No final da década de 80 participei de uma peça de teatro intitulada “O Pulo do Gato”, texto do dramaturgo gaúcho Carlos Carvalho e dirigida por Decio Antunes. A peça foi apresentada no Teatro São Pedro, sendo que vencemos o Prêmio Açorianos daquele ano. Fazia o papel de um empresário safado e, meu irmão, o de vítima de minha ganância.
Quando a polícia colabora para a realização de um suposto delito, quando instiga, alicia, incentiva, estimula, conduz, desperta, provoca o agente a praticar o delito, quando monta uma arapuca para flagrar o agente, quando possui toda a atividade sob seu total controle, fiscalização e gestão, quando o agente se assemelha a um fantoche comandado pelas mãos camufladas da polícia, quando é apenas um ator inconsciente de uma encenação ou fingimento previamente planejado e orquestrado pelo Estado, está-se diante do denominado crime impossível. É impossível porque o bem que a lei penal protege não corre qualquer risco ou ameaça.
A lei vigora para proteger determinados interesses e bens: vida, liberdade, patrimônio, honra, saúde pública e outros. Se a ação do agente não coloca em risco e, tampouco, não viola esses interesses ou bens não há crime punível. É o crime impossível.
Quando na cena teatral, a esposa enciumada dá um tapa no rosto marido que chegou em casa de madrugada embriagado e cheirando a perfume barato, não há crime, pois que se trata de encenação. Não é real. É fantasia. Nenhum interesse jurídico foi transgredido.
Quando o policial levanta de sua cama naquele dia disposto a prender um batedor de carteira e, na sequência, senta em um banco da Praça da Alfândega de Porto Alegre deixando cair, propositalmente, a seu lado e em cima do banco a carteira de dinheiro com notas de cem reais a mostra, e estando na espreita mais dois policiais disfarçados prontos para realizar a prisão em flagrante e, na sequência, alguém furtivamente se apodera da carteira e é preso, não há crime. Foi flagrante preparado. Encenação. Teatro. Instigação. Quem planejou, coordenou e agiu foi própria polícia. Exageradamente poderia ser dito que o policial furtou sua própria carteira. O otário preso apenas caiu no conto do flagrante instigado, preparado, esperado. Participou como ator. Era uma encenação. Estava ausente um elemento fundamental de realidade delituosa: a ameaça ao patrimônio de terceiro.