Usucapião de bens públicos sujeitos a regime de aforamento

07/08/2017 às 19:04
Leia nesta página:

O artigo discute, com base na jurisprudência e no ordenamento jurídico pátrios, a possibilidade de usucapião de bens da união sujeitos ao regime de aforamento.

I – USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS

A Constituição Federal estabelece a imprescritibilidade sobre bens integrantes do domínio público (artigo 183, parágrafo terceiro, e ainda artigo 191, parágrafo único), repetindo o que já se dizia na Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal, na linha do artigo 66 do Código Civil de 1916.

Do entendimento jurisprudencial se tem: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”.

Bens dominicais são aqueles bens que pertencem à União, ao Estado, ao Distrito Federal ou ao Município,  não sujeitos a usucapião, que somente podem ser alienados na forma e nos casos especificados em lei. Como tal, os bens de uso dominicais são aqueles que são utilizados pelo Estado com fim econômico.

Sabe-se que usucapião é modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais, pela posse prolongada da coisa, acrescida de requisitos legais.

Na lição de Clóvis Beviláqua, para ocorrer usucapião, é necessário o desembaraço de bem(RTJ 69/530).

Vale transcrever a lição de Orozimbo Nonato, exposta no RE 4.369: “Estes se puseram fora do comércio. É exato que o peremptório do enunciado legal enerva-se com a possibilidade de alienação de tais bens. Mas, a imprescritibilidade afirmada não se liga necessariamente à incomercialidade, senão à natureza desses bens e à impossibilidade, desenganadamente, proclamada, de sua saída do patrimônio público fora dos casos admitidos em lei. E a usucapião não se encontra entre esses casos. Daí dizer excelentemente Clóvis Beviláqua sucumbir o prestigio dos que proclamam a tese contrária à imponência irresistível do direito expresso. E a certa verdade é que, falecido do apoio do texto, vão os eminentes propugnadores da tese, a que não adiro, rebuscar argumentos de ordem histórica e sociológica, tecendo-se o panegírico da destemidez  dos “desbravadores e até da solércia dos “grileiros”.  Impossível negar homenagem aos primeiros e, de algum modo, reconhecer, de certo ângulo visual, alguma benemerência a astúcia dos particulares contra a ação estreita do Poder.”.

Nessa linha de pensar tem-se o ensinamento de Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, volume IV, 2ª edição, 1974, pág. 133), dentre outros, e ainda o decidido no RE nº 84.063 – RTJ 81/191, RE 86.234, RTJ 83/575.

Ora, os bens públicos são, em regra, imprescritíveis, impenhoráveis e não sujeitos à oneração.

A doutrina, do que se lê do ensinamento de Hely Lopes Meirelles (Direito Municipal Brasileiro, 3ª edição, pág. 393), considera que a  imprescritibilidade dos bens públicos decorre como consequência lógica da sua inalienabilidade originária. Aliás, os Decretos federais nº 19.924, 22.785 e ainda 710, respectivamente de 27 de abril de 1931, 31 de maio de 1933 e 17 de setembro de 1938, reiteraram a imprescritibilidade de bens públicos, seja qual for a sua natureza.

Data vênia, não constitui óbice a uma ação de usucapião o disposto no artigo 12, parágrafo segundo, do Decreto-lei nº 710, de 17 de setembro de 1938, eis que revogado tal diploma pelo Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, que veio regulamentar a matéria.

Discute-se com relação a usucapião especial rural de bens públicos.

Essa modalidade de usucapião vem da Constituição de 1934 que recepcionou o instituto do usucapião especial rural ou pro labore, seguida das Constituições de 1937 e 1946, exceção da Constituição de 1967 e ainda da Emenda Constitucional nº 1, de 1969.

Sua origem decorreu da necessidade de fixar o homem no campo para resguardar a terra, tornando-a produtiva, não bastando somente a posse. A Constituição de 1946 admitia a modalidade de usucapião especial rural em seu artigo 196, § 3º. Nessa linha, o Estatuto da Terra, Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, regulamentando esta modalidade em seu artigo 98, que previa a usucapião especial para fins de cultivação da terra e nela estabelecendo moradia.

Em 1981 surgiu a Lei nº 6.969, objetivando tratar e regulamentar a aquisição por usucapião especial rural. O artigo 1º da referida Lei prevê que, para usucapir um imóvel, deverá o usucapiente possuir o imóvel rural por cinco anos ininterruptos, não excedendo a 25 hectares, nem ter propriedade de imóvel rural ou urbano e tornar a terra produtiva e nela fixar morada, independente de justo título e boa fé. No artigo 2º incorporou as terras devolutas, que são terras públicas, com relação a possibilidade de serem usucapidas, áreas que integram o patrimônio de pessoas federativas que não são utilizadas para quaisquer finalidades públicas específicas. A teor do artigo 3º da Lei nº 6.969/81, a usucapião especial não ocorrerá nas áreas indispensáveis à segurança nacional, nas terras habitadas por silvícolas, nem nas áreas de interesse ecológico, consideradas como tais as reservas biológicas ou florestais e os parques nacionais, estaduais ou municipais, assim declarados pelo Poder Executivo, assegurada aos atuais ocupantes a preferência para assentamento em outras regiões, pelo órgão competente.

A Constituição de 1988 não recepcionou tal hipótese, vedando a possibilidade de usucapião de imóveis públicos, item esse transcrito no artigo 1.239 do Código Civil do  que já está inscrito no artigo 191 da Constituição, que aumentou o tamanho do imóvel rural para ser objeto de usucapião para 50 hectares. Mister que se lembre que, ainda que se trate de terras devolutas, não perdem a natureza de bem público, não sendo passível de usucapião (Recurso Especial 391345 – DF, Relator Ministro Barros Monteiro).


II – O AFORAMENTO

Vem a discussão que aqui se lança com relação a possibilidade de usucapião com relação a bens públicos sujeitos a regime de aforamento.

Antes necessário fazer menção a enfiteuse ou aforamento, instituto civil que permite ao proprietário atribuir a outrem o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto, uma pensão ou foro, anual, certo e invariável. Consiste, pois, na transferência do domínio útil do imóvel público para posse, uso e gozo perpétuo da pessoa que o utilizará daqui por diante. Será então o aforamento ou enfiteuse o direito real de posse,  uso e gozo pleno da coisa alheia que o titular(foreiro ou enfiteuta) pode alienar, e transmitir hereditariamente, porém, com a obrigação de pagar perpetuamente uma pensão anual(foro) ao senhorio direto, como ainda ensinou Clóvis Beviláqua(Código Civil Comentado, 1938, III/237). Há, pois, uma dicotomia entre o domínio útil e o domínio direto. O domínio útil consiste no direito de usufruir o imóvel do modo mais completo possível e de transmiti-lo a outrem, por ato entre vivos ou de última vontade(testamento). Por sua vez, o domínio direto é ainda chamado de domínio eminente. É o direito à substância mesma do imóvel, sem as suas utilidades.

Vejamos o que há na esfera da União Federal.

Em bem lançada síntese, na Remessa ex officio em Ação Civil nº 305.628, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Paulo Machado Cordeiro, em julgamento de 15 de junho de 2004, lembrou que no aprazamento foreiro, em regime de enfiteuse, há que se distinguir o domínio útil do senhorio direto. Na ocupação, não se encontra essa distinção porque o domínio é exclusivo da União que não transmite ao ocupante qualquer direito de propriedade, nem lhe dá direito o seu aforamento. A constituição de aforamento depende de autorização presidencial ou legal, para a ocupação basta sua inscrição no SPU e o pagamento das taxas de ocupação. No aforamento enfitêutico, o bem aprazado passa ao foreiro, que dele usa, goza e dispõe; na ocupação, os direitos do ocupante se resumem no seu uso e gozo e disponibilidade das benfeitoras. Aquele é perpétuo e definitivo, tomando seu conceito no direito civil não podendo ser retirado pelo senhorio direto; este é temporário e provisório, sendo resolúvel a qualquer tempo pelo proprietário do bem, o poder público.

O aforamento enfitêutico e a ocupação são formas completamente distintas de utilização de imóveis da União.

No caso da ocupação das terras públicas, o Decreto-lei nº 9.760/46, nos artigos 127 a 133, regula essas ocupações de terrenos da União, estabelecendo, em síntese:

1.Os ocupantes de terrenos da União, sem título, são inscritos, de ofício, pelo SPU e pagarão uma taxa de ocupação;

2.Em caso de inadimplência do ocupante por mais de dois anos, o SPU promoverá a cobrança executiva e providenciará a desocupação do imóvel;

3.Permite-se a transferência onerosa sobre as benfeitorias edificadas no terreno ocupado, mediante o pagamento de um laudêmio  sobre o valor do terreno e das benfeitorias, após a aquiescência do SPU;

4.Se a União Federal necessitar do mencionado imóvel, o SPU poderá negar a licença para a transferência;

5.A inscrição do ocupante no SPU e pagamento da taxa de ocupação anual não implicam no reconhecimento pela União de qualquer direito de propriedade do ocupante sobre o terreno ou ao seu aforamento, salvo nas hipóteses de tratar-se de ocupante inscrito até o ano de 1940, quites com as taxas de ocupação;

6.A União Federal se reserva o direito de, a qualquer tempo, necessitando do imóvel imitir-se em sua posse, indenizando as benfeitorias se a ocupação houver sido feita de boa-fé.

A publicação da lei 13.240, dedicada a trâmites relacionados a imóveis da União, alterou e definiu pontos como a cobrança de laudêmio e taxa de ocupação, diminuindo significativamente os encargos.

A novidade é um alívio para os bolsos de quem vai comprar ou vender imóveis nos chamados terrenos de marinha, aqueles considerados como pertencentes à União por ocupar, na costa marítima, uma área que leva em consideração padrões determinados em 1831.

Enquanto isso, a taxa de ocupação, que é cobrada anualmente e antes podia chegar a 5% do valor do terreno com a área construída, agora foi fixada em 2%, excluindo as benfeitorias.

Veja-se a alteração da Lei enfocada:

Art. 27. O Decreto-Lei n.  2.398, de 21 de dezembro de 1987, passa a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 1º A taxa de ocupação de terrenos da União será de 2% (dois por cento) do valor do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias, anualmente atualizado pela Secretaria do Patrimônio da União.

I - (revogado);

II - (revogado).

...................................................................................................................." (NR)

"Art. 3º A transferência onerosa, entre vivos, do domínio útil e da inscrição de ocupação de terreno da União ou cessão de direito a eles relativos dependerá do prévio recolhimento do laudêmio, em quantia correspondente a 5% (cinco por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias.

............................................................................................................

§ 5º A não observância do prazo estipulado no § 4º sujeitará o adquirente à multa de 0,05% (cinco centésimos por cento), por mês ou fração, sobre o valor do terreno, excluídas as benfeitorias.

.........................................................................................................." (NR)

"Art. 6º-A. São dispensados de lançamento e cobrança as taxas de ocupação, os foros e os laudêmios referentes aos terrenos de marinha e seus acrescidos inscritos em regime de ocupação, quando localizados em ilhas oceânicas ou costeiras que contenham sede de Município, desde a data da publicação da Emenda Constitucional nº 46, de 5 de maio de 2005, até a conclusão do processo de demarcação, sem cobrança retroativa por ocasião da conclusão dos procedimentos de demarcação.".

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

III – O USUCAPIÃO DE DOMÍNIO ÚTIL DO IMÓVEL SUJEITO A AFORAMENTO

Bem alertou o Desembargador Federal Ridalvo Costa, no julgamento da Apelação Civil 109.723/PE, que apenas o domínio útil de terreno de marinha, utilizado em razão de aforamento firmado pela União Federal, poderá ser objeto de usucapião.

Disse bem o Ministro Barros Monteiro, no julgamento do Recurso Especial 154.123 – PE, que é admissível usucapião quando o imóvel já era foreiro e a constituição da enfiteuse em favor do usucapiente se faz contra o particular até então enfiteuta e não contra a pessoa jurídica de direito público que continua na mesma situação em que se achava, ou seja, como nua proprietária. Tal decisão foi tomada na linha de vários precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

A matéria foi analisada quando dos Recursos Especiais 10.986 – RS, Relator Ministro Eduardo Ribeiro, e 20.791 – SP, Relator Ministro Waldemar Zveiter. Do primeiro deles, extrai-se a seguinte ementa: “Possível o usucapião relativamente ao chamado domínio útil, quando a pessoa jurídica de direito público tem apenas a nua propriedade e a prescrição aquisitiva refere-se ao chamado domínio útil do que é titular um particular”. Aliás, no julgamento do Recurso Especial 262.071/RS, Relator Ministro Aldir Passarinho Júnior, DJ de 6 de novembro de 2006, concluiu o Superior Tribunal de Justiça que é possível a usucapião do domínio útil de imóvel reconhecidamente foreiro, ainda que situado em área de fronteira.

Na matéria foi notável a lição do Ministro José Carlos Moreira Alves, quando do julgamento do RE 82.106 – PR, m.v. em 1º de julho de 1977, do qual se extrai o que segue:

1.A enfiteuse se adquire por contrato ou por testamento. Também por usucapião, completam os doutrinadores: Orlando Gomes(Direitos Reais, volume II, páginas 421 a 423, edição 1969); Clóvis Beviláqua(Comentários ao Código Civil, volume III, páginas 185 a 186, edição de 1958); Washington Barros Monteiro(Curso de Direito Civil, volume III, pág. 261, 5ª edição); Serpa Lopes(Tratado de Registros Públicos, volume II, pág. 267, 4ª edição);

2.São de Windscheid (Lebrbuch des Pandkektenrechts erter Band, 8ª edição, § 221, páginas 995 a 996, 1900), as afirmações  de que “na verdade o usucapião da enfiteuse não está reconhecido expressamente nas fontes; mas não se compreende porque, no sentido do direito romano, deva ele ser inadmitido em se tratando de enfiteuse, quando é ele, de um lado, admitido no tocante à propriedade, e, de outro, no que diz respeito às servidões”;

3.Em se tratando de bem público, a usucapião não é admissível para a constituição de enfiteuse que vai transformar o imóvel em foreiro, porque a alienação desse bem só se admite com as formalidades prescritas em lei, isto é pelo processo de concessão previsto nas normas de direito administrativo, e isto porque, como acentuava Lafayette (Direito das Coisas, volume I, pág. 475, nota 108), e o princípio é válido para o direito vigente, “ as enfiteuses que o Estado concede em terrenos de marinha e outros, entram, depois de constituídas, para o Direito Civil, e são por ele regidas; o processo de concessão pertence ao Direito Administrativo”;

4.O mesmo não sucede quando o terreno já era foreiro, e a constituição da enfiteuse em favor do usucapiente se faz contra, não o proprietário que continua como já se encontrava – ou seja, como nu proprietário, ou senhor do chamado domínio direto – mas, contra o até então enfiteuta. Nesse caso, ainda que se tratasse de aquisição translativa de enfiteuse, esta se faria – no que diz respeito aos Estados-Membros e Municípios, já que a matéria, nesse momento, é inteiramente regulada pelo Direito Civil, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal. Por isso mesmo, não há aqui o empecilho que existe na primeira hipótese.

 Concluiu o Ministro Moreira Alves no sentido de admitir usucapião de domínio útil. Não se admite a constituição inicial de enfiteuse sobre imóvel do patrimônio público se faça mediante usucapião, pois o artigo 67 do Código Civil de 1916 somente admitia a alienação na forma estabelecida em lei. Se, porém, o imóvel já for foreiro, admite-se que um terceiro, que tenha posse do direito de enfiteuse, possa adquirir este direito por usucapião, pois aí não haveria esse óbice.

Isso não se elimina diante da redação que foi dada pela Lei nº 11.481, de 2007, às hipóteses que o Decreto-lei nº 9.760/46 enumera de extinção do aforamento: por inadimplemento de cláusula contratual, por acordo entre as partes, pela remissão do foro, nas zonas onde não mais subsistam os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico, pelo abandono do imóvel, caracterizado pela ocupação, por mais de cinco anos, sem contestação, de assentamentos informais de baixa renda, retornando o domínio útil à União ou pelo interesse público mediante prévia indenização.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos