Réquiem para José Cerezo Mir (1932-2017) por Luiz Regis Prado

De autoria do Ínclito Professor Luiz Regis Prado, discípulo e amigo querido.

Leia nesta página:

Homenagem prestada pelo Professor Luiz Regis Prado ao Professor José Cerezo Mir.

José Cerezo Mir, mestre exemplar da Ciência do Direito Penal e pessoa humana inolvidável

É com profundo pesar que se noticia o passamento, no último 19 de julho, de modo inesperado, em Zaragoza (Espanha), do professor José Cerezo Mir, catedrático de Direito Penal, autor de inúmeras e importantíssimas obras jurídicas, superiormente reconhecido na Europa e nas Américas.

Sua influência na ciência do Direito Penal vai além do que as simples palavras contidas neste texto podem representar.

Revela-se em marcante, inovadora e sólida contribuição científica, caracterizada pela qualidade e profundidade de suas lições, pela coerência e clareza de suas ideias e pela crítica fundamentada no contexto da seara jurídico penal.

O subscritor deste teve a oportunidade única de desenvolver estudos de pós-doutorado sob sua direção, na Universidade de Zaragoza, e desde então seus laços acadêmicos e pessoais se desenvolveram e se solidificaram em fraterna amizade.

Ainda que o autor seja bastante conhecido no mundo dos juristas afeitos ao Direito Penal e a qualidade de sua publicação dispense comentários, faz-se necessário, nos lindes desta homenagem, dizer algo sobre seu percorrer universitário, sua criação intelectual, e, finalmente, em uma palavra, o homem feito autor.

Numa época particularmente difícil, tanto do ponto de vista político quanto social e econômico, a trajetória universitária e científica do professor Cerezo Mir é realmente louvável. Sua vocação para o ensino foi precocemente revelada em 1954, logo após concluir a graduação em Direito na Universidade de Valladolid, quando nesta acabou por assumir o cargo de professor auxiliar de Direito Penal, vinculado à Cátedra de Juan Del Rosal.

Todavia, o momento decisivo de sua formação científica encontra-se na década de 1960, após doutorar-se em Direito, com distinção máxima, na já citada universidade (1957), e realizar longa e fecunda estada de estudo e pesquisa na Universidade de Bonn (1956-1959, 1960), sob a orientação direta de Hans Welzel, sem dúvida o mais importante penalista do século XX.

Durante essa estada na Alemanha, frequentou assiduamente os seminários dirigidos por Welzel, que contavam ademais com a presença de grandes penalistas e filósofos, como A. Kaufmann, G. Stratenweth, H-L. Schreiber, F. Loos, G. Geilen, H-J. Hirsch, entre outros. Nesse ambiente propício ao estudo e à reflexão intelectual, aprofundou ao máximo seus conhecimentos científico-penais e de filosofia (cf. DÍEZ RIPOLLÉS, J. L.; ROMEO CASABONA, C.M.; GRACIA MARTÍN, L.; HIGUERA GUIMERÁ, J. F. Semblanza acadêmica y científica de Don José Cerezo Mir. In: La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo siglo. Libro Homenaje al Profesor Doctor Don José Cerezo Mir. Madrid: Tecnos, 2002 p. xv e ss.).

Ainda nesse período, na Alemanha, casou-se com a acadêmica de medicina, de origem armênia, Bella Bagdassarian, com quem teve três filhas. O falecimento de sua esposa, em 2011, constitui-se em uma perda da qual jamais se recuperou totalmente.

Logo após seu retorno, por assim dizer, definitivo à Espanha, e superadas as ingentes dificuldades enfrentadas nos primeiros anos, ocorreu um fato de extrema relevância: o estreitamento de seus laços científicos e pessoais com Antón Oneca – discípulo de Luís Jiménez de Asúa e uma das figuras mais proeminentes do Direito Penal da época –, o qual o convidou a atuar inicialmente como professor auxiliar, depois professor adjunto, em Madri. O fértil convívio pessoal e acadêmico com Antón Oneca terminou por marcar sua futura orientação científica, especialmente no campo da teoria da pena.

Passados alguns anos nessa condição docente, e sem a necessária estabilidade, ascendeu, por fim, à titularidade de Direito Penal na Universidade de Zaragoza (1970), onde permaneceu por longos e frutíferos anos.

A partir desse marco cronológico, sua carreira universitária foi alcançando a plenitude, com o traslado a Madri e a assunção da Cátedra de Direito Penal na Universidade Nacional de Educação à Distância.

Não obstante esse desfecho foi na Universidade de Zaragoza, em terras históricas de Aragão, que, durante 26 anos, forjou e espargiu seu pensamento científico, dando lugar à criação de verdadeira Escola, responsável pela formação de uma seleta plêiade de brilhantes estudiosos da ciência do Direito Penal, tanto na Espanha, como na América Latina. Assim, entre seus discípulos, diretos ou indiretos – discípulos de seus discípulos -, podem ser citados, a guisa de exemplo, Carlos Maria Romeo Casabona, Juan-Felipe Higuera Guimerá, José Luís Díez Ripollés, Luís Gracia Martín, Miguel Ángel Boldova Pasamar, Maria Cármen Alatuey Dobón, Alicia Gil Gil, Manuel Melendo Pardos, Juan Manuel Lácruz Lopez, na Espanha; Cárcamo Olmos e Soto Piñeiro, no Chile; Silva Forné, no Uruguai; e Luiz Regis Prado, no Brasil.

Nesse ambiente acadêmico – repleto de ideias e de ideais, – e sendo já detentor de invejável acervo de artigos científicos e traduções, publicados na Espanha e no exterior –, que Cerezo Mir se pôs com total dedicação a escrever aquela que seria a mais profunda e completa publicação científica do país, em sua categoria, dos últimos anos, intitulada singelamente Curso de Derecho Penal español, na verdade, um magnífico Tratado sobre a Parte Geral do Direito Penal. Por sem dúvida alguma a mais importante e completa obra geral de Direito Penal publicada na Espanha, desde o Tratado de Luís Jimenez de Asúa.

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A seu propósito, nada mais eloquente que as autorizadas e insuspeitas palavras do eminente jurista Enrique Gimbernat Ordeig: “Por tudo isso, a obra de Cerezo não tem correspondente entre os manuais de língua espanhola; porque tão-somente em seu ‘Curso’ pode ser encontrada a autêntica situação atual da Parte Geral, e a sua evolução até o presente, documentando por que as coisas ocorreram daquela forma, e por que agora são do modo que são, sem que se oculte nenhum problema e que se escamoteie nenhuma solução. A ‘Parte Geral’ de Cerezo [...] é o coroamento de uma carreira universitária caracterizada pela coerência e rigor científicos, e à qual devemos um elevado número de publicações imprescindíveis e sua continuação em uma grande escola de professores de Direito Penal” (Revista de Derecho Penal y Criminologia. Madrid: UNED, 3, 1999, p. 393-399 – sem grifos no original).

A concepção jurídico-penal de Cerezo Mir é pautada, no plano ideológico, pela defesa dos princípios que informam o Direito Penal garantista, liberal e democrático, com ênfase no respeito à liberdade e à dignidade humanas, e, no plano dogmático, pela adoção da metodologia finalista, de matiz onto-axiológico, que arranca da concepção do homem como ser livre e responsável.

Para além da Europa e das Américas de língua espanhola, o autor e sua obra exerceram também apreciável influência no Brasil, mormente a partir do ano 1990. Neste país, esteve por inúmeras vezes proferindo conferências em congressos, seminários e no programa de pós-graduação stricto sensu em Direito Penal da Universidade Estadual de Maringá.

Cerezo Mir publicou inúmeros artigos – vertidos ao português – em revistas jurídicas especializadas, sendo, na atualidade, largamente reconhecido e citado pela melhor doutrina nacional.

Em 2007, foi publicada pela Editora Revista dos Tribunais, sob minha coordenação, a coletânea "Direito Penal Contemporâneo". Estudos em homenagem ao Professor José Cerezo Mir.

 A lembrança da pessoa humana, alegre e aberta ao mundo, sensível, e grandemente comprometida com seus ideais, bem como todo seu notável contributo à ciência do Direito Penal devem remanescer vivas ad eternum na obra e no pensamento de seus discípulos, amigos e admiradores, seja aqui, seja alhures.

Esta é a minha singela homenagem ao amigo, ao gentleman, ao mestre.

Nam posteris!

Em, julho de 2017.

Professor Luiz Regis Prado

Titular de Direito Penal

Sobre os autores
Diego Prezzi Santos

Doutor em Direito pela Faculdade Autônoma de São Paulo (FADISP). Mestre em Direito pelo programa de mestrado em ciências Jurídicas do Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Pós-graduado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor do programa de pós-graduação na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor da Fundação Escola do Ministério Público (FEMPAR). Professor na Faculdade Arhur Thomas (FAAT). Professor no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Professor no Instituto Catuaí de Ensino Superior (ICES). Parecerista e avaliador em revistas científicas. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado com experiência em direito penal e processo penal.

Luiz Regis Prado

Professor Titular de Direito Penal . Universidade Estadual de Maringá (UEM); Professor Titular do Programa de Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Pós-doutorado em Direito Penal. Universidade de Zaragoza (Espanha); Pós-doutorado em Direito Penal Ambiental Comparado. Universidade Robert Schuman de Strasbourg (França). Doutor e Mestre em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor honoris causa em Direito. Universidade Nacional de San Agustín (Peru). Professor visitante do Instituto de Direito Comparado e Penal da Universidade de Firenze (Itália); da Universidade Robert Schuman de Strasbourg (França); da Universidade de Zaragoza (Espanha), da Universidade Nacional de Educação à Distância; da Universidade de Castilla-la-Mancha (Espanha). Consultor jurídico da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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