RESUMO: O presente artigo tem como objetivo fazer uma reflexão acerca da prova no crime de estupro de vulnerável. Esse tipo de crime envolve uma pessoa incapaz. Para alguns estudiosos, o incapaz, muitas vezes uma criança, seria fácil ser ludibriada. Para outros, são pessoas que não mentem, puras e só dizem o que realmente presenciaram. Esse crime normalmente é concretizado às escuras, sem testemunhas e por vezes, se repetem ao longo do tempo, sendo a declaração da vítima, a única prova a que se tem acesso. Ao longo desse artigo trato sobre o estupro ao longo da história, a nova tipificação penal e a dificuldade de provar o crime.
PALAVRAS-CHAVE: Estupro. Vulnerável. Prova testemunhal.
SUMÁRIO: Introdução. 1 O estupro de vulnerável ao longo da história. 2. O novo tipo penal. 3. A dificuldade probatória nos crimes contra vulneráveis. 4. As consequências do problema para a vítima e o réu. 5. Soluções possíveis. 6. Conclusão
INTRODUÇÃO
O trabalho proposto dá ênfase especialmente ao artigo 217-A, do Código Penal Brasileiro, que trata do estupro de vulnerável, sendo uma nova nomenclatura dada pela Lei nº 12.015/2009, essa lei alterou de forma significativa o título que cuidava dos crimes contra os costumes, alterando para crimes contra a dignidade sexual. No caso do estupro, crime normalmente sem testemunhas e, de acordo com a nova lei, não sendo necessário a cópula para que seja configurado o tipo penal, as vezes é um crime sem vestígios, alguns atos libidinosos não deixam marcas. A violência psicológica não deixa marcas a olho nu, sendo a prova material muitas vezes impossível de colher, restando apenas o testemunho de uma criança assustada e com medo. A presente pesquisa tratará da análise histórica desse crime, passando pelas maneiras de provar o mesmo perante o poder judiciário. Como serão essas provas? Como o magistrado deve valorar o depoimento infantil, separar a fantasia da realidade? A dificuldade da prova é o principal tema do presente artigo.
1. O ESTUPRO DE VULNERÁVEL AO LONGO DA HISTÓRIA
A prática da violência contra crianças era comum na antiguidade. Na mitologia temos várias passagens com relatos , tais como esta:
Caim matou Abel, enquanto Zeus seqüestrou o jovem Ganimedes para lhe servir de copeiro e amante. O livro A Vida dos Doze Césares, de Suetônio, registrou as inclinações sexuais do imperador romano Tibério com crianças: ele se retirou para a ilha de Capri com várias crianças pequenas, as quais forçava a cometerem atos sexuais vulgares e a atenderem a seus desejos pornográficos.
No oriente, com o surgimento do Código de Hamurábi, por volta de 1680 a.c, vislumbra-se um princípio de proteção da infância, pois o mesmo continha leis que davam ênfase à proteção da criança exposta às sevícias de seus cuidadores.
No Egito, as crianças casavam em uniões fisicamente e psicologicamente incompatíveis , apenas com o intuito de manter a herança ou não misturar a linhagem. Os casamentos eram arranjados na mais tenra infância, e não era necessário nem a primeira menstruação para que o mesmo fosse concretizado.
Áries (1981,p.77) relata o casamento de Luís XVIII, que tinha 14 anos e sua jovem esposa de 12 anos. Era comum e aceitável. O sentimento da criança forçada não era percebido, nem notado, na verdade, não havia o que ser questionado.
Por volta do século XVIII, surgiram os asilos religiosos, para que mães solteiras e as jovens estupradas fossem redimidas. Esse lugares destinados a proteger, na verdade, eram prisões. O que foi comprovado no século XX. Os asilos serviam para a prática do abuso sexual por parte de alguns religiosos (Landini,2005,p.157 e 158). Esse mesmo autor cita Ingles, (1998,p.171):
(...) por trás dos discursos católicos a respeito do celibato, pureza, inocência, virgindade, humildade e pena existiam práticas como o abuso de crianças, incesto, pedofilia, estupros, aborto e infanticídios. Passamos das confissões extraídas pelos padres para a exposição...dos pecados dos bispos, padres e irmãos.
No Brasil, a situação não era diferente do resto do mundo, segundo Vecina e Ferrari (2002,p.48),“no Brasil desde os primeiros momentos de colonização, na então colônia de Santa Cruz, observa-se a tentativa de adestramento físico e mental a que foram submetidas as crianças indígenas pelos jesuítas. Nas minas setecentistas, destacam-se aspectos da sexualidade infantil, como a pederastia.”
2. O NOVO TIPO PENAL
Com o advento da Lei 12.015/ 2009, surgiu um novo tipo penal chamado estupro de vulnerável, disposto no artigo 217-A, do código penal, que contém a seguinte redação:
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém
que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer
resistência.
§ 2o (VETADO)
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Houve a modificação de crimes já existentes, a supressão de outros e, ainda, a criação de novos tipos. A motivação inicial apontada no Projeto de Lei foi a necessidade da sociedade por uma legislação penal mais atualizada, e em acordo com as novas concepções sociais acerca da sexualidade, pois considera-se que nosso Código Penal, por ser de 1940, não atendia mais os anseios da sociedade. A nomenclatura que era “crimes contra os costumes, passou a ser chamada de “crimes contra a dignidade sexual”. Também não se fala mais em em Presunção de Violência no crime de estupro contra menor de 14 anos, pois se considera aqui que, em virtude da tenra idade, a prática sexual é, em qualquer hipótese, uma violação da liberdade e dignidade sexual do ofendido. Não há mais que se provar a violência real ou grave ameaça. Por se tratar de um crime contra crianças e adolescentes, o aspecto dele se torna ainda mais repugnante. E quando se consuma o crime: Afirma, Greco: (...) o delito de estupro de vulnerável se consuma com a efetiva conjunção carnal, não importando se a penetração foi total ou parcial, não havendo, inclusive, necessidade de ejaculação. Quanto à segunda parte prevista no caput do art. 217-A do estatuto repressivo, consuma-se o estupro de vulnerável no momento em que o agente pratica qualquer outro ato libidinoso com a vítima. (GRECO, 2009, p. 74). A partir dessa nova lei, o estupro, tanto em sua forma simples, como qualificada, passou a fazer parte do rol dos crimes hediondos. Ainda antes da vigência da Lei n. 12.015/09, a jurisprudência caminhava no sentido de que Os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, ainda que em sua forma simples, configuram modalidades de crime hediondo, sendo irrelevante que a prática de qualquer desses ilícitos penais tenha causado, ou não, lesões corporais de natureza grave ou morte, que traduzem, nesse contexto, resultados qualificadores do tipo penal, não constituindo, por isso mesmo, elementos essenciais e necessários ao reconhecimento do caráter hediondo de tais infrações delituosas (STF, HC
89.554/DF, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 6-2-2007). E ainda: 1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal firmou entendimento no sentido de que, nos casos de estupro e atentado violento ao pudor, as lesões corporais graves ou morte traduzem resultados qualificadores do tipo penal, não constituindo elementos essenciais e necessários para o reconhecimento legal da natureza hedionda das infrações. 2. Em razão do bem jurídico tutelado, que é a liberdade sexual da mulher, esses crimes, mesmo em sua forma simples, dotam-se da condição hedionda com que os qualifica apenas o art. 1º da Lei n. 8.072/90 (STF, HC 88.245/SC, Pleno, rel. Min. Março Aurélio, rela. p/ Acórdão Mina. Cármen Lúcia, j. 16-11-2006). O TJRS também assim decidiu: [...] 2. Hediondez dos Delitos . Inequívoca incidência da Lei nº 8.072/90 no caso. Reconhecimento da hediondez dos delitos praticados pelo acusado. Os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, mesmo quando praticados em sua forma simples, são crimes hediondos. Jurisprudência. 3. A dificuldade probatória nos crimes contra vulneráveis Definido o crime na legislação, chegamos a parte mais difícil : provar que houve o abuso. Quando há a cópula, a prova do crime é palpável. Através de um laudo de exame de corpo de delito, têm-se uma prova material, a qual não há muitos questionamentos a fazer. Mas quando não há prova física? Quando o estuprador desiste da cópula, mas pratica vários atos libidinosos, contra uma vítima coagida, com medo, sem reação? Em um lugar onde só a vítima e o estuprador se encontram, as vezes ocorrendo no próprio lar da criança ou adolescente. A única testemunha é a própria vítima. Tourinho Filho (2009) explana que: Quando a infração deixa vestígios, por exemplo em um caso de estupro, é necessário o exame de corpo de delito, isto é, a comprovação dos vestígios materiais por ela deixados torna-se indispensável. (TOURINHO FILHO, p. 256). Resta ao magistrado somar a prova testemunhal a alguma outra prova presente nos autos da ação penal. Essa dificuldade em relação a prova estemunhal acontece devido essas vítimas serem “desacreditadas”, a sociedade pensa que são apenas crianças inventando histórias. Por isso é colocado tanto em dúvida esses depoimentos. A defesa dos acusados tenta provar que o conjunto probatório é frágil. Tentando denegrir a imagem da vítima, colocando a culpa nela ou desqualificando a família. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, excepciona tal regrado corpo de delito ao decidir que: É irrelevante o resultado negativo do laudo de corpo delito. A materialidade do crime de atentado violento ao pudor – hoje estupro – prescinde da realização do exame de corpo delito, porque nem sempre deixa vestígios detectáveis, sendo que a palavra da vitima, corroborada por prova testemunhal idônea tem relevante valor probante e autoriza a condenação quando em sintonia com os outros elementos de prova. (Ap. 2000 03.1.011076- 7, 1ª T., rel. Mario Machado, 19.07.2007, v.u.) Tendo sido o crime, tentado ou consumado, por conjunção carnal,
A dificuldade em se provar condutas delituosas que tenham como vítimas crianças ou adolescentes recai justamente no fato destas serem “desacreditadas” pela sociedade, colocando em dúvida o teor dos depoimentos prestados por estes perante o Juiz, e, por conseguinte, colocando em xeque a decisão do Magistrado em face de um conjunto probatório frágil. Segue adiante alguns trechos da “defesa” de um acusado de estupro: “ Sobre a menor M.R , apesar da pouca idade tinha vida desregrada e responsabilidade de adulto. Tinha vida desregrada, pois a sua mãe a deixava sem vigia, ou pessoa maior para guia-la, e vivia perambulando pela região com as coleguinhas de sua idade” Em outro trecho: “ Eis o motivo de atribuir que a menor detinha sem discernimento a responsabilidade apenas atribuída a um adulto. Isso nos faz cre, que atitudes assim de pais relapsos, sem demagogia ou falsas acusações, lamentavelmente, podem ceifar precocemente a inocência e ingenuidade das crianças.” Nota-se em poucas linhas, que a defesa tenta atacar a criança e os pais da mesma. Colocando-os , não como vítimas, mas como réus. Atribuindo aos pais o motivo do crime. Fica a pergunta: Se uma criança de 10 anos brinca na rua com suas coleguinhas, ela merece ser estuprada? E a criança estar dentro de casa sozinha por alguns momentos, também dá o direito ao estuprador, de molestá-la? Mais trechos dessa mesma defesa esdrúxula: “ Ora excelência, se tudo isso fosse verdade, no mínimo a vítima teria gritado e os vizinhos teriam ouvido o clamor, até porque sua casa é conjugada.” Então, se a vítima, apavorada, em estado de choque não grita, isso prova que não houve o crime? O mesmo advogado coloca em dúvida o depoimento da vítima devido ao fato dela não ter relatado aos seus pais imediatamente o ocorrido. Há incontáveis casos, não só no direito penal brasileiro, que a vítima só consegue relatar o ocorrido anos depois, as vezes 10, 20 ,30 anos depois. Segue mais trechos da defesa: “ Tendo como ponto mais curioso , o prazo de manifestação da vítima...” O mesmo questiona o laudo, com as seguintes palavras: “”... o laudo é impreciso quando descreve a rotura himenal,pois não especifica , já que foi incompleta e está cicatrizada, se a mesma poderia ter sido efetuada pela própria “vítima”... Gonçalves (2013, apud LENZA, 2013): Em suma é possível a condenação de um estuprador com base somente na palavra e no reconhecimento efetuado pela vítima, desde que não haja razões concretas para que se questione o seu depoimento. Há uma presunção de que as palavras desta são verdadeiras, mas é relativa. (GONÇALVES, apud LENZA, 2013, p. 543). Se fizermos um paralelo entre um caso de estupro e um roubo, percebe-se que as pessoas acreditam quando você diz que foi assaltada, mas há um descrédito quando a vítima diz que foi estuprada. Nesse contexto, Eluf (1999) faz um paralelo com outros tipos de crimes:
É possível perceber que o descrédito da vítima é maior quando se trata de delito sexual. Em caso de roubo, por exemplo, se o ofendido declara que foi assaltado a mão armada ninguém duvida da veracidade de suas informações, mas o mesmo não pode e não ocorre nos casos sexuais, onde as mulheres são ouvidas com reservas. (ELUF, 1999, p. 20). 4. As consequências do problema para a vítima e o réu Pode ocorrer do juiz que decidir erroneamente, as circunstâncias levarem a condenar um inocente. Para qualquer cidadão, ser preso injustamente causaria grande dano, mas para o réu por estupro a situação é ainda mais complicada. Uma vez no presísio passará a sofrer forte pressão emocional e física. É muito comum ocorrer o estupro desses condenados, como uma forma de castigo pelo crime cometido. Já em relação à vítima do estupro, além do dano ocasionado pelo crime, se não conseguir provar a autoria, justamente devido à fraqueza das provas, a vítima viverá em sociedade tendo conhecimento de que seu agressor está livre, proporcionando-lhe perigo de novos abusos e até mesmo outras repreensões. Causando instabilidade emocional à vítima e às pessoas diretamente ligadas a ela; isto sem falar o risco de o acusado contrair novas vítimas. Ademais, ao saber que uma denúncia restou infrutífera, terceiros alheios ao fato criminoso, passam a ter sensação de injustiça, fato que pode fazer com que estupradores não sintam medo de agir e que vítimas se afugentem, não mais denunciando o criminoso. 5. Soluções possíveis Nos casos de estupro simples, e principalmente no de vulnerável, uma solução seria a prova psicológica. Tornando a palavra da vítima mais eficaz e difícil ser contestada. A avaliação de um psicólogo a serviço do Estado, com fé pública daria mais veracidade ou descartaria o crime. A prova psicológica não seria uma verdade absoluta, inquestionável, mas poderia somar ao conjunto probatório. É preciso promover campanhas e debates públicos sobre o tema, em rede nacional para conscientizar a vítima, que quanto mais rápido ela fizer a denúncia, melhor será para que o exame de corpo de delito encontre lesões. É importante ressaltar que a palavra da vítima deve valer de fato mais que a de seu agressor ou estuprador. O STJ já indicou seu entendimento de que o depoimento da vítima vale como prova, principalmente em crimes contra liberdade sexual, mas precisamos que esse entendimento seja obrigatório para todas as instâncias do judiciário e principalmente nas delegacias, onde a ausência desse entendimento forma boletins de ocorrência inúteis. 6. Conclusão Considerar o depoimento da vítima como prova não ofende a presunção de inocência, pois poderá ser contraditada pelo acusado. O entendimento do
STJ apenas corrige o desequilíbrio de forças que existe factualmente entre as partes de um crime de estupro. No atual estado de coisas, é mais fácil ao acusado inocente provar sua inocência do que à vítima de estupro provar que foi vítima. O crime de estupro sempre estará presente em nossa sociedade . É um crime silencioso, onde a vítima, tomada pelo medo e pela vergonha, retarda a denúncia, ou até mesmo, nunca denuncia. Guardando para si toda a agonia e tristeza por ter sofrido ato tão repugnante. A sociedade tem que se mobilizar e acabar com a cultura do estupro. 7.
Referências bibliográficas
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Landini, S. T. (2005). Horror, Honra e Direitos – Violência sexual contra crianças e adolescentes no século XX. Tese de Doutorado. Instituto de Sociologia. Universidade de São Paulo, São Paulo.
Ferrari, C. A. D. & Vecina, C. C. T. (Orgs). (2002) O fim do silêncio na violência familiar – Teoria e prática. São Paulo: Ágora.
https://jus.com.br/artigos/13908/o-novo-tipo-penal-estupro-de-vulneravel-e-suas-repercussoes-em-nossa-sistematica-juridica/2
http://nova-criminologia.jusbrasil.com.br/noticias/2160760/o-novo-estupro-e-a-lei-dos-crimes-hediondos-problemas-de-sobra
ELUF, Luíza Nagib. Crimes contra os costumes e assédio sexual. São Paulo: J. Brasileira, 1999. Disponível em:. Acesso em: 18 abr. 2013.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial dos crimes contra a dignidade sexual e dos crimes contra a administração Pública (arts. 213 a 359H) 10. ed. São Paulo: Saraiva. 2012.