O risco da ambiguidade do artigo 62 da Lei n.º 8.666/93 para advogados públicos inexperientes.

Pontos controvertidos da norma acerca da obrigatoriedade de elaborar contrato, riscos para o assessor jurídico municipal sem experiência.

18/07/2017 às 23:33
Leia nesta página:

Abordagem simples sobre a complexidade e confusa redação do artigo 62 da Lei de Licitações e suas implicações em caso de inobservância.

A cada quatro anos em todos os mais de cinco mil municípios do país, muitos jovens e inexperientes advogados por alguma ligação pessoal/familiar ou indicação política, são convidados pela primeira vez, a atuarem como procuradores, assessores jurídicos e afins, exercendo funções comissionadas, os chamados cargos de livre nomeação e exoneração.

No primeiro contato com a rotina quase sempre caótica das milhares de prefeituras brasileiras, comumente são incumbidos de elaborarem uma infinidade de pareceres jurídicos para os mais diversos assuntos de interesse da administração municipal. Usualmente, com certa frequência são consultados em processos administrativos que versam acerca da inexigibilidade ou dispensa de licitação, cujas condições e requisitos encontram-se elencados basicamente nos artigos 24 e 25 da Lei de Licitações.

O impulso muitas vezes motivado por um clima de estresse, precariedade, baixos salários e muitas cobranças, é elaborar um parecer jurídico célere, superficial e despretensioso buscando uma “pseudo produtividade” ao melhor estilo “copy-cola” e “não tô nem aí”. Nesse momento sendo extremamente comum observar recorrentes omissões quanto à elaboração do competente contrato, por se entender que em vista a limitação de prazo e valor; não é necessário a confecção de uma minuta contratual, trata-se dum pensamento temerário.

Enumera o teor do artigo 62 da Lei de Licitações, in verbis:

Art. 62.  O instrumento de contrato é obrigatório nos casos de concorrência e de tomada de preços, bem como nas dispensas e inexigibilidades cujos preços estejam compreendidos nos limites destas duas modalidades de licitação, e facultativo nos demais em que a Administração puder substituí-lo por outros instrumentos hábeis, tais como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço. (Grifo nosso).

A redação abrangente e ambígua do texto, permite várias interpretações, há aqueles profissionais que entendem que mesmo em casos da dispensa ou inexigibilidade não há necessidade em se firmar qualquer contrato, mas os outros instrumentos hábeis mencionados no texto legal, quais sejam: carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço.

Ledo engano, conforme mais adiante explico. Entretanto, passemos primeiro à analise do conceito de cada um desses “instrumentos hábeis”.

Carta-Contrato: documento que formaliza e ratifica acordo entre duas ou mais partes (pessoas, empresas, instituições, governos etc.) com o propósito de atribuir, contrair, modificar, transferir, preservar ou revogar direitos e/ou obrigações a título probatório ou aquisitivo de determinados direitos. Já o contrato é um vínculo jurídico entre dois ou mais sujeitos de direito correspondido pela vontade, da responsabilidade do ato firmado, resguardado pela segurança jurídica em seu equilíbrio social, ou seja, é um negócio jurídico bilateral ou plurilateral. A grosso modo podemos definir que a carta-contrato é como uma declaração resumida do contrato suas regras e condições independente de negociação, a mais grosso modo ainda, quase um contrato de adesão. Já o contrato em si, se trata de uma relação contratual bilateral e formalizada de forma específica e restrita às partes contratantes, a grosso modo, mais pessoal e afeto à realidade intrínseca tratada no determinado processo administrativo.

Nota de empenho de despesa: um documento que indica o nome do credor, a especificação e a importância da despesa, bem como a dedução desta do saldo da dotação própria e representa uma obrigatoriedade do Estado a ser implementada (art. 61 da Lei n.º 4.320/64).

Autorização de compra: documento público sem forma pré-definida que compete ao ordenador de despesa, que poderá delegar esta autorização”. (IN/DTN nº 10/91)

Ordem de execução de serviço: instrumento pelo qual se determina ou regula procedimentos para a execução de serviços, fixa comandos de trabalho, imposições de cunho administrativo específicas e relativas a pessoal.

Como se vê, os instrumentos hábeis diferem bastante de um contrato formal específico e personalizado que garanta maior fidedignidade à pretensão pública e sua regularidade jurídica.

A quase totalidade de municípios brasileiros, à exceção das capitais, estão no interior, e por assim ser, sobretudo, naqueles de pequeno porte, as pessoas se conhecem mais que nas grandes cidades, sendo corriqueiro e natural “a cultura da palavra dita” sobressair à “cultura da palavra escrita”, justo aí, é que mora o grande perigo para o advogado parecerista iniciante.

Servidores concursados/efetivos, em regra antigos e muitas das vezes estagnados em termos de atuação técnica, impõem ou argumentam a desnecessidade de contratos em várias situações inapropriadas, alegando aquele popular “aqui sempre se fez assim”.

Caso mais corriqueiro é do aluguel de imóveis, comumente alugados para fins de assistência social; muitas vezes o período de locação e valores cumulados não demanda empenho superior ao teto de dispensa previsto no inciso II do artigo 24 da Lei de Licitações. E esse fato perante gestores públicos passa de forma deveras tão deturpada e equivocada que contamina a todo o processo desde o princípio, chegando a incluir o parecerista mais desatento e inexperiente, que acaba se esquecendo de elaborar ou exigir o contrato de aluguel necessário, simplesmente pelo mesmo não constar no termo de referência/projeto básico que guarnece o processo.

Por quê obrigatório? Porque ele se presta a estabelecer condições jurídicas para a administração (locatária) e o particular (locador) sobre a utilização de um bem único e exclusivo: imóvel, que decerto possui características únicas como localização, acabamento, espaço. Esse tipo de situação, não comporta a utilização de meros “instrumentos hábeis”, necessita ser estudado, individualizado, e relatado no processo administrativo para se garantir higidez e correção fático-jurídica incorrosível ao controle externo e interno posterior, mesmo anos e anos depois, dada a predominância da tese de imprescritibilidade de demandas reparatórias de possíveis danos ao erário público.

Até mesmo os dados e informações pessoais do contratado (locador), devem e precisam ser averiguados para se checar se ele não possui condenação judicial ou deve impostos, taxas e outros débitos para a Prefeitura.

Parece exagero? Decerto que não, com o passar dos últimos anos, a fiscalização externa de atos administrativos por órgãos como o PF, TCE, TCU, e MP; alcançou grandes e enormes avanços.

Com a ampliação e dinamização da TI – Tecnologia da Informação, expansão da internet e das redes sociais; as técnicas de cruzamento de dados têm mostrado resultados surpreendentes. A Receita Federal compartilha sua base de dados com a Previdência Social. A força tarefa da Lava Jato cruzou milhões de terabits em informações e chegou a resultados históricos no combate à corrupção, nunca antes se prendeu tantos políticos e se recuperou tanto dinheiro de corrupção.

Aí vem a pergunta: Assessor Jurídico/Procurador responde por atos de gestão? A melhor resposta que posso imaginar é “depende”. Depende do tipo de parecer jurídico emitido, tipo de consulta que é formulada e respondida pelo parecer e sua importância para o desembolso da despesa, tamanho do gasto, natureza jurídica específica do cargo jurídico exercido, por aí vai...

O TCU bem ilustra a matéria em âmbito nacional, in verbis:

Acórdão n º 512/2003 – Plenário Trechos do Voto: No tocante à questão da responsabilização do Procurador-Geral, esclareço que a hipótese não se trata da mera emissão de parecer jurídico isento, em consonância com a legislação e a jurisprudência, consubstanciando a opinião jurídica desinteressada do prolator, mas de deliberada ação tendente a justificar a prática de ato causador de dano ao Erário. O critério que define a responsabilidade do advogado público ou procurador não diz com a atividade contenciosa ou consultiva no órgão. No Mandado de Segurança 24.073, a Suprema Corte deliberou no sentido de excluir os advogados da Petrobras de processo administrativo, no âmbito do TCU, em que foram responsabilizados, solidariamente com o administrador, pela contratação de consultoria internacional, em decorrência da emissão de parecer, respaldando a dispensa de licitação para a referida avença.

Acórdão n.º 1337/2011-Plenário Trecho do Voto: A análise e aprovação, pela assessoria jurídica, de editais, minutas de contratos e instrumentos congêneres são atividades obrigatórias, previstas no parágrafo único do art. 38 da Lei 8.666, de 1993. Não pode o consultor jurídico querer se esquivar dessa responsabilidade. O papel da assessoria jurídica não é meramente opinativo. O entendimento do TCU acerca da matéria está contido no voto que fundamentou o Acórdão 147/2006 - Plenário, in verbis: “(...) o legislador atribuiu relevante função à assessoria jurídica, qual seja, realizar um controle prévio da licitude dos procedimentos licitatórios e dos documentos mencionados no parágrafo único do art. 38 da Lei de Licitações e Contratos.”

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Sobre o a responsabilidade de autores de parecer jurídico, a briosa Maria Sylvia Zanella Di Pietro assinala o seguinte, in verbis:

“Normalmente se afirma que os pareceres jurídicos são de natureza opinativa, não obrigando a autoridade administrativa a acatar as suas conclusões; se ela discordar, poderá adotar decisão diversa, desde que adequadamente fundamentada. No entanto, normalmente, o que ocorre é que as autoridades, quando solicitam o parecer, decidem com base nele, já que proferido por profissional da área jurídica, que se presume habilitado para o exercício desse mister. Nesses casos, o parecer, ainda que não mencionado expressamente no ato decisório, constitui a sua própria motivação, constante do processo de licitação; ele integra o ato administrativo, como requisito formal hoje considerado essencial à validade do ato pela doutrina mais autorizada. (...) O mesmo se diga com relação às manifestações dos órgãos técnicos, que servem de base à decisão. Sabe-se que a motivação vincula a autoridade administrativa, no sentido de que, se os motivos de fato e de direito dela constantes forem inexistentes ou falsos, o ato será ilegal. (...) Em assunto tão delicado e tão complexo como a licitação e o contrato (principalmente diante de uma lei nova, não tão bem elaborada e sistematizada como seria desejável), a responsabilidade só pode ocorrer em casos de má-fé, dolo, culpa grave, erro grosseiro, por parte do advogado”. (‘Temas polêmicos sobre licitações e contratos, p. 117/118, 2ª ed., 1995, Malheiros’).

O notório Marçal Justem Filho sustenta que a manifestação jurídica acerca da validade do edital e dos instrumentos de contratação associa o emitente do parecer ao autor dos atos, resultando na responsabilidade pessoal solidária da assessoria jurídica pelo que foi praticado. Ressalta ainda o seguinte, in verbis:

“Há dever de ofício de manifestar-se pela nulidade, quando os atos contenham defeitos. Não é possível os integrantes da assessoria jurídica pretenderem escapar aos efeitos da responsabilização pessoal quando tiverem atuado defeituosamente no cumprimento de seus deveres: se havia defeito jurídico, tinham o dever de apontá-lo. A afirmativa se mantém inclusive em face de questões duvidosas ou controvertidas. Havendo discordância doutrinária ou jurisprudencial acerca de certos temas, a assessoria jurídica tem o dever de consignar essas variações, para possibilitar às autoridades executivas pleno conhecimento dos riscos de determinadas decisões. Mas se há duas teses jurídicas igualmente defensáveis, a opção por uma delas não pode acarretar punição.” (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11ª ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 379.)

Já ao seu turno a legislação é taxativa, dispõe a Lei nº 8.906/1994, in verbis:

Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça. (...)

§ 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei.

Art. 32. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.

Parágrafo único. Em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria.

Por seu turno, o artigo 38 da Lei n.º 8.666/1993 determina que o procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente.

CONCLUSÃO

A percepção do artigo 62 da Lei n.º 8.666/93, à luz do escólio jurisprudencial, doutrinário e tendência de maior responsabilização dos agentes públicos, sobretudo, dos advogados públicos. Nos permite concluir com tranquilidade que a atividade de advogado público está intrinsecamente visada pelos agentes de controle externo do Poderes Legislativo, Executivo e quando não, do próprio Poder Judiciário.

Nesse quadro de “verdadeira caça às bruxas” em que normalmente o advogado é visto preconceituosamente como aquela figura “malandra”, “encrenqueira”, “corruptível” e “passional”, aliado ao quadro de regra da imprescritibilidade de pretensões do erário público acerca de possíveis danos. É altamente recomendável ao advogado público que seja o mais formal possível no exercício de seu mister, e acerca da análise e execução do artigo 62 da Lei de Licitações, margeie-se sempre na formalidade e produza contratos detalhados e específicos que o resguardem de sérios problemas futuros, posto que o agente de controle externo, alegando cumprimento da norma não terá um mínimo de pena ou consideração com a sua pessoa, mesmo que a Prefeitura esteja caindo aos pedaços e os agentes públicos que o cercam sejam de crasso nível técnico e intelectual. Basta lembrar-se da máxima em advocacia pública: “Passou pelo jurídico...”

Sobre o autor
Rodrigo Reis Ribeiro

Advogado, sócio-gerente da firma de advocacia Costa e Reis Advogados e Associados com sede em Porto Velho-RO, professor, empresário, escritor.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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