimento da família, instrumento basilar para o desenvolvimento do homem, posto que o afeto dos pais é imprescindível para a formação moral, emocional, psicológica das crianças e adolescentes, seres em desenvolvimento.

É sabido, entretanto, que por diversos motivos, pais não se relacionam com seus filhos, deixando-os completamente desamparados. Nesse contexto, o mencionado assunto necessita de análise e debate pelos operadores do Direito e por parte da sociedade, sendo de suma importância no contexto familiar (e social) atual.

Verifica-se, desse modo, a caracterização do método dialético1, através do qual as contradições dão origem a novas contradições, acarretando na busca de soluções para o problema a ser enfrentado. Através deste método os fatos não podem ser considerados fora de um contexto social, político, econômico, etc, adequando-se assim à questão da possibilidade da reparação civil dos danos causados aos filhos por conta do abandono afetivo dos pais, que deve ser analisada sob cada caso. Utiliza-se, portanto, pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais sobre o respectivo tema para embasar o trabalho em comento.

2 A AFETIVIDADE COMO FUNDAMENTO-BASE DAS RELAÇÕES FAMILIARES

No presente capítulo destacar-se-á a importância da tutela da instituição família, através da observância da Constituição Federal de 1988, bem como do Código Civil de 2002. Ao analisar o conceito de família, deve-se ir além da sua caracterização pelo fenômeno biológico, buscando-se uma dimensão mais ampla, vislumbrando-se o afeto, a ética, a solidariedade, a preservação da dignidade entre os membros, dentre outros aspectos referenciais (CHAVES DE FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 5).

Busca-se, assim, a valorização da família como instrumento de proteção a pessoa humana, sob o aspecto civil-constitucional, de modo que esta instituição seja concebida como multifacetária, suscetível às influencias sociais, e tutelada pelos princípios constitucionais que envolvem o Direito de Família.

2.1 Evolução histórica do Instituto Família

Inicialmente, convém ressaltar que a família é considerada a mais importante das instituições civilistas, sendo tutelada pelo Direito de Família, e é através dela que surgem as primeiras formações e impressões do indivíduo. Porém, destaca-se que nem sempre esse instituto foi observado na perspectiva do afeto, e veio sofrendo, ao longo da história, alterações estruturais, partindo do momento em que compreendia as pessoas agrupadas em torno de um chefe comum (PEREIRA, 2004, p. 170).

No início do século XX, a família matrimonializada, tutelada pelo Código de 1916, era vista sob um enfoque discriminatório. Conforme Dias (2011, p. 28) “a dissolução do casamento era vetada, havia distinção entre seus membros, a discriminação às pessoas unidas sem os laços matrimoniais e aos filhos nascidos destas uniões, era positivada”.

Parte-se, portanto, da família cujo modelo era patriarcal, hierarquizado, e o Código Civil de 1916 tinha como influência a Revolução Francesa. Conforme Chaves de Farias (2011, p. 4), “naquela ambientação familiar, necessariamente matrimonializada, imperava a regra ‘até que a morte nos separe’, admitindo-se o sacrifício da felicidade pessoal dos membros da família em nome da manutenção do vínculo do casamento”.

Ademais, o modelo de família era embasado pelos laços patrimoniais, sendo impossível a dissolução do vínculo conjugal. Assim, as uniões familiares visavam à formação de patrimônio entre o casal, e a posterior transmissão aos herdeiros, nem sempre se verificando os laços afetivos.

Conforme Maria Berenice Dias os vínculos afetivos, em sociedades conservadoras, deviam ser chancelados pelo matrimônio para obterem aceitação social e reconhecimento jurídico. A família era, pois, uma entidade patrimonializada, cujo núcleo dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal. Mas a revolução industrial, principal causa do ingresso da mulher no mercado de trabalho (e sua consequente emancipação), fez com que o vínculo afetivo fosse mais prestigiado, observando-se, a partir daí, uma nova concepção da família, embasada no amor, no carinho, e afeto (2011, p. 28).

2.1.2 Concepção contemporânea de Família

Considerando o estabelecido no caput artigo 226 da Constituição Federal de 1988, a família é vista como base da sociedade, tendo proteção especial por parte do Estado, observando-se, ainda, os derradeiros parágrafos.

De acordo com Dias (2011, p. 46), “existe uma nova concepção de família, formada por laços afetivos de carinho e de amor”. Assim, a contemporaneidade não faz restrições às famílias, havendo ruptura do modelo essencialmente heteroparental e propiciando novos grupos familiares, observando-se, pois, a existência de famílias anaparentais, homoafetivas, pluriparentais, dentre outros modelos. Nesse sentido:

Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora (CHAVES DE FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 4).

Os supracitados autores concluem, portanto, que a família pós-moderna, em sua feição jurídica e sociológica tem como referenciais o afeto, a ética, a solidariedade recíproca entre os seus membros e a preservação da dignidade (2011, p. 5).

Conforme Alves (2010, p. 3), a família é o instituto no qual a pessoa encontra amparo, fonte da sua própria felicidade, e proporciona recompensas e punições, adquiridas as principais respostas aos obstáculos da vida. Assim, as influências do ambiente social para a formação da personalidade do homem são inúmeras, sendo a família deveras importante nesse aspecto influenciador.

Partindo desse pressuposto, convém salientar o conceito de família, estabelecido por Lôbo (2002, p. 96) como “[...] um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas.” Ademais, Fabíola Santos Albuquerque acentua:

A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado (ALBUQUERQUE, 2004, p. 162).

Nesse mesmo contexto, Villela acrescenta:

As relações de família, formais ou informais, indígenas ou exóticas, ontem como hoje, por muito complexas que se apresentem, nutrem-se, todas elas, de substancias triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomar: afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que de um modo ou de outro, possa ser reconduzido à arte e à virtude do viver em comum. A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência em dar e receber amor (apud TARTUCE, 2011, p. 32).

O modelo atual de família é baseado nos pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade familiar e do eudemonismo, ou seja, tem por base a felicidade e o afeto. O indivíduo é visto como sujeito imprescindível para a relação familiar, e não os bens que possui. Assim, Guazzelli pontua:

A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado (2004, p. 331).

Nessa perspectiva, as categorias legais atuais vislumbram o afeto, a interação entre os indivíduos que fazem parte de uma família, trazendo conceitos ampliados de família, como é o caso, por exemplo, da Lei Maria da Penha e da Nova Lei da Adoção.

Com base nessa nova visão da família, Lôbo afira que:

A família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida (2008, p. 36).

Vislumbra-se que esse conceito pós-moderno é contraposto ao da família antiga, pois engloba a existência de amor e carinho entre os integrantes das famílias, sendo imprescindível o vínculo afetivo entre os mesmos, e não mais a supremacia dos laços de sangue e o interesse econômico perante o afeto.

Portanto, é necessário ter-se uma visão plural do instituto família, de modo a abarcar os mais diversos tipos familiares, bastando que haja um elo de afetividade, independente do modo de formação da mesma.

2.2 Princípios constitucionais de proteção familiar

Levando em consideração que os princípios constitucionais são o fundamento material das normas de direito fundamental, necessário analisar a valia dos mesmos para a tutela do direito de família. A respeito de sua conceituação, Derani assevera:

Princípios são normas que dispõem a respeito de algo ser realizado o mais amplamente possível dentro das relativas possibilidades do direito e dos fatos. Princípios são, portanto, mandados de otimização com característica de poderem ser preenchidos em diferentes graus. A medida deste preenchimento depende não somente dos fatos como também das possibilidades abertas pelo direito (DERANI, 1997, p. 44).

Essa afirmação implica em dizer que os princípios são a base para o ordenamento jurídico e que as normas abertas são densificadas através de outras normas e atos, sendo direcionados à concretização conformadora e densificadora efetuada pelo intérprete (BELLO FILHO, 2006, p. 336).

Nesse panorama, é notório que o Direito de Família do ordenamento jurídico brasileiro passou por grandes mudanças estruturais e funcionais nos últimos anos. Tais alterações podem ser notadas através do balizamento dos princípios inerentes a esse ramo do direito civil, que são previstos constitucionalmente, em sua maioria.

O primeiro princípio a ser analisado é o da proteção da dignidade da pessoa humana, constante no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988. Vale ressaltar que tal princípio possui difícil conceituação, haja vista que é um “princípio máximo”, uma cláusula geral, com variantes de interpretações (TARTUCE, 2011, p. 985).

Destaca-se a construção conceitual estabelecida por Jorge Miranda e Rui de Medeiros:

A dignidade humana é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstrato. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível, insubsistente e irrepetível, e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege (MIRANDA, 1993, p. 162).

Valendo-se das palavras de Gustavo Tepedino, Gonçalves (2012, p. 22) acrescenta que a proteção da família como instituição dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, no que diz respeito ao desenvolvimento da personalidade dos filhos.

Desse modo, respeitar a dignidade da pessoa humana significa garantir o pleno desenvolvimento e a realização de todos os membros da família, sendo este princípio a base da comunidade familiar (DINIZ, 2011, p. 37).

Outro princípio que merece destaque é o do maior interesse da criança e do adolescente, constante no caput do artigo 227 da CF/88 e nos artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil.

O caput do artigo 227 estabelece os deveres da família, da sociedade e do Estado perante à criança, jovem e adolescente, tais como a garantia do direito à vida, saúde, educação, dignidade, liberdade, convivência familiar, dentre outros, sendo complementado pelos artigos 3º e 4º da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que assim definem:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Por seu turno, o Código Civil reconhece tal princípio ao regular a guarda (unilateral ou compartilhada) durante o poder familiar, ampliando, assim, o sistema de proteção anterior, visando atender ao melhor interesse da criança e do adolescente na fixação da guarda, para que haja uma convivência com ambos os genitores.

Assim, o interesse da criança se sobrepõe aos interesses dos pais, devendo-se buscar sempre o bem estar do menor, garantindo uma boa base familiar e moral.

O preâmbulo da Carta Magna e o seu artigo 5º já asseguram o tratamento e a proteção igualitária a todos os cidadãos, afirmando ainda no inciso I do mencionado artigo que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Acrescente-se, assim, o princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros, embasada no parágrafo 5º do artigo 226 da Carta Maior, e no artigo 1.511 do Código Civil, que assim dispõem:

Art. 226, CF - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

Parágrafo 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal, são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

Art. 1.511, CC - O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.

Conforme Tartuce, esse princípio diz respeito à paridade de direitos entre os cônjuges ou companheiros e entre os filhos, desaparecendo a hierarquia; a concepção patriarcal de família. Assim, há o reconhecimento legal da igualdade entre homens e mulheres no que diz respeito à sociedade conjugal ou convivencial formada pelo casamento ou união estável (2011, p. 989).

Vale enfatizar que o princípio da igualdade abarcou os vínculos de filiação, proibindo discriminações com relação aos filhos havidos ou não no casamento, ou por adoção, garantindo a estes os mesmos direitos, conforme depreende-se do artigo abaixo da Constituição Federal:

Art. 227. § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Percebe-se, pois, o afastamento da relação de subordinação da mulher perante o homem, havendo equiparação nos seus direitos e deveres no âmbito familiar. Há, portanto, uma divisão das obrigações dos cônjuges no tocante à tutela familiar, bem como uma igualdade perante os filhos, sejam eles de ambos os pais ou não, ou até mesmo adotados.

A respeito da supracitada igualdade, Silva apud Canezin, aduz:

Essa igualdade já se contém na norma geral da igualdade perante a Lei. Já está também contemplada em todas as normas constitucionais que vedam discriminações de sexo (arts. 3°, IV e r, XXX). Mas não é sem consequência que o Constituinte decidiu destacar, em um inciso específico (art. 5°, l), que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Era dispensável acrescentar a cláusula final, porque, ao estabelecer a norma, por si, já estava dito que seria "nos termos desta Constituição". Isso é de somenos importância. Importa mesmo é notar que é uma regra que resume décadas de lutas das mulheres contra discriminações. Mais relevante ainda é que não se trata aí de mera isonomia formal. Não é igualdade perante a lei, mas igualdade em direitos e obrigações. Significa que existem dois termos concretos de comparação: homens de um lado e mulheres de outro. Onde houver um homem e uma mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito de situações pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional (2006, p. 12).

Ressalta-se, por fim, o princípio da afetividade, considerado um dos principais fundamentos das relações familiares, decorrente da dignidade humana e da solidariedade (TARTUCE, 2011, p. 992).

Nesse mote, Lôbo aduz:

A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, [...] reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou mãe e seus filhos. A comunhão de afeto é incompatível com o modelo único, matrimonializado, que a experiência constitucional brasileira consagrou, de 1824 até 1988. A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas (2006).

Ainda nesse sentido, Villela (Apud Tartuce, 2011, p. 992) estabelece:

A paternidade em si  mesma  não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, de que possa resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico, como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. As  transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter  econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram  considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade. Na  adoção, pelo seu conteúdo eletivo, tem-se a prefigura da paternidade do futuro, que radica essencialmente na ideia de liberdade.

Em suma, o mencionado princípio reafirma a ideia de que o vínculo familiar relaciona-se a ao afeto, e não só ao vínculo biológico. Essa nova visão da família está firmada na afetividade e, conforme Lôbo, “enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida” (2008, p. 36).

3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A responsabilidade civil surge em decorrência do descumprimento de uma obrigação, seja pela desobediência de uma regra contratual ou pelo fato de determinada pessoa não observar um preceito normativo que regula a vida. Trata-se, respectivamente, da responsabilidade civil contratual ou negocial, e responsabilidade civil extracontratual. (TARTUCE, 2011, p. 393).

Cumpre mencionar que o Código de 1916 embasava a responsabilidade civil apenas no conceito de ato ilícito. Atualmente, o Código de 2002 baseia-se em dois conceitos: o de ato ilícito, constante em seu artigo 186, e o de abuso de direito, no artigo 187.

3.1 Conceituação jurídica

De acordo com renomados autores “a palavra ‘responsabilidade’ tem origem no verbo latino respondere, significando a obrigação a ser assumida por alguém pelas consequências jurídicas de sua atividade”. Ademais, possui a raiz latina de spondeo, que no Direito Romano vinculava o devedor nos contratos verbais, devendo este responder; se responsabilizar pela obrigação (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 45-46).

Nesse entendimento, os autores supracitados complementam o conceito acima, aduzindo que “a noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar)” (ob. cit., p. 53).

Contribuindo às explanações acima, Cavalieri Filho conceitua responsabilidade da seguinte forma:

Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa ideia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário (2007, p. 2).

Sendo assim, no âmbito do Direito, responsabilidade é uma obrigação decorrente de assumir consequências jurídicas de determinados fatos, e tais consequências podem variar de acordo com os interesses lesados, acarretando na reparação dos danos, bem como na punição pessoal do agente causador das lesões.

É sabido que a responsabilidade civil possui três funções primordiais, quais sejam, punir o ofensor, compensar a vítima pelo dano causado e desmotivar socialmente a conduta lesiva.

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Gagliano e Pamplona Filho esclarecem de forma detalhada cada uma dessas funções: na função compensatória do dano, o objetivo é o retorno das coisas ao status quo ante. Dessa forma, há uma reposição por completo do bem perdido, e quando isso não for possível, deve ser imposto o pagamento de um quantum indenizatório. No que se refere a punição do agente, pode ser considerada um objetivo secundário, gerado pela falta de cautela na prática de seus atos, visando que o mesmo não lesione novamente. Por fim, a desmotivação social da conduta, que possui cunho socioeducativo, demonstrando à sociedade que condutas semelhantes não são toleradas (ob.cit., p. 65-66).

No que tange à natureza jurídica da responsabilidade civil, a autora Maria Helena Diniz assim se posiciona:

A sanção é, nas palavras de Goffredo Telles Jr., uma medida legal que poderá vir a ser imposta por quem foi lesado pela violação da norma jurídica, a fim de fazer cumprir a norma violada, de fazer reparar o dano causado ou de infundir respeito à ordem jurídica. A sanção é a consequência jurídica que o não cumprimento de um dever produz em relação ao obrigado. A responsabilidade civil constitui uma sanção civil, por decorrer de infração de norma ao direito privado, cujo objetivo é o interesse particular, e, em sua natureza, é compensatória, por abranger indenização ou reparação de dano causado por ato ilícito, contratual ou extracontratual e por ato lícito. (DINIZ, 2011, p. 7-8).

Diante dessas colocações, note-se que a natureza jurídica da responsabilidade civil é sancionadora, ainda que a sua materialização se dê através da aplicação de pena, indenização ou compensação pecuniária (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 64).

3.2 Espécies de responsabilidade

Leciona Cavalieri Filho que o elemento núcleo da responsabilidade é uma conduta voluntária que viole um dever jurídico. Desse modo é possível verificar as diferentes espécies de responsabilidade, verificando-se qual o elemento subjetivo da conduta praticada e de onde provém esse dever jurídico (2007, p. 13).

Nesse toar, é de suma importância a análise do modo em que a responsabilidade se divide, ou seja, de suas espécies, que podem ser: a) Penal ou Civil; b) Contratual ou Extracontratual e c) Objetiva ou Subjetiva.

a) Penal ou Civil

É sabido que a ilicitude é a contrariedade entre a conduta e a norma jurídica, não sendo uma peculiariedade do Direito Penal, incidindo em diversos ramos do Direito. No caso do ilícito penal, o agente infringe uma norma penal, de Direito Público; no ilícito civil, a norma violada é de Direito Privado. Leva-se em consideração, portanto, “a norma jurídica que impõe o dever violado pelo agente” (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 13).

A respeito dessas espécies, Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 48) acentuam:

O agente que cometeu o ilícito tem a obrigação de reparar o dano patrimonial ou moral causado, buscando restaurar o status quo ante, obrigação esta que, se não for mais possível, é convertida no pagamento de uma indenização (na possibilidade de avaliação pecuniária do dano) ou de uma compensação (na hipótese de não se poder estimar patrimonialmente este dano), enquanto, pela responsabilidade penal ou criminal, deve o agente sofrer a aplicação de uma cominação legal, que pode ser privativa de liberdade (ex.: prisão), restritiva de direitos (ex.: perda da carta de habilitação de motorista) ou mesmo pecuniária (ex.: multa).

Pela suas naturezas, os direitos Civil e Penal conferem a distinção para o campo da responsabilidade, ou seja, o que diferencia os atos abarcados pela responsabilidade civil é a gravidade do ato, inerente ao Direito Penal. Vale destacar que essa separação entre os atos ilícitos diz respeito aos critérios de conveniência ou oportunidade, conforme os interesses da sociedade e do Estado (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 14).

Dessarte, devido a um critério legal, o legislador optou por alocar nos tipos penais as condutas mais graves; que geram maior turbação social (STOCO, 2007, p. 118), e os atos da responsabilidade civil estão de forma subsidiária em relação aos atos que ensejam responsabilização penal, uma vez que no contexto civilista a responsabilidade conduz os indivíduos a obrigações de cunho patrimonial e o fato prescinde de uma previsão em lei.

No que tange a responsabilidade civil, tema em análise, afirma-se que abarca interesses particulares e quem foi lesado não se contenta somente com a repressão social do ofensor, o que dá origem para uma das principais funções da responsabilidade civil, a natureza reparatória do instituto (PEREIRA apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 47).

Tomando por base a natureza da norma jurídica violada pelo agente, a responsabilidade civil divide-se em contratual e extracontratual (ou aquiliana). A responsabilidade é extracontratual se o prejuízo for decorrente da violação de um mandamento legal, ou seja, se ocorrer devido a uma atuação ilícita do agente. Lado outro, já havendo uma norma jurídica contratual vinculando as partes, e o dano decorre do descumprimento da obrigação fixada nesse contrato, a responsabilidade é contratual (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 60-61).

Conforme Cavalieri Filho:

(...) tanto na responsabilidade extracontratual como na contratual há a violação de um dever jurídico preexistente. A distinção está na sede desse dever. Haverá responsabilidade contratual quando o dever jurídico violado (inadimplemento ou ilícito contratual) estiver previsto no contrato. A norma convencional já define o comportamento dos contratantes e o dever específico a cuja absorvência ficam adstritos. O contrato estabelece um vínculo jurídico entre os contratantes, costuma-se também dizer que na responsabilidade contratual já há uma relação jurídica preexistente entre as partes (relação jurídica e não dever jurídico, preexistente, porque este sempre se faz presente em qualquer espécie de responsabilidade). Haverá, por seu turno, responsabilidade contratual se o dever jurídico não estiver previsto no contrato, mas sim na lei ou na ordem jurídico (2007, p. 15).

Assim, a responsabilidade é contratual quando há o descumprimento de uma ou mais prestações de um contrato; a violação de um dever que constitui o objeto do negócio jurídico. Já na extracontratual há violação de um dever negativo, ou seja, há a obrigação de não causar danos.

Analisando-se o elemento do dever de indenizar, a responsabilidade pode ser subjetiva ou objetiva. A subjetiva decorre de um dano causado por um ato doloso ou culposo. A ideia de culpa está ligada à responsabilidade, se caracterizando quando o agente que causou o dano atuando com negligência, imperícia ou imprudência, conforme o artigo 186 do Código Civil, que assim dispõe:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

A partir desse dispositivo nota-se que a culpa é o fundamento dessa responsabilidade, sendo empregada em sentido amplo, abrangendo assim o dolo. Há, portanto, a obrigação de reparação do dano, consequência lógica do ato ilícito. Assim, a noção da responsabilidade de cunho subjetivo é que cada indivíduo responderá pela própria culpa, observando-se o princípio do unuscuique sua culpa nocet (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 57-58).

No caso da responsabilidade objetiva não é preciso a comprovação da culpa, pois o dolo ou a culpa na conduta do agente é irrelevante juridicamente, uma vez que só é necessária a existência do nexo de causalidade entre o dano e a conduta do agente responsável para a configuração do dever de indenizar (GAGLIANO et al, 2012, p.58)

Importante frisar que apesar do ordenamento jurídico brasileiro ter adotado a responsabilidade subjetiva no artigo supracitado, não há o abandono da adoção da responsabilidade objetiva, pois o Código Civil a dispõe em alguns artigos, como é o caso do parágrafo único do artigo 927:

Art. 927. (...) Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

No Brasil há, portanto, uma regra de responsabilidade civil dual, pois observa-se a responsabilidade objetiva baseada na teoria do risco e a responsabilidade subjetiva, cujos pressupostos serão analisados posteriormente.

Posto isso, importante mencionar que a responsabilidade ora analisada é civil, extracontratual e subjetiva.

3.3 Pressupostos ou elementos do dever de indenizar (Da responsabilidade subjetiva)

Na análise do artigo 186 do Código Civil de 2002, é perceptível a existência de quatro pressupostos gerais da responsabilidade civil: conduta humana (positiva ou negativa); dano ou prejuízo; nexo de causalidade; e a culpa. Vale ressaltar que alguns doutrinadores não consideram esse último como elemento da mencionada responsabilidade, haja vista a existência da responsabilidade objetiva, que prescinde desse pressuposto para a sua configuração2.

A conduta humana tem como fundamento a característica da voluntariedade, ou seja, não havendo elemento volitivo, não há que se falar que cometeu uma ação ou omissão. Conforme Stoco (2001, p. 95) “não se insere, no contexto de ‘voluntariedade’ o propósito ou a consciência do resultado danoso, ou seja, a deliberação ou a consciência de causar o prejuízo. Este é um elemento definidor do dolo. A voluntariedade pressuposta na culpa é a da ação em si mesma”.

Desta maneira, o agente tem que ter liberdade de escolha ao cometer algum ato, bem como discernimento necessário; consciência do que faz, para configurar a responsabilidade civil, tanto no que se refere à responsabilidade subjetiva quanto na objetiva.

Cumpre mencionar que essa conduta pode ser positiva ou negativa. Agir positivamente é praticar um comportamento ativo; já negativamente significa uma atuação omissiva, uma abstenção do agente, que pode gerar danos e responsabilizações.

O dano, por sua vez, é a lesão a um bem jurídico tutelado, causado por ação ou omissão do sujeito infrator, sendo esse interesse patrimonial ou não. Nas palavras de Cavalieri Filho (2007 p. 70-71):

O dano é, sem dúvida, o grande vilão da responsabilidade civil. Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem dano. Na responsabilidade objetiva, qualquer que seja a modalidade do risco que lhe sirva de fundamento – risco profissional, risco-proveito, risco criado etc. -, o dano constitui o seu elemento preponderante. Tanto é assim que, sem dano, não haverá o que reparar, ainda que a conduta tenha sido culposa ou dolosa.

Destarte, afastando-se o antigo conceito de dano como sendo a diminuição do patrimônio da vítima, tem-se que este é um fator determinante do dever de indenizar, abrangendo não só o aspecto patrimonial, mas também o moral.

O dano patrimonial ou material diz respeito a lesões aos bens e direitos economicamente apreciáveis do seu titular, como um dano sofrido em um veículo, por exemplo. Essa espécie de dano pode ser vista sob dois aspectos: o dano emergente, que é o prejuízo efetivo que a vítima sofreu, e os lucros cessantes, que diz respeito ao que a vítima deixou de ganhar ou lucrar por força do dano (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, p. 86-87).

O dano moral, por seu turno, diz respeito ao prejuízo ou lesão de direitos sem conteúdo pecuniário, como é o caso da personalidade, o direito à vida, integridade física, psíquica, a integridade moral. Mas será analisado de forma específica em momento posterior.

Já o nexo de causalidade diz respeito ao liame entre o fato ilícito praticado (conduta do agente) e o dano produzido por ele. Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 133) destacam três teorias principais que tentam explicar o nexo causal, são elas:

a) Teoria da equivalência de condições: é a adotada pelo Código Penal, e estabelece que todos os fatores causais são equivalentes se tiverem relação com o resultado, não diferenciando, portanto, os antecedentes do resultado danoso.

b) Teoria da causalidade adequada: para essa teoria a causa é, conforme Cavalieri Filho, “o antecedente, não só necessário, mas também adequado à produção do resultado. Logo, nem todas as condições serão causa, mas apenas aquela que for mais apropriada para produzir o evento” (2007, p. 44). Não deve-se considerar como causa, portanto, qualquer condição que tenha contribuído para o resultado, mas sim a que seja idônea para a produção do resultado danoso. A doutrina majoritária adota essa teoria no ordenamento jurídico brasileiro, sendo adotada também pelo Código Civil.

c) Teoria da causalidade direta ou imediata; da causalidade necessária ou da interrupção do nexo causal: para os adeptos dessa teoria “a causa seria o antecedente fático que ligado por um vínculo de necessariedade ao resultado danoso, determinasse este último como uma consequência sua, direta e imediata” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 138). Alguns doutrinadores3 entendem que essa seria a teoria mais adequada, levando em consideração o disposto no artigo 403 do Código Civil de 2002, que trata da inexecução do dolo do devedor.

Ainda no que diz respeito ao nexo de causalidade, conforme elencado por Cavalieri Filho (2007, p. 46):

(...) Não basta que o agente tenha praticado uma conduta ilícita; tampouco que a vítima tenha sofrido um dano. É preciso que esse dano tenha sido causado pela conduta ilícita do agente, que exista entre ambos uma necessária relação de causa e efeito.

É imprescindível, portanto, que o ato ilícito seja a causa do dano; que o prejuízo que a vítima sofreu seja decorrente desse ato para que o resultado seja imputável ao agente.

4 RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO

A possibilidade de reparação civil por abandono afetivo é passível de divergências no ordenamento jurídico brasileiro, pois ainda que o afeto seja reconhecido como bem jurídico e princípio constitucional inerente ao direito de família, a problemática gira em torno do reconhecimento do cabimento ou não de danos morais indenizáveis em casos de falta de afeto dos pais aos seus filhos.

Acerca do conceito de afeto, Angelucci aduz:

(...) é um valor, inerente à formação da dignidade humana, tal como o direito à herança genética, guardada as proporções. Assim, nas quedas patrimoniais, tão comuns no direito, ao afeto deve ser aberto debate sobre seu valor. Não um valor pecuniário, revertido em aspecto financeiro, em moeda corrente, como mero capital ou elemento de troca, mas um valor inerente à formação da pessoa humana, implícito na sua dignidade para sua formação pessoal (2006, p. 46).

Com relação às consequências geradas pelo abandono afetivo de crianças ou adolescentes, Canezin afirma:

A falta de convívio dos pais com os filhos, em face do rompimento do elo de afetividade, pode gerar severas sequelas psicológicas e comprometer seu desenvolvimento saudável. A figura dos pais é responsável pela primeira e necessária ruptura da intimidade mãe-filho e pela introdução do filho no mundo transpessoal, dos irmãos, dos parentes e da sociedade. Nesse outro mundo, imperam ordem, disciplina, autoridade e limites (2006, p. 77).

No mesmo sentido, Dias pondera que “o distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e pode comprometer o seu sado desenvolvimento. O sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida” (2011, p. 460).

Por essas ponderações, é perceptível o sofrimento psicológico pelo qual passa a criança ou adolescente abandonado por um ou pelos dois genitores, surgindo a possibilidade de indenização por esse abandono.

4.1 O dano moral e sua reparação

Ressalte-se que apesar da existência de leis regulamentando a tese da reparabilidade dos danos morais, foi com o advento da Constituição Federal de 1988 que a mesma firmou-se no direito brasileiro, tendo em vista que a matéria foi elevada ao status de direitos e garantias fundamentais.

Corroborando este pensamento, Pereira (2001, p. 58) assevera:

Com as duas disposições contidas na Constituição de 1998 o princípio da reparação do dano moral encontrou o batismo que a inseriu em a canonicidade de nosso direito positivo. Agora, pela palavra mais firme e mais alta da norma constitucional, tornou-se princípio de natureza cogente o que estabelece a reparação por dano moral em nosso direito. Obrigatório para o legislador e para o juiz.

Por sua vez, o Código Civil de 2002 reconhece o instituto do dano moral, bem como a sua reparabilidade, nos artigos 186 e 927, respectivamente. Conforme mencionado anteriormente o artigo 186 elenca quatro pressupostos de responsabilidade civil subjetiva: conduta humana (ação ou omissão); culpa ou dolo do agente; nexo de causalidade e o dano, ainda que exclusivamente moral, devendo-se observar se tais requisitos estão presentes nos casos de abandono afetivo discutidos nos tribunais.

Ao iniciar uma abordagem sobre o dano moral, imprescindível destacar sua conceituação perante a doutrina brasileira. Nesse mote, Cavalieri Filho estabelece dois aspectos através dos quais o conceito de dano moral deve ser vislumbrado: sentido estrito e sentido amplo. Assim sendo, define:

Em sentido estrito, dano moral é a violação do direito à dignidade, E foi justamente por considerar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, corolário do direito à dignidade, que a Constituição inseriu em seu artigo 5º¸V e X, a plena reparação do dano moral. Este é, pois, o novo enfoque constitucional pelo qual deve ser examinado o dano moral (2007, p. 76-77).

Lado outro, está o sentido amplo do dano moral, que engloba aspectos da pessoa humana não vinculados diretamente à sua dignidade, tais quais a imagem, a reputação, hábitos, direitos autorais, sentimentos, relações afetivas, dentre outros. Assim, complementa Cavalieri Filho (2007, p. 77-78):

Hoje o dano moral não mais se restringe à dor, tristeza e sofrimento, estendendo a sua tutela a todos os bens personalíssimos – os complexos de ordem ética -, razão pela qual revela-se mais apropriado chamá-lo de dano imaterial ou não patrimonial, como ocorre no Direito Português. Em razão dessa natureza imaterial, o dano moral é insuscetível de avaliação pecuniária, podendo apenas ser compensado com a obrigação pecuniária imposta ao causador do dano, sendo esta mais uma satisfação do que uma indenização.

A respeito deste conceito, Gagliano e Pamplona Filho enfatizam:

O dano moral consiste na lesão de direitos cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Em outras palavras, podemos afirmar que o dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos da personalidade), violando, por exemplo, sua intimidade, vida privada, honra e imagem, bens jurídicos tutelados constitucionalmente (2012, p. 101).

Conforme Bittar (1993, p. 41):

(...) morais são os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração pessoal).

Nesse aspecto, o dano moral não vincula-se, necessariamente, a reações psíquicas da vítima, podendo haver ofensa à dignidade da pessoa sem que haja dor, sofrimento ou alguma lesão física. Assim, os bens que integram a personalidade dizem respeito a valores distintos dos bens patrimoniais, sendo o dano moral autônomo, desvinculado do dano material (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 77).

4.2 Controvérsias da reparação moral nas relações familiares

Conforme explana Jardim, “no âmbito familiar, a possibilidade de condenação de natureza indenizatória, especialmente quando se trata de relação paterno-filial, é ainda muito controvertida, tendo em vista que se analisa o dever de indenização em relações afetivas” (2010, p. 32).

Àqueles que entendem pela possibilidade de indenização devido ao abandono afetivo baseiam-se na ideia de que a assistência moral, psíquica e social é obrigação dos pais perante seus filhos, e isso só é possível havendo uma convivência entre eles. A prestação de assistência material não é suficiente para a criação saudável e suficiente dos filhos, podendo esse abandono acarretar em abalos psicológicos aos mesmos, advindo daí a obrigação de reparação por danos morais.

A partir disso, impende avultar o que afirma Canezin (2006, p. 77) sobre as consequências da omissão paternal sobre os filhos:

A omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação. Se lhe faltar essa referência, o filho estará sendo prejudicado, talvez de forma permanente, para o resto de sua vida. Assim, a ausência da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo da vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida. Tornam-se pessoas inseguras, infelizes.

Porém, aos que entendem pela impossibilidade da indenização, compensar uma lesão com dinheiro é uma “capitalização do afeto”, e já que ninguém é obrigado a amar ninguém, o abandono afetivo não é um ato contrário à lei, não sendo obrigação jurídica sob o controle do Estado. Essa corrente que entende pela negativa do dever de indenizar por abandono afetivo entende que os deveres decorrentes da paternidade não devem se relacionar com o afeto. Assim, a reparação do dano moral não pode ser exteriorizado pelo “pagamento do amor e do afeto”, não sendo isso uma conduta ilícita.

Horne, adepto da corrente que considera inviável a reparação civil nesses casos, aduz:

Não se pode, portanto, quantificar o desejo e o amor, muito menos exigir que se goste ou não, que se realize ou não o ato de adoção [...] por mais que esteja configurada a rejeição moral, o princípio da liberdade afetiva se sobrepõe a qualquer outro princípio para a realização da dignidade, visto que não se pode exigir afeto (2007, p. 32).

Vale ressaltar que a mencionada discussão deve ser amparada pela ilicitude ou não do abandono afetivo, e por tal motivo deve-se analisar cada caso em concreto. Nesse sentido, Novaes sustenta que:

Não podemos deixar de entender que o abandono moral do genitor, o seu descaso com a saúde, educação e bem-estar do filho, não possam ser considerados como ofensas à sua integridade moral, ao seu direito de personalidade, pois aí sim estaríamos banalizando o dano moral. Se o pai não tem culpa por não amar o filho, o tem por negligenciá-lo. O pai deve arcar com a responsabilidade por tê-lo abandonado, por não ter cumprido com o seu dever de assistência moral, por não ter convivido com o filho, por não tê-lo educado, enfim, todos esses direitos impostos pela Lei. Portanto, violados esses direitos, hão de ser reparados pela via da indenização por dano moral (2007, p. 68).

No mesmo entender, destaca-se a citação de Pereira; Silva (2006, p. 679):

Os pais são responsáveis pela educação de seus filhos – aí pressupondo-se, cuidados, afeto, apoio moral, atenção. Abandonar e rejeitar um filho é violar direitos. A toda regra jurídica deve corresponder uma sanção, sob pena de se tornar somente regra moral. Uma das razões da existência da lei jurídica é obrigar e colocar limites. Admitindo-se não ser possível obrigar ninguém a dar afeto, a única sanção possível é a reparatória. Não estabelecer tal sanção aos pais significa premiar a irresponsabilidade e o abandono paterno.

Note-se que tais autores entendem que o abandono afetivo constitui-se como ato ilícito, sendo uma violação aos direitos do filho abandonado, e por tal motivo é possível o ressarcimento nesses casos.

Parte da doutrina entende ainda que além da reparação do dano por meio da indenização (função compensatória), deve haver a punição do agente causador do dano, que no caso é o genitor (ou os genitores). Nesse sentido leciona Cavalieri Filho (2007, p. 70):

(...) não se pode ignorar a necessidade de se impor uma pena ao causador do dano moral, para não passar impune a infração e, assim, estimular novas agressões. A indenização funcionará também como uma espécie de pena privada em beneficio da vítima.

Nesse sentido de reparação do dano e responsabilização dos pais, entende Andrekowisk:

A defesa da aplicação da condenação do dano moral nas ações de filiação não tem o intuito do enriquecimento, mesmo que no primeiro momento ocorra um acréscimo devido no patrimônio do lesado. O que se busca na verdade é algo muito mais importante, cujo resultado somente será percebido a longo prazo, qual seja, a conscientização da sociedade da seriedade que devem ser tratados os assuntos de filiação, em razão dos já expostos gravíssimos prejuízos que acarretam às partes envolvidas. O abandono afetivo se configura com um ato de negligência que significa a omissão dos pais em promover as necessidades básicas para o desenvolvimento do filho (2006, p. 192).

Impende ainda frisar a lição de Silva (2013), que aduz:

Amar não é dever ou direito no plano jurídico. Portanto não há qualquer ilicitude na falta de amor. Quem deixa de amar, numa relação de família, não pratica ato ilícito. (...) O abandono do filho, desde que seja voluntário e injustificado, configura violação ao dever do pai de ter o filho em sua companhia. Essa conduta desrespeita o direito do filho à convivência familiar. Aí reside a ação ou omissão, um dos requisitos da responsabilidade civil. Se dessa conduta resultam danos ao filho (...) estarão preenchidos os outros requisitos da responsabilidade civil: nexo causal e dano. A falta de afeto ou de amor não pode gerar a condenação paterna no pagamento de indenização ao filho, mas, sim, o ato ilícito acima descrito.

É perceptível que o amor que os pais não possuem pelos filhos não é o elemento que configura a obrigação de indenizar, tendo em vista que ninguém pode ser obrigado e responsabilizado por não amar. Porém, deve-se observar o descumprimento intencional dos genitores no que diz respeito à convivência familiar, ou seja, a omissão em participar da vida dos filhos (assistência moral, psíquica, afetiva, etc.), bem como o nexo entre essa omissão e os danos gerados aos filhos.

Sendo assim, adota-se no presente trabalho o posicionamento no sentido de que é possível a reparação (indenizável) por danos morais em face do abandono afetivo da prole, tendo em vista que o lesionado sempre merece um amparo jurídico e, apesar de alguns autores alegarem que “a dor não tem preço”, deve-se observar que a solução para casos desse tipo não abarca a equivalência em dinheiro, mas a exigibilidade de algo, para satisfação moral do ofendido.

4.3 Análise de decisões dos Tribunais brasileiros acerca da responsabilização por abandono afetivo paterno-filial

Igualmente como ocorre na doutrina, há discussão jurídica nos tribunais brasileiros acerca da possibilidade (ou não) de indenização dos filhos abandonados afetivamente por seus genitores. Nesse aspecto, há entendimento no sentido de que não é possível haver punição ou reparação caso haja o descumprimento das funções paternas (ou maternas). Por outro lado, há quem entenda pela possibilidade de reparação por danos morais, sendo necessária uma análise das decisões concernentes à responsabilidade civil por abandono afetivo, de modo a verificar seus fundamentos.

4.3.1 Decisões em desfavor da responsabilização

Afirmam Lagrasta Neto; Tartuce e Simão (2011, p. 230) que esse tema ganhou destaque a partir do julgamento do REsp nº 757.411/MG, inerente ao caso Alexandre Fortes, no qual o STJ se manifestou afirmando o seguinte:

No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral. (...) Sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 757.411 – MG, Quarta Turma, Relator Ministro Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005). (Grifo nosso).

No mesmo sentido, destaca-se o RE 567.164, proferido pela Ministra Ellen Gracie, que proferiu decisão no sentido de negar seguimento ao recurso de reparação de danos morais por abandono afetivo. O STF4 assim noticiou a mencionada decisão:

A ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal (STF), arquivou Recurso Extraordinário (RE 567164) em que A.B.F. pedia ressarcimento por danos morais em razão de abandono familiar. Ele alegava ofensa aos artigos 1º, 5º, incisos V e X, e 229 da Constituição Federal. O autor questionava decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que ao dar provimento a um recurso especial concluiu, com base no artigo 159 do Código Civil de 1916, a inviabilidade do reconhecimento de indenização por danos morais decorrente de abandono afetivo.

Em 2008, o Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão no sentido de afastar a obrigação de ressarcimento do pai, por não se caracterizar o ato ilícito no caso. Além disso, afirmou que o descumprimento dos deveres afetivos dos genitores deve acarretar na perda do poder familiar, e não em pagamento de indenização, conforme observa-se no trecho a seguir:

Ao que se depreende, não houve mesmo convivência afetiva entre as partes, o que não afasta a concorrência da genitora para que as circunstâncias assim se consolidassem. É fato que a dissolução de relacionamentos geram ressentimentos e acabam por desencadear um embate emocional e, não raro, os filhos menores ficam envolvidos em clima hostil e desfavorável ao desenvolvimento emocional, ainda mais quando há, como houve, constituição de nova família. Entretanto, a ofensa à integridade psíquica determinada pelo réu, com ou sem a concorrência da mãe do autor, não configura ilicitude geradora de danos morais. Até se reconhece a possibilidade de dor psicológica do requerente, mas em sua origem não se aloca culpa ou dolo apto a representar ato ilícito e, assim, estanca o desdobramento para a responsabilidade civil extracontratual, afastando a obrigação de ressarcimento. Os deveres dos pais com os filhos são, basicamente, de duas ordens, material e afetiva, e o seu descumprimento traz por consequências jurídicas a execução de alimentos e seus consectários legais, e a perda do poder familiar em caso de abandono afetivo (TJ-SP - AC: 599.506-4/9 SP, Relator: Maia da Cunha, Data de Julgamento: 11/12/2008, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/12/2008). (Grifo nosso).

Em 2010, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina analisou um caso em que a mãe deu o filho para adoção, por não possuir condições de arcar com a sua criação, e o mesmo entrou com uma ação por danos morais para responsabiliza-la por abandono afetivo. Segue a ementa:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. AUTOR ENTREGUE À ADOÇÃO APÓS NASCIMENTO PELA GENITORA BIOLÓGICA. ALEGAÇÃO DE ABANDONO AFETIVO. INSUBSISTÊNCIA. INSTITUTO DA ADOÇÃO PREVISTO EM LEI. FACULDADE DOS GENITORES. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. REQUISITOS DOS ARTS. 186 E 927 DO CÓDIGO CIVIL AUSENTES. RESPONSABILIDADE CIVIL AFASTADA. PRECEDENTES DO STJ. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Há que se ter como um gesto heróico e não egoístico da genitora, que ciente de suas precárias condições pessoais para criar, manter e educar um filho, abdica voluntariamente do poder familiar e o entrega para uma família substituta para fins de adoção. Por isso e por ter agido em defesa da prole com sustentáculo na legislação de regência, nenhuma ilicitude cometeu que pudesse ensejar uma indenização por danos morais. De mais a mais, sem comprovação dos requisitos insculpidos no art. 186 do Código Civil, incumbência não desempenhada pelo autor, não há que se cogitar de responsabilidade civil subjetiva por ato ilícito. (TJ-SC - AC: 268737 SC 2010.026873-7, Relator: Marcus Tulio Sartorato, Data de Julgamento: 15/06/2010, Terceira Câmara de Direito Civil, Data de Publicação: Apelação Cível n. , de Criciúma). (Grifo nosso).

Em agosto de 2013 o Tribunal de Justiça do Distrito Federal analisou a seguinte Apelação:

(...) No caso dos autos, observa-se que o Autor/Apelante teve reconhecida a paternidade em 2008, através de ação de investigação de paternidade, quando estava com 35 (trinta e cinco) anos de idade. Antes desta data, não há falar em abandono de qualquer espécie, pois que impossível se exigir indenização de quem nem sequer sabia que era pai (TJ-DF - EMD1: 20090110466999 DF 0089809-17.2009.8.07.0001, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Data de Julgamento: 07/08/2013, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 19/08/2013 . Pág.: 89).

No presente caso o indivíduo não sabia que era pai, não havendo o que falar em nexo de causalidade, não sendo possível, pois, a sua responsabilização por abandono afetivo, tampouco exigir a referida indenização.

É perceptível que nesses casos houve o entendimento de que a legislação inerente ao Direito de Família já prevê a punição específica para os casos de abandono dos filhos, qual seja, a perda do poder familiar, constante no artigo 1.638, inciso II do Código Civil. Ademais, em todos os casos não foram observados algum dos requisitos constantes no artigo 186 do Código Civil, principalmente o nexo de causalidade e/ou culpa dos genitores, não sendo caracterizada a ilicitude do ato.

Desse modo, não seria possível a análise do pedido de reparação pecuniária nos casos de abandono moral, haja vista que deve-se observar o disposto no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

4.3.2 Decisões à favor da responsabilização

A respeito dos posicionamentos a favor da reparação, Lagrasta Neto; Tartuce e Simão (2011, p.230) comentam que no ano de 2004 o extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais entendeu, em decisão, ser possível a responsabilização indenizatória dos genitores por abandono afetivo dos filhos, uma vez que houve violação à dignidade humana, tutelada pela Constituição Federal em seu inciso III do art. 1º, segundo observa-se na ementa abaixo transcrita:

DANO MORAL - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - ABANDONO - PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA AFETIVIDADE - INDENIZAÇÃO DEVIDA. "INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. RELAÇÃO PATERNO-FILIAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana (TAMG – 7ª Câmara Cível. Apelação Cívil 408.550-5  - Rel. Unias Silva - DJMG 29.04.2004).

Em 2008, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu pela caracterização da conduta ilícita do pai em relação ao filho, observando-se a existência do nexo de causalidade entre a conduta do genitor e o dano gerado ao filho, cabendo assim uma indenização por danos morais e materiais, conforme ementa abaixo:

RESPONSABILIDADE CIVIL - ABANDONO MORAL - INDENIZAÇÃO DEVIDA "APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. ABANDONO DO FILHO. FALTA DE AMPARO AFETIVO E MATERIAL POR PARTE DO PAI. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Redimencionamento. A responsabilidade civil, no direito de família, é subjetiva. O dever de indenizar decorre do agir doloso ou culposo do agente. No caso, restando caracterizada a conduta ilícita do pai em relação ao filho, bem como o nexo de causalidade e o dano, cabe indenização por danos materiais e morais. Nas demandas condenatórias, a verba honorária deve incidir sobre o valor da condenação. Inteligência do art. 20, § 3º, do CPC. Recurso do autor parcialmente provido. Apelação do requerido improvida." (TJRS - AC 70021427695 - 8ª C.Cív. - Rel. Des. Claudir Fidelis Faccenda - J. 29.11.200711.29.2007) - (Ementário de jurisprudência, 2008, p.33).

Em 2009, uma ação cuja autora acabara de obter reconhecimento judicial da paternidade e alegou abandono afetivo por parte do pai durante sua infância e adolescência, foi julgada pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça. O Egrégio Tribunal entendeu pela possibilidade de exigir indenização por danos morais em decorrência do abandono afetivo do genitor:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1.Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social (REsp 1159242 / SP RECURSO ESPECIAL 2009/0193701-9 Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA).(Grifo nosso).

De suma importância ressaltar o Projeto de Lei nº 700 que tramita no Senado Federal desde o ano de 2007, e foi apresentado pelo Senador Marcelo Crivella. Seu objeto é alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente, caracterizando o abandono moral como ilícito civil e penal. Na justificação do projeto, o senador relata que:

A Lei não tem o poder de alterar a consciência dos pais, mas pode prevenir e solucionar os casos intoleráveis de negligência para com os filhos. Eis a finalidade desta proposta, e fundamenta-se na Constituição Federal, que, no seu art. 22 estabelece, entre os deveres e objetivos do Estado, juntamente com a sociedade e a família, o de assegurar a crianças e adolescentes - além do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer - o direito à dignidade e ao respeito. [...] Amor e afeto não se impõem por lei. Nossa iniciativa não tem essa pretensão. Queremos, tão-somente, esclarecer, de uma vez por todas, que os pais têm o dever de acompanhar a formação dos filhos, orientá-los nos momentos mais importantes, prestar-lhes solidariedade e apoio nas situações de sofrimento e, na medida do possível, fazerem-se presentes quando o menor reclama espontaneamente a sua companhia. [...] Portanto, embora consideremos que a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código Civil contemplem a assistência moral, entendemos por bem estabelecer uma regra inequívoca que caracterize o abandono moral como conduta ilícita passível de reparação civil, além de repercussão penal.

Pelo que se observa na justificação do projeto, a modificação principal a ser feita no Estatuto da Criança e do Adolescente seria o acréscimo do parágrafo único no seu artigo 5º, a constar da seguinte redação:

Art. 5º. [...]

Parágrafo único. Considera-se conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, a ação ou a omissão que ofenda direito fundamental de criança ou adolescente previsto nesta Lei, incluindo os casos de abandono moral.

Importante destacar que a última movimentação inerente a esse Projeto de Lei foi nos dias 13 e 15 de agosto de 2013, nos quais houve o adiamento da reunião para a deliberação da matéria e o encaminhamento da matéria ao gabinete do Senador Eduardo Lopes para o reexame do relatório, respectivamente (PORTAL ATIVIDADE LEGISLATIVA DO SENADO, 2013).

Por fim, acrescente-se que os danos causados aos filhos abandonados afetivamente por seus genitores afeta a dignidade humana da criança ou adolescente em formação, sendo passível de reparação material não só para que os deveres omissos dos pais sejam punidos, mas, também, para que o irresponsável abandono possa ser contraposto por posição do Poder Judiciário, demonstrando que o afeto é o preço mais alto no que diz respeito a configuração atual da família (MADALENO, 2006, p. 169).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da percepção dos direitos fundamentais no contexto familiar, verifica-se que nas ações que visam à reparação moral por abandono afetivo, não deve ser observada a vontade do indivíduo de obter indenizações ou de se vingar dos pais por causa do abandono, mas deve haver uma fundamentação de modo a valorizar a dignidade da pessoa humana, direito fundamental do homem, pois ainda que o afeto não conste na Constituição Federal como um direito desse patamar, é visto como o alicerce do conceito de família atual.

É neste compasso que torna-se imprescindível a verificação do conceito pós-moderno de família, embasado no carinho, no amor, no afeto, enfim, deixando de considerar apenas a família ligada por laços consanguíneos, e buscando a afinidade entre seus membros como principal vínculo entre os mesmos.

O abandono afetivo paterno-filial, sobretudo quando os filhos são crianças ou adolescentes, seres em desenvolvimento, é uma das principais causas de alterações emocionais-psicológicas dos filhos que passam por essa situação, sendo, portanto, tão prejudicial quanto o abandono material. É perceptível a polêmica em torno dessa questão no que diz respeito à doutrina e, especialmente, à jurisprudência, uma vez que é um desafio ao Poder Judiciário analisar cada caso concreto, observando os limites da responsabilização civil nos casos de reparação por dano moral.

É importante reconhecer que o legislador não pode impor a afetividade no âmbito familiar, e por isso a doutrina que entende pela negativa da responsabilização moral por abandono afetivo alega que a indenização a ser paga pelos pais “não compra o amor”. Contudo, através do que estabelece a Constituição Federal, o afeto é um direito individual e, como tal, deve ser tratado não como uma questão meramente ligada ao Direito de Família, pois está sob a ótica de pressupostos maiores amparados pelo texto constitucional.

Através das pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais é perceptível que a questão da indenização por abandono afetivo é objeto de controvérsias, mas ressalta-se que o afeto vem ganhando posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que está sendo reconhecido e consagrado em diversas decisões dos Tribunais do país, sob a alegação de que o abandono afetivo paterno-filial é, além de desvalorização do princípio do afeto (basilar das relações familiares hodiernas), uma violação ao princípio da dignidade humana.

Desse modo, as famílias desvinculadas de afeto, nas quais os genitores negam afetividade a seus filhos podem, a depender do caso, sofrer uma responsabilização civil cujo dever é de indenização, de modo a reparar os desgastes psicológicos pelos quais passam os filhos que crescem sem amor, carinho e cuidado dos seus pais. Caso contrário (não havendo reparação) pode ser caracterizada a aceitação ao descumprimento dos deveres de convivência familiar e de relação afetiva entre os pais e seus filhos, o que estimula a adoção de condutas desse tipo, haja vista a ausência de sanções.

Sendo assim, mesmo não havendo previsão legal a respeito da responsabilidade civil por abandono afetivo, entende-se que a mesma pode ser alegada a partir do momento em que cumpre com os requisitos do artigo 186 do Código Civil, quais sejam, a conduta, o nexo causal, a culpa e o dano, configurando-se o ato ilícito dos genitores que não proporcionam o afeto aos filhos, devendo cada caso ser analisado conforme suas peculiariedades, para evitar uma eclosão de decisões judiciais sem “justa causa”.

Portanto, partindo do pressuposto de que os requisitos estão presentes, deve-se reparar o dano não para que o afeto seja restaurado (pois isso seria impossível), tampouco para “monetarizar o afeto”, mas para conscientizar os genitores, gradativamente, da importância do afeto e do convívio para a formação psicológica de seus filhos, observando-se assim tanto uma função punitiva quanto educativa e pedagógica da responsabilização no âmbito familiar.

REFERÊNCIAS

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1 LAKATOS apud MARCONI, 2006.

2 É o caso dos autores Gagliano e Pamplona Filho, que defendem a ideia de que existem apenas três requisitos decorrentes do artigo 186 do Código Civil de 2002: conduta humana; dano ou prejuízo e o nexo de causalidade (2012, p. 69).

3 Dentre os doutrinadores que optam pela adoção dessa teoria pelo Código Civil brasileiro estão Carlos Roberto Gonçalves, Pablo Stolze e Pamplona Filho, por entenderem que o artigo 403 assim o faz: “Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”.

4 Supremo Tribunal Federal. Ministra arquiva recurso sobre abandono afetivo por não existir ofensa direta à Constituição. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=108739>. Acesso em outubro de 2013.

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