A abolição do termo auto de resistência e a competência da Justiça Comum para julgar crime cometido por militar

10/08/2017 às 11:46
Leia nesta página:

O artigo discute a questão da competência dos crimes cometidos por militares contra civis e ainda o instituto do auto de resistência.

Uma resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil, publicada no dia 4 de janeiro de 2016, no Diário Oficial da União, aboliu o uso dos termos "auto de resistência" e "resistência seguida de morte" nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais em todo o território nacional.

A medida, aprovada em 13 de outubro de 2015, mas com vigência somente a partir da publicação no DOU, promove a uniformização dos procedimentos internos das polícias judiciárias federal e civis dos estados nos casos de lesão corporal ou morte decorrentes de resistência a ações policiais.

A resolução determinou que os termos sejam substituídos por “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”.

Sabe-se que tal medida vigorou durante a ditadura militar, legitimando a repressão policial da época, mas continua a ser usada.

Organizações de direitos humanos têm alegado que “a maioria dos casos registrados como auto de resistência ou resistência seguida de morte, são casos nos quais as vítimas foram executadas de forma sumária.

A interpretação que tem sido dado a tal instituto se formula na possibilidade de descrever uma situação como “a produção de um documento oficial que localiza a morte em questão como decorrente de resistência à autoridade policial, como se tivesse ocorrido um confronto”.

T m-se quanto ao executor, realizando a diligência sem arrimo nas formalidades legais, que incorrerá, havendo dolo, no crime de abuso de autoridade.

Nessa linha de pensar é mister lembrar a opinião de Guilherme de Souza Nucci(Prisão e liberdade, RT, 2011, pág. 44. e 45):

“SE HOUVER RESISTÊNCIA PASSIVA, OU SEJA, SEM AGRESSÃO DIRETA, AO EXECUTOR OU SEUS AUXILIARES, APENAS COM A RECALCITRÂNCIA DO PRESO EM COLABORAR COM SUA PRÓPRIA DETENÇÃO, USA-SE A FORÇA NECESSÁRIA, LAVRANDO-SE, APENAS, O AUTO DE RESISTÊNCIA, MAS NÃO O FLAGRANTE PELO CRIME DE RESISTÊNCIA.

SE OCORRER RESISTÊNCIA ATIVA, COM AGRESSÃO DIRETA CONTRA O EXECUTOR OU SEUS AUXILIARES, CONFIGURA-SE O DELITO DE RESISTÊNCIA(ARTIGO 329, CP), DEVENDO-SE LAVRAR AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE – E NÃO SIMPLES AUTO DE RESISTÊNCIA.

QUANDO O EXECUTOR FOR AGREDIDO, VIOLENTAMENTE, VALENDO-SE DA LEGÍTIMA DEFESA PARA CONTORNAR O ATAQUE, HAVENDO MERA LESÃO NO PRESO, O QUE ESTÁ DENTRO DA PREVISÍVEL FORÇA INDISPENSÁVEL PARA A CAPTURA, LAVRA-SE O AUTO ESPECÍFICO, DEMONSTRATIVO DO EMPREGO DE VIOLÊNCIA PARA CONCRETIZAR A PRISÃO.

NO ENTANTO, SE O EXECUTOR FOR LEVADO A MATAR O PRESO, PORQUE ESTE O AGREDIU, DURANTE O PROCEDIMENTO DA DETENÇÃO, ALCANÇA-SE A ESFERA NÃO AUTORIZADA EM LEI PARA FINS DE CONCRETIZAÇÃO DO ATO DE PRISÃO. POR ISSO, DEVE A AUTORIDADE POLICIAL LAVRAR O AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE DO EXECUTOR, POR HOMICÍCIO DOLOSO OU CULPOSO, CONFORME O CASO, MAS NÃO O DENOMINADO AUTO DE RESISTÊNCIA SEGUIDO DE MORTE. COM A DEVIDA VÊNIA, ESSA PEÇA NÃO EXISTE. A MORTE DO PRESO É COMPLETAMENTE FORA DOS PARÂMETROS PROCESSUAIS PENAIS, ATINGINDO ÂMBITO PENAL. CUIDA-SE DE FATO TÍPICO, MOTIVO PELO QUAL A AUTORIDADE POLICIAL DEVE LAVRAR O AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. CABE AO JUIZ, APÓS, PROVIDENCIAR A IMEDIATA SOLTURA DO EXECUTOR, COM BASE NO ART. 310, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPP. AO FINAL, CONCLUÍDA A INVESTIGAÇÃO, PODERÁ O MINISTÉRIO PÚBLICO REQUERER O SEU ARQUIVAMENTO E O JUIZ ASSIM DETERMINAR.

A LAVRATURA DO AUTO MENCIONADO NO ART. 292. DO CPP(AUTO DE RESISTÊNCIA) TEM POR FINALIDADE REGISTRAR OS EVENTUAIS INCIDENTES OCORRIDOS DURANTE A PRISÃO, MAS JAMAIS SUBSTITUI UM ATO DE PRISÃO EM FLAGRANTE QUANDO UM CRIME É CONSTATADO. SE O PRESO PRATICAR A RESISTÊNCIA(ART. 329, CP), LAVRA-SE O DEVIDO FLAGRANTE, IGUALMENTE. RESTA AO ÂMBITO DO SINGELO AUTO DE RESISTÊNCIA À HIPÓTESE DE DEFESA COM LESÕES LEVES OU DE RESISTÊNCIA PASSIVA, QUE NÃO CONSTITUI CRIME.”

Os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, tentados ou consumados, foram retirados da alçada militar, passando para a Justiça Comum, dentro da competência do júri. Diga-se isso em face da redação trazida pelo artigo 9º do Código Penal Militar em consonância ao disposto no artigo 125, § 4º, da Constituição Federal.

A Justiça Militar não comporta a inclusão, na sua estrutura, de um Júri Popular, para o fim de julgar os crimes dolosos contra a vida, como se lê de conclusão do Supremo Tribunal Federal(RTJ V. 137/01, PÁG. 418).

Porém, se o crime é culposo subsiste a competência da Justiça Militar.

Da mesma forma se o delito doloso contra a vida se deu entre militares.

É certo que o artigo 125, § 4º, da Constituição Federal trata apenas dos militares estaduais, entretanto, não haveria uma dissociação no âmbito do Código Penal Militar onde a matéria é disciplinada e nem poderia deixar de ser, pois a definição de crime é matéria de reserva do parlamento, principio da tipicidade, e vem através de lei penal ordinária.

Para o STJ, havendo dúvida sobre a existência do elemento subjetivo do doloso contra a vida, a questão deverá ser solucionada no âmbito da Justiça Comum e não na Justiça Militar. É o que restou decidido pela Terceira Seção da Corte, ao determina que Para se eliminar a eventual dúvida quanto ao elemento subjetivo da conduta, de modo a afirmar se o agente militar agiu com dolo ou culpa, é necessário o exame aprofundado de todo o conjunto probatório, a ser coletado durante a instrução criminal, observados o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Dessa forma, o feito deve tramitar na Justiça Comum, pois, nessa situação, prevalece o princípio do in dubio pro societate, o que leva o julgamento para o Tribunal do Júri, caso seja admitida a acusação em eventual sentença de pronúncia. No entanto, se o juiz se convencer de que não houve crime doloso contra a vida, remeterá os autos ao juízo competente, em conformidade com o disposto no art. 419. do CPP (CC 129.497-MG, Rel. Min. Ericson Maranhão (Desembargador convocado do TJ/SP), julgado em 8/10/2014 (Informativo nº 550).

A matéria deve ser objeto de lei, sob reserva de Parlamento, razão pela qual a resolução aqui colacionada não extingue um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados sobre o tema. O tema é de direito processual penal sob o qual cabe competência privativa à União Federal para legislar, em matéria de lei ordinária, à luz do artigo 22, I, da Constituição Federal.

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Para isso há notícia do PL 4471, que aponta que entre janeiro de 2010 e junho de 2012, apenas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Santa Catarina, 2.882 pessoas foram mortas em ações registradas como “auto de resistência”.

Leve-se em conta que de acordo com dados do nono anuário brasileiro de segurança pública, 1.647 homens e mulheres foram mortos em confronto com policiais militares e civis em serviço em “autos de resistência”, no ano de 2014. Mas se forem computados ainda os que foram mortos por PMs e policiais civis que não estavam em serviço, o número chega a 1.996.

Percebe-se os números impressionantes de letalidade policial, razão pela qual a sociedade deve se unir para mitigar esses números tão expressivos que representam um desrespeito à cidadania.

Na matéria trago conclusões do artigo de Marco Aurélio Canônico, Folha de São Paulo, publicado em 10 de agosto de 2017:

"Externando o que possivelmente é uma visão majoritária nas Forças Armadas, o comandante do Exército, general Villas Bôas, usou uma rede social para mostrar seu pouco apreço pela Justiça civil, ao menos quando a ela compete julgar seus soldados.

" A Op GLO [operação das Forças Armadas] no RJ exige segurança jurídica aos militares envolvidos. Como comandante tenho o dever de protegê-los. A legislação precisa ser revista", escreveu ele, no dia 7 de agosto do corrente ano. A lei que o general quer mudar é a que determina que militares sejam julgados pela justiça comum quando cometem crimes dolosos contra a vida de civis.

P arece-nos que colocá-los fora do alcance da lei dos cidadãos comuns, no contexto da atuação no Rio, não é proteção, é licença para matar."

Por sua vez, na coluna opinião do Estado de S.Paulo, tem-se o que segue:

"O general Villas Bôas lembra que as forças militares não têm poder de polícia. Por isso, disse ele, no cumprimento de missões policiais nas comunidades do Alemão, da Penha e da Maré, as tropas identificaram alvos e locais importantes, mas não puderam deter suspeitos e apreender produtos ilícitos por falta de mandado de busca e apreensão expedido por autoridade judicial competente. Se tivessem agido para garantir a segurança dos moradores, os integrantes dessas forças poderiam ser processados pelo Ministério Público e condenados por juízes criminais."

Isso numa cidade em que quase todas as mortes cometidas por PMs viram auto de resistência.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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