As novas configurações das relações humanas

Ou zumbilândia contemporânea

Exibindo página 1 de 2
01/09/2017 às 10:48
Leia nesta página:

O complexo tecido contemporâneo das relações humanas nos mostra zumbis (químicos e tecnológicos) que vagam pelo mundo virtual e hipnose química.

A cada época identifica-se um ícone[1], uma personalidade que bem a caracteriza. Por exemplo, a criatura do Frankenstein[2] que se apresentou como a demonstração de êxito e sucesso da ciência positivista ao criar uma pessoa. Apesar de que ainda sem controle do âmbito metafísico, sem responder à indagação sobre sua alma.

Embora a cultura popular associe o nome Frankenstein à criatura, esta não é nomeada por Mary Shelley. Ela é referida apenas como "criatura", "monstro", "demônio", "desgraçado" por seu criador.

E, após o lançamento do filme Frankenstein em 1933, o público passou a chamar assim a criatura.  Isso foi adotado mais tarde em outros filmes. Alguns argumentam que o monstro é de certa forma, um "filho" de Victor e, portanto, pode ser chamado pelo mesmo sobrenome. Frankenstein é o antigo nome de uma antiga cidade na Silésia[3], local de origem da família Frankenstein. Mary Shelley teria conhecido um membro desta família, o que possivelmente influenciou sua criação.

A dualidade ungida do médico e o monstro é bem representativa da modernidade, a denunciar a face oculta dos homens, repleta de pulsões[4], impulsos e emoções vergonhosas que transformava o educado cidadão inglês em um humanoide não civilizado.

Criaturas caricatas se encaixam no mundo caótico de uma cultura marcada de paradoxos e sínteses complexas. Os zumbis, o morto-vivo revela a configuração da sociedade atual. E, há basicamente duas modalidades de zumbis: os de casos reais e os fictícios.

Entre os casos reais de zumbis há uma publicação de 1985 do antropólogo Wade Davis[5], na obra intitulada “’The serpente and the rainbow”, onde descreveu a ação de feiticeiros haitianos ocorridos no ano de 1960, que através de substâncias químicas naturais que eram capazes de tornar em zumbis as pessoas. Que então passavam a ser obedientes ao seu comando.

Há um relato[6] mais antigo datado de 1931 relatado pela antropóloga Zora Neale Hurston[7]. Há ainda outras histórias que atestam a possibilidade real de seres humanos possam se comportar como zumbis fictícios.

Quanto aos zumbis fictícios, suas primeiras informações datam de 1968 com o filme intitulado “A noite dos mortos-vivos” que dirigido por George Andrew Romero[8], com no livro de Wade Davis[9].

Nesse filme, os zumbis são lentos e abobados. Mas, a partir do ano de 2000, os filmes passaram a mostrar zumbis ágeis, fortes, inteligentes que tanto fascinaram e assustaram os fãs do gênero.

Para a definição de zumbi é preciso compreender que é diferente dos monstros anteriores, sendo fruto de um fenômeno cultural, sem autor exclusivo, é preciso fazer uma descrição especulativa.

O zumbi é pessoa que, por algum motivo, deixa de agir de forma autônoma e racional; ele parece dirigido a um único objetivo, sem se importar com os obstáculos que se prostam à sua frente ou com suas próprias condições físicas para cumprir esse objetivo.

Tal objetivo não é buscado por determinação ou ideologia, mas por mero automatismo. O automatismo[10] traz em seu bojo o abandono do estado de liberdade de deliberação cega para entrar numa perseguição determinada a um objetivo ou objeto de cunho praticamente instintivos, ou seja, natural.

Na obra “A natureza de Merleau-Ponty[11] (2000) desenvolveu o dilema clássico natureza versus liberdade” [12]. E, nessa obra redimensional os conceitos tradicionais das escolas filosóficas predominantes.

Ao longo da obra, o filósofo francês demonstra que natureza e liberdade não são conceitos excludentes se forem pensados dentro de um ciclo: a natureza sustenta o corpo que nutre a consciência que se liberta ao se projetar no mundo.

O acaso da natureza está estreitamente ligado ao algoritmo da programação do universo, ou melhor, multiverso. O fenômeno chamado de zumbificação é a interrupção do ciclo, mantendo, de alguma forma, a pessoa presa aos processos automáticos[13] naturais.

A zumbificação[14] pode ser resultante da alienação e, nos remete a uma automação da sobrevivência monitorizada por ideologias, crenças e culturas.

Trazendo essa metáfora para nossa realidade social, há diferentes formas de zumbificação disponíveis. O zumbi reúne numa só criatura o melhor da vida e o melhor da morte. Em sua eternidade encarnada é capaz de vencer os limites normalmente intransponíveis e que desafiam a ciência.

Na contemporaneidade é possível identificar duas espécies de zumbis, a saber: o tecnólogo (pelos smartphones, tablets, notebooks, ipods e, etc.) e, ainda, os zumbis produzidos pelas drogas (principalmente o crack[15], cocaína, LSD e tantas outras substâncias psicotrópicas, lícitas ou não).


Ab initio, os caminhos da zumbilândia (em saga) são opostos, mas que parecem levar aos funcionamentos psicológicos semelhantes a uma mediação do contato de um mundo com o outro.

Novamente, Merleau-Ponty desenvolveu reflexões sobre a percepção e os significados apreendidos pela consciência. O filósofo afirmou que:

                                            “O verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele tem, não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo e, enfim, não substitui o próprio mundo pela significação mundo. Ele reconhece, ao contrário, meu próprio pensamento como um fato inalienável, e elimina qualquer espécie de idealismo revelando-me como "ser no mundo".”.

O cogito foi termo latino utilizado por Descartes em suas meditações e, normalmente, a tradução que usualmente se faz para o português é “penso”. O seu lema mais famoso é: “penso, logo existo” (ou penso e, portanto, existo). Ou simplesmente: cogito ergo sum[16].

E, através da afirmação cartesiana, Merleau-Ponty refere-se ao pensamento reflexivo que, ao trabalhar ativamente na ação de pensar filosoficamente, não deve confundir seu objeto de estudo.

Ele não pode saltar a realidade e, como se mostra para os significados surgidos diante da realidade. A compreensão sobre a principal característica dos zumbis pode ser percebida por meio da descrição realizada anteriormente, seja a sua capacidade de não se conectar a uma forma pessoal e atenta àquilo que surge na sua frente.

Ele não vê, por exemplo, uma pessoa com sua história de vida e subjetividade diante de si. Cada vez mais a visão enxerga apenas a significação que lhe interessa a respeito de quem o intercepta.

Afinal, não se trata do verdadeiro cogito conforme nomeia Merleau-Ponty. Refere-se, em verdade, apenas a um cogito parcial, cada vez mais tendencioso e interesseiro[17].

Os elementos contemporâneos nem sempre nos permite acessar a um cogito, mas de certo foco talvez, no princípio consciente, mas, posteriormente, atingindo um nível de funcionamento denominado pré-reflexivo.

A permanência intensa da consciência em nível pré-reflexivo, de modo que raramente se dispusesse ao reflexivo, começamos a perceber a fronteira o limiar entre a natureza e liberdade.

Portanto, aquilo que é automatizado, instintivo e pré-reflexivo nem sempre chega à escolha conscientemente deliberada. Intimamente podemos pensar no imenso arsenal de coisas e sentimentos que precisamos mudar, mas não o fazemos. Pois, se tudo dependesse exclusivamente de uma deliberação, a Psicologia e a Psicanálise seriam então projetos sem sucesso.

As mudanças ocorreriam apenas por uma sugestão clara e direta que seria atendida prontamente. O grande desafio é atingir as mudanças em nível pré-reflexivo, onde se dá o desenvolvimento de hábitos e pensamentos.

Ao eleger os caminhos tecnológicos, ou os caminhos químicos e tóxicos (e decadentes), o que representa uma nova representação com a configuração nas relações humanas e sociais.


De repente, a relação com as outras pessoas se transforma em uma significação pré-reflexiva que faz por meio da realidade, prendendo o sujeito em uma abertura enviesada para o mundo.

Não compete elaborar preconceitos contra a tecnologia ou mesmo contra ao uso de substâncias químicas alteradoras da psiquê[18]. O que se pretende é apontar que ocorre a mesma zumbificação do sujeito através dos caminhos apresentados.

Os zumbis tecnológicos se transportam para outra realidade, aquela que atendem aos estímulos visuais e auditivos. O mundo percebido onde este vive, torna-se não aquele que ali está, mas o outro mundo concretizado e estruturado pela tecnologia. O mundo virtual substitui o mundo real.

Os zumbis da tecnologia são transportados, para outra realidade, onde os sinais apitam, acendem e avisam em suas telas. O mundo é tocante ou mais propriamente tocável, no sentido literal da palavra, de ser sensível ao toque dos dedos. O maior problema para o zumbi tecnológico é que o mundo fisicamente próximo dela não deixa de existir.

Já em 2013 nos EUA registrou-se a majoração do número de quedas, acidentes e atropelamentos o que aumentou de forma drástica e proporcionalmente ao uso trivial de smatphones pelas ruas, conversando, recebendo e enviando mensagens. Sendo percebido tanto o uso pelos motoristas como por passageiros.

A zumbificação de pessoas ocorre por meio do uso do celular. E mesmo os que se encontram mais próximos e usando ou não o smartphone, no momento da contaminação, sofrem maiores sequelas. A todo instante, é raro encontrar, quem não esteja enfocando uma tela de celular, onde há um painel multi-informacional.


E, tudo que lá consta, parece ser mais real e acessível que o mundo o real e concreto, em sua volta. Por vezes, o mundo em sua volta pode tornar-se um obstáculo, por não ser tão acessível, dinâmico e prático como o mundo digital.

Assim, é muito comum que as pessoas estejam próximas com seus celulares, mas estejam interagindo fazendo uso de aplicativos enriquecidos de sons, cores e acontecimentos novos enquanto que ambiente analógico se mantém distantes de relações sociais e humanas concretas.

É possível ainda se reconhecer que esse entendimento promovido pelos smartphones esteja ainda mais integrado à realidade circundante. E, já existem as tecnologias vestíveis (wearable), com a oferta de relógios inteligentes, óculos, roupas e demais acessórios que garantem que a pessoa esteja sempre conectada ao telefone, a internet, as redes sociais e, demais aplicativos informacionais[19].


 

E, até mesmo os órgãos sexuais sintéticos podem ser integrados a todo esse funcionamento virtual das relações à distância. Tais recursos integram dois âmbitos de realidade, colocando no mundo concreto de hologramas, redes sociais, jogos e outros aplicativos que complementam o mundo.

Sobre os zumbis do crack, sua realidade se mostra bem mais cruel. A participação de uma química externa (assim como no caso dos zumbis haitianos) no processo de zumbificação provoca a presença de sequelas físicas, psicológicas, sociais, afetivas que tanto estimulam a escravidão na busca de maior substância na ilusão do prazer.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A cega e inopinada procura para manutenção do vício para continuar a manter o funcionamento do psicológico sob o efeito da droga, é comum que comece um processo de progressiva decadência degradante que tanto corrói saúde, laços familiares, emprego, bens materiais, paz e, tudo enfim.


Em diversos locais do mundo o surgimento das chamadas cracolândias[20], local onde há o deliberado uso e abuso dessas substâncias por várias pessoas, gera uma multidão de zumbis que se utilizam de diversas estratégias para conseguir recurso para manter a saciedade do vício.

É comum, inclusive que as pessoas contem histórias dramáticas narradas até a exaustão e, já nem sabem mais, para quem as contou, e tentam comover a todo custo o interlocutor para conseguir mais recursos e serem rapidamente investidos em novas doses de drogas.

O mundo do zumbi do crack está além da realidade que os circunda, mas isso não provoca um complemento divertido e interessante nem na seara acadêmica das ciências sociais e humanas e nem nas ciências da saúde.

A metáfora dos zumbis é tão particularmente expressiva que alguns apresentadores de TV que já usaram tal termo para designar essas pessoas que definham nas ruas dos grandes polos urbanos, o fazem com absoluta naturalidade e indiferença.

Há um grande perigo social que alerta ao identificar o zumbi como o mostro contemporâneo, encarnado sob a couraça de mortos-vivos. O uso político da expressão “zumbi” promove e acelera ainda mais severamente a desumanização das pessoas que chegam ao mais fundo da miséria em suas vidas, justificando qualquer violência que ocorra contra eles.

Afinal, quase toda literatura e até mesmo as produções cinematográficas sobre os zumbis apregoam que essas criaturas devem ser mortas sem hesitação ou piedade.

A jornada heroica forçosamente inclui o abandono da compaixão e a adoção da fria estratégia de aprender a matar sem pensar duas vezes, extirpando a vida de quem já está praticamente morto. Ou pelo menos, socialmente morto. Promovendo assim, talvez uma faxina eugênica[21].

O filósofo Giorgio Agamben bastante influente nos temas relacionados com o urbanismo e relações humanas contemporâneas trouxe ao nosso conhecimento o conceito de homo sacer.

O homo sacer é uma pessoa que perde seu status de cidadão e, não precisa ser respeitado como tal. Na Roma Antiga tais homo sacer poderiam ser assassinados, por qualquer um, a qualquer momento com a garantia de que o assassino sairia impune.

Porém, o homo sacer não poderia ser morto em rituais religiosos, pois não era digno de ser oferecido à divindade. Questionamos esse processo crescente de desumanização, lembremos-nos da trágica morte do índio Galdino[22] em Brasília e, tantos outros mendigos e moradores de rua[23] que são espancados, torturados e queimados e até mesmo flechados como se tal conduta fosse absurdamente normal.

Homo sacer é uma expressão em latim que significa literalmente homem sagrado. ou seja, homem a ser julgado pelos deuses.

É, de fato, uma figura obscura do direito romano arcaico, que se refere à condição de quem cometia um delito contra a divindade, colocando em risco a pax deorum[24], a amizade entre a coletividade e os deuses, que era uma garantia de paz e prosperidade da civitas.

Portanto, tal delito significava uma ameaça ao próprio Estado. De sorte, que o indivíduo era consagrado à divindade, entregue à mercê da vingança dos deuses, sendo expulso do grupo social, tendo excluídos todos seus direitos civis e, a sua vida passava a ser considerada sagrada no sentido negativo.

Podendo ser morto por qualquer um, porém não em rituais religiosos. A figura do homo sacer é similar a do personagem Caim[25], da mitologia judaico-cristã.

Tal conceito cunhado por Agamben, filósofo italiano, cuja produção se concentrou as relações contínuas entre filosofia, ética, estética, lógica, literatura, política e o meio jurídico.

O autor é importante intelectual na teorização do mundo contemporâneo e, vem sendo considerado como referencial teórico em diversas pesquisas. Retomando a figura do direito romano homo sacer para evidenciar o ponto entre o poder soberano e a biopolítica que é exercido pelo meio jurídico e que torna certas vidas descartáveis.

Agamben retomou a distinção feita por Aristóteles entre bios e zoé. Bios é o reino da ética e da moral onde se manifesta o juízo, representa o modo de viver dentro do grupo que depende da linguagem. Enquanto que zoé é a vida nua, natural e biológica, tão comum a todos os homens, ou seja, a mera existência.

Para o autor, o homo sacer demonstraria a inversão da tese de Walter Benjamin[26] de que a vida nua seria onde cessa o domínio do direito sobre o ser vivente.

Diferentemente, para o filósofo italiano, a vida nua é o campo em que se mantém o paradoxo, pois é o lugar em que vida foi excluída exatamente por sua inclusão, onde só o direito pode alcançar o vivente.

Assim, a vida torna-se limável pela ordem do poder soberano juridicamente construído, o poder jurídico torna o vivente excluído, aniquilado e descartável.

Assim como os zumbis do crack ou do smartphone possuem uma interpretação mediada nas relações, estaríamos nós, também aprendendo a tomar determinadas interpretações como conceitos culturais mais corretos que nossa forma própria e pessoal de perceber a realidade?

O que enxergamos na carcaça humana dos zumbis uma faceta obediente e passiva e, sua destruição e extermínio não chega configurar nem crime ou barbárie. A indiferença nos fazem assassinos mais cruéis que todas as bestas que já extintas sobre o planeta[27].

Quando será que entenderemos finalmente que confinar a realidade a nossa volta à indiferença e negligência, significa também atentar contra a nossa própria humanidade e, ao direito de sobreviver e, buscar caminhos de defender a igualdade, a dignidade e a compaixão?

Referências:

TORRES, André Roberto Ribeiro. Monstro do cotidiano. In: Revista Filosofia, Ciência e Vida n. 126. 2017.

MARTINS, Aline Souza. Homo sacer, sujeitos abandonados ao crime. Giorgio Agamben e Psicanálise. Disponível em: http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/homo_sacer_sujeitos_abandonados_ao_crime/158 Acesso em 31.08.2017.

TILBURI, Márcia. A zumbificação da política brasileira Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-a-zumbificacao-da-politica-brasileira/ Acesso em 30.08.2017.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos