Evolução da pena.

Análise sobre o desenvolvimento das punições e sua crise

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17/05/2017 às 22:51
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A pena sempre foi um ponto controverso nas organizações sociais. A percepção a respeito de sua função, utilidade e eficiência sempre foi alvo de embates discursivos, constantes estudos e críticas. Passados séculos desde as grandes reformas, o problema persiste, e parece se agravar...Seria correto então utilizar-se o termo "evolução"?

1. INTRODUÇÃO

Desde as primeiras comunidades formadas por seres humanos, este transgride as regras criadas pelo grupo, infligindo dano aos seus membros, ou à comunidade. Como aduz Guilherme de Souza Nucci [1], os castigos não passavam de embriões do sistema vigente, embora não tivessem o mesmo sentido técnico-jurídico que a pena hoje possui. Aplicar as sansões ao transgressor das regras que regiam o interesse do grupo era uma questão de sobrevivência deste, já que a punição, em sua visão, era uma forma de impedir ações que trouxessem risco à existência do grupo [2].

Há de se ter em mente, também, que a chamada “evolução da pena” não se deu de forma linear e humanitária. O fundamento de sua criação, os limites que lhe eram impostos e os ideais que permeavam sua aplicação foram diferentes de acordo com o tempo e local em que a pena foi imposta. A exemplo disso, Mirabete e Fabbrini ensinam que nas fases da vingança penal, “não se sucederam sistematicamente, com épocas de transição e adoção de princípios diversos, normalmente envolvidos em sentido religioso”[3]. Destarte, a divisão feita é utilizada a fim de melhor conseguirmos estudar a analisar as fases históricas da pena.

Com o desenvolvimento dos Estados, a adoção de regras e princípios foram parte essencial do desenvolvimento do sistema penal, buscando proteger os cidadãos do poder de punir que lhe é incumbindo, ao mesmo tempo que busca dar respostas satisfatórias aos delitos, buscando com a punição, em linhas gerais, diminuir a quantidade de delitos cometidos, através da intimidação que a pena causa, e também reintegrar o delinquente à sociedade, com o seu “efeito ressocializador”. No entanto, por vezes, esse poder de punir é utilizado como forma de assegurar sujeição, ignorando-se as funções da pena. O Estado torna-se, destarte, carrasco de inúmeros cidadãos por interesses escusos de alguns outros.


2. PENA COMO VINGANÇA.

Utilizando a divisão feita por Magalhães Noronha no que tange as fases da vingança, abordaremos a ordem de vingança privada, vingança divina e vingança pública.

2.1 Vingança Privada

A vingança privada tinha seu fundamento dentro da simples retribuição do mal causado pelo transgressor [4]. Ao ser violado de alguma forma, o indivíduo poderia voltar sua ira contra aquele que lhe causou o mal, bem como também poderia fazê-lo os seus parentes ou o grupo do qual fazia parte. Não havia limitação ao mal que o ofendido poderia causar ao transgressor, ou seja, agiam sem proporção ao mal causado, podendo até mesmo atingir o grupo ao qual o ofensor pertencia [5]. As penas de banimento eram aplicadas quando o ofendido fazia parte do grupo, todavia, quando o ofensor pertencia a outro grupo, aplicava-se a “vingança de sangue”, onde o grupo ao qual o membro ofendido pertencia guerreava contra o do ofensor [6].

Por tratar-se de uma forma de agressão, era comum que se desse início a círculos viciosos de agressões que acabavam com o fim de um dos grupos, assim, para evitar o extermínio dos clãs, surge uma noção primitiva do conceito de proporcionalidade com a lei de talião, com a sua máxima “olho por olho” e “dente por dente”. Embora seja um conceito arcaico, é nítida a limitação que se impõe ao castigo que alguém pode infligir a outrem quando a punição é quantificada pela lei de talião, tirando o limite das mãos do ofendido e transferindo para uma regra genérica.

2.2 Vingança Divina

Por ter a religião grande impacto na vida dos povos, surge a noção de vingança divina. A partir da ideia de que os crimes ofendiam os deuses, agora as penas que tem o fim de satisfazê-los. As penas aqui eram demasiadamente cruéis, já que eram aplicadas de acordo com a grandiosidade da divindade ofendida. Antes a mercê do ofendido, agora o criminoso se vê a mercê dos sacerdotes que representavam as figuras etéreas. O castigo é ainda mais difícil de ser mensurado, pois baseava-se no sobrenatural.

Eventos naturais como terremotos, chuvas, trovões, etc., eram considerados como sinais da fúria divina, o que levava aos sacrifícios. Aquele que foi apontado como o culpado de gerar a ira dos deuses servia de sacrifício para tentar lhes acalmar. Assim, além dos crimes cometidos, agora o indivíduo também poderia ser punido de forma cruel por algum evento natural aleatório. Não existe, pois, uma relação direta entre comportamento e castigo, basta que os escolhidos pelos deuses digam que o indivíduo é culpado para que seja punido.

O misticismo e a ignorância fundamentam as reações contra o criminoso, tornando as punições ainda mais subjetivas e incertas. Os castigos, que aqui buscam a purificação do criminoso, nunca serão suficientemente cruéis, já que não há mal que torne a dor humana satisfatória diante das divindades, e basta que ocorra um desastre natural e inesperado para que alguém seja sacrificado.

2.3 Vingança Pública

Na fase da vingança pública se vê uma preocupação com a figura do soberano e do Estado. Com as sociedades mais organizadas e desenvolvidas, a pena justifica-se pelo fato do crime ser tratado como uma ofensa ao soberano, embora por vezes demonstra-se resquícios da vingança divina, como no caso da Grécia, onde o soberano governada em nome de Zeus, sendo considerado o intérprete do mesmo [7]. Aqui a lei é a vontade do soberano, e a pena é a justa retribuição a pertubação da ordem [8].

Embora o escopo tenha mudado, bem como seu fundamento, a pena se mantém como um meio de repressão cruel e desmedido, que serve principalmente como forma de controle através da intimidação dos indivíduos daquela sociedade, no entanto, agora também é utilizada como forma de demonstrar o poder do soberano aos demais. A aplicação das penas cruéis, denunciados por Beccaria e descritos de forma detalhada por Foucault, são espetáculos para a população, já que grande parte das suas execuções eram realizadas em praças públicas, como meio de intimidar e entreter a população.


3. DIREITO ROMANO

O Direito Romano pode ser dividido em diversos períodos. Em seu começo, o chefe da família detinha poder absoluto sobre os membros, e aplicava as punições que entendia serem justas. Após, a pena ganhou um caráter religioso, sendo aplicada como vingança divina, como anteriormente abordado. E, em um terceiro período, Estado e Religião são divididos, o que retira da pena a função expiatória através do sofrimento do criminoso, utilizando-se a lei de talião e a composição para solucionar os conflitos. Por fim, na fase do império, surge a chamada crimina extraodinaria, que surgia de ordenações imperiais, decisões do Senado ou interpretação jurídica, onde a pena aplicada era individual e dependia do caso concreto [9].

Com a Lei das XII Tábuas, além da limitação da vingança privada, por determinar qual a pena a ser aplicada, os romanos igualaram os destinatários da pena. Luiz Régis Prado [10] afirma que dentre as principais características do Direito Penal romano estão:

“a) a afirmação do caráter público e social do Direito Penal;

b) o amplo desenvolvimento alcançado pela doutrina da imputabilidade, da culpabilidade e de seus excludentes;

c) o elemento subjetivo claramente diferenciado (…);

d) o desenvolvimento incompleto da teoria da tentativa;

e) a falta de formulação expressa do princípio da legalidade e a falta de proibição da analogia;

f) o reconhecimento, de modo excepcional, das causas de justificação (legítima defesa e estado de necessidade);

g) a pena entendida como uma reação pública, correspondendo ao Estado a sua aplicação;

h) a distinção entre crimina publica, delicta privata e a prrevisão dos delicta extraordinaria;

i) a consideração do concurso de agentes, diferenciando a autoria e a ope consilio – cumplicidade”.

Além disso, como ensina Bittencourt [11], os romanos conheceram a menoridade, o caso fortuito e o nexo causal. Apesar Disto, não houve uma sistematização destes institutos, ou seja, não há uma Teoria Geral que as abrangesse, deixando de defini-los, muito embora os conhecesse.


4. DIREITO GERMÂNICO

Primariamente, o Direito Germânico não era constituído de leis escritas, e suas normas eram transmitidas através do costume. Nesta primeira fase, os delitos eram um rompimento do Direito, que era entendido como uma ordem de paz. Assim, quem cometia o delito ficava a mercê do ofendido e de sua família, que exerciam o direito de vingança frente ao ofensor. Além disso, quando a ofensa era contra a comunidade, o mesmo era punido com a perda da paz, ou seja, o mesmo era excluído do grupo e ficava equiparado a animais, dando ao grupo, inclusive, o direito de o matar.

A composição também era utilizada como meio de solução dos conflitos (que no início era voluntária, e não legal). Haviam três formas principais: a primeira era através de um pagamento feito pelo ofensor ao ofendido ou à sua família como meio de reparação pecuniária; a segunda o criminoso pagava uma certa quantia, também à vítima ou à família, para comprar deles o direito de vingança; e na terceira forma o pagamento era direcionado ao chefe, ao tribunal ou ao Estado.

Após o contato com os povos romanos se intensificarem, sua influência fez com que começassem a aplicar a lei de talião, as ordálias e os duelos judiciários. Os germânicos acreditavam que nas ordálias não havia a interferência do homem, apenas de Deus, e através desta o acusado passava por provas tortuosas, submetendo-se às mais diversas formas de castigo, como colocar a mão em água fervente, caminhar em brasa, entre outras; caso suportasse o sofrimento infligido era considerado inocente e tinha sido absolvido pelas divindades.

Mesmo com a ingerência romana, não havia distinção entre dolo, culpa e caso fortuito. Desta forma, pode-se dizer que eles tinham completa objetividade ao tratar os delitos. Ignorando o elemento subjetivo, aqui importa apenas o dano causado pelo delinquente, motivo pelo qual deixa-se inclusive de punir a tentativa, já que apenas o resultado da conduta lesiva é levado em conta.


5. DIREITO CANÔNICO

Nesta fase, o cristianismo exerceu notável influência no direito penal. A igreja católica tinha enorme influência durante a Idade Média, o que levava diversos chefes de Estado da Europa a pedirem a benção do Papa para governar. Através da igreja as tradições jurídicas romanas ecoaram no ocidente e minimizou as práticas germânicas brutais [12].

Os crimes eram divididos em delicta eclesiastica, onde os tribunais eclesiásticos eram responsáveis por seu julgamento; delicta mere secularia, onde o chamado tribunal dos leigos era responsável; e delicta mixta, que poderiam ser julgados por qualquer um deles, dependia de quem tivesse conhecimento primeiro do delito. O elemento que determinava quem iria julgar era o objeto ofendido, ou seja, se o crime atentasse contra a ordem divina ou a ordem humana [13].

As penas tinham o intuito corretivo, buscando a regeneração do delinquente, no entanto, não perderam seu caráter sacro. Desta forma, buscava-se a expiação através da pena que atingia o criminoso, o que tornava-a, por vezes, demasiadamente brutal e cruel. A exemplo disto temos a Santa Inquisição, onde membros da igreja se utilizavam de tortura para obter a confissão dos acusados e transformavam punições em verdadeiros espetáculos públicos, que traziam horror e divertimento à população através da aplicação de penas cruéis.

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A atuação da igreja católica é tão notável que hoje vemos a pena de prisão como principal resposta penal aos crimes cometidos no ocidente. Através das chamadas “penitências”, mais especificamente ao ato de reclusão e isolamento que alguns membros da igreja impunham sobre si mesmos, surgiu a ideia crua de se utilizar de tais artifícios para substituir as penas que afligiam o corpo dos condenados. O objetivo, ao privar o condenado de sua liberdade, era o de possibilitar o seu arrependimento e sua reabilitação.

Apesar dos inúmeros progressos realizados durante esta fase, as penas não perderam seu caráter cruel, e não havia proporção entre o dano causado pelo delinquente e a punição ao qual este era submetido. E mesmo que se buscasse a expiação da culpa do criminoso, o caráter intimidativo da pena continuava muito presente, um dos motivos pelos quais se faziam públicas as punições.


6. PERÍODO HUMANITÁRIO

A pena de prisão, como resposta aos delitos, foi aos poucos tomando lugar das penas corporais, que visavam principalmente causar medo na população, em uma tentativa de exercer o controle da criminalidade através da prevenção geral. Assim, no século XVIII, o iluminismo influenciou os pensadores do Período Humanitário a se levantarem contra as injustas leis e a administração da justiça. A partir daqui toma-se consciência do problema das penas corporais como punição, e as dúvidas acerca da legitimidade da punição e das penas em si são melhores estruturadas.

O iluminismo utilizava-se da razão para guiar o pensamento e as ações humanas. Por ter viés jusnaturalista, acreditava-se que os seres humanos nasciam com direitos inatos, que não poderiam ser ignorados, e que por tal motivo deveria lhe ser assegurado tratamento justo e digno, não podendo ser discriminado pela lei, que deveria dar a todos tratamento igualitário.

Um dos maiores expoentes desse movimento foi Cesare Bonesana, conhecido também como Beccaria. Através de sua obra “Dos Delitos e das Penas”, Beccaria pregava que as penas deveriam ser proporcionais ao ato criminoso praticado pelo delinquente, levando e conta a capacidade lesiva do crime praticado, e que tais penas não deveriam ser cruéis e degradantes, sendo também contrário à pena de morte.

Defendia, também, que as penas não deveriam ficar a arbítrio dos juízes, mas que deveriam ser fixadas em lei, para que o indivíduo tivesse a garantia do quantum, sendo papel dos magistrados apenas a sua aplicação, a fim de diminuir arbitrariedades. Além disto cumpre ressaltar que o autor defendia que nenhum indivíduo deveria ser condenado sem que houvesse lei prévia que dissesse que os atos por ele praticados eram crime, e que não poderia ser punido sem que houvesse uma pena certa para a conduta que praticou, pensamento sintetizado através do brocardo nullum crimen nulla poena sine lege certa.

Apesar de nem todas as ideias de Beccaria serem originais, o seu livro foi essencial para diminuir as arbitrariedades e crueldades que ocorriam por toda Europa. A influência que os iluministas tiveram em seu livro, além dos contratualistas e utilitaristas, deram a ele o apoio de diversos pensadores, com Diderot e Voltaire. Além disto, o seu sucesso se deve pelo fato de suas ideias terem sido largamente apoiadas pela opinião pública, muito embora a obra tivesse sido duramente criticada pela igreja, o que o levou a omitir a data e o nome do autor na primeira publicação, vez que uma retaliação era provável.

John Howard também foi uma peça importante durante tal período. Através de sua preocupação com a reforma penitenciária. Neste ponto importante ressaltar que as condições das prisões eram ainda mais desumanas durante este período. Como sheriff, o autor teve contato direto com tais estabelecimentos, e se deu conta das condições deploráveis aos quais os detentos eram submetidos. Por não haver tratamento médico ou acomodações adequadas, as doenças facilmente se alastravam de preso para preso, e não raramente os levava à óbito. A fim de não agredir os direitos básicos dos encarcerados, propôs que todos tivessem cuidados com higiene e alimentação, que os presos provisórios e os condenados recebessem tratamento distinto, que houvesse educação moral e religiosa, que exercessem algum tipo de trabalho no cárcere e que houvesse um sistema celular mais brando [14].

A recuperação dos delinquentes também era uma preocupação para Howard, no entanto acreditava que a religião era o meio hábil para instruir e guiar os apenados, o que vai conta o direito de crença, que a nossa carta magna classifica como inviolável, vez que a não crença também entra neste rol. A influência da religião nos seus pensamentos também pode ser observada ao analisar sua ideia sobre isolamento, onde este acreditava que através deste era possível a reflexão e o arrependimento [15].

O terceiro grande pensador deste período foi Jeremy Benthan, conhecido por seu projeto da prisão ideal: o panótico. Através de tal sistema, Benthan acreditava que era possível vigiar por completo os presos, e que isso facilitaria seus objetivos em assegurar a segurança, controle e ressocialização do apenado. O autor era contrário à crueldade dos castigos, mas defendia que um “castigo moderado” poderia trazer resultados na busca pela prevenção especial e geral.

A prevenção geral, era para o pensador, o fim principal da pena, já que seu enfoque era a prevenção de delitos futuros. No entanto, em uma das ideias de Benthan, estava o criminoso racional. Ele acreditava que sempre era possível tirar a vontade de fazer o mal, pois por maior que fosse o ganho que ele obtivesse com o crime, a pena sempre poderia superá-lo. Destarte, a sua concepção baseia-se no fato de que, ao cometer um crime o indivíduo mede o ganho levando em consideração sua perda ao ser pego, o que não ocorre em grande parte das vezes, seja por desconhecimento, por ter sido movido por paixão, por acreditar que não será descoberto, dentro muitos outros.

As críticas, no entanto, em nada se comparam com o esplêndido trabalho que os três autores fizeram. O trabalho que desenvolveram contra as arbitrariedades, as penas cruéis e desumanas, as condições deploráveis dos apenados, e a preocupação com o escopo da pena trouxeram avanços incontestáveis ao Direito Penal e à humanidade.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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