Entrada de menores desacompanhados dos responsáveis legais em unidades prisionais

06/09/2017 às 12:25

Resumo:


  • Lei nº 12.962/2014 alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), permitindo que menores visitem pais privados de liberdade acompanhados por responsáveis "de fato", sem necessidade de autorização judicial.

  • A falta de definição clara do termo "responsável de fato" pode levar a situações problemáticas, como a entrada de menores em unidades prisionais sem o consentimento dos responsáveis legais, potencialmente expondo-os a ambientes inadequados.

  • Unidades prisionais não são ambientes propícios para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, o que contradiz o próprio ECA e pode resultar em experiências traumáticas para os menores.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Ao buscar garantir a convivência de menores com seus pais privados de liberdade, o legislador se preocupou com convivência familiar, mas deixou de analisar a realidade fática vivida pelas prisões do país e não definiu o termo "responsabilidade de fato".

O presente texto busca demonstrar o erro do legislador ao autorizar que um menor de idade entre em uma Unidade Prisional a fim de visitar seu ascendente, acompanhado por um responsável legal ou de fato (grifo nosso).

Tal argumento encontra alicerce nos fatos e análises que seguem.

Até o ano de 2014 o Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do Estado de São Paulo assim rezava:

Artigo 112 - a entrada de crianças e adolescentes, para visitas comuns, é permitida somente quando o menor for filho ou neto do preso a ser visitado.

Parágrafo único - As crianças e os adolescentes devem estar acompanhados por um responsável legal e, na falta deste, por aquele que for designado para sua guarda, determinada pela autoridade judicial competente.

Desta forma, nenhum menor poderia entrar em uma Unidade Prisional do Estado de São Paulo caso não estivesse acompanhado de seu responsável legal ou, na falta deste, de pessoa determinada por juiz competente. Em casos onde o preso ou visitante solicitavam em juízo tal autorização, o Ministério Pública era constantemente chamado a se pronunciar, tamanha a importância de tal matéria.

Porém, após a publicação da Lei nº 12.962, de 2014, lei que acrescentou o parágrafo 4º ao artigo 19 do Estatuto da Criança e Adolescente, o ingresso de menores em cadeias passou a ser observado da seguinte forma:

Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral

§ 4º Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial.

Como o Estatuto citado tem uma posição hierárquica superior ao Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do Estado de São Paulo, este também teve de ser alterado, e o parágrafo único do artigo 112 do referido Regimento passou a vigorar com a seguinte redação:

Artigo 112. [...]

Parágrafo único: As crianças e adolescentes devem estar acompanhadas por seu responsável legal ou de fato, independentemente de autorização judicial, em atenção ao disposto no § 4º do artigo 19, da lei 8.069, de 13-07-1990, com redação dada pela lei 12.962, de 08-04-2014.

Desde então, filhos ou netos de presos podem entrar nas Unidades Prisionais acompanhados por seus "responsáveis de fato", e não somente os responsáveis legais.

Embora caiba ao poder executivo cumprir a lei, obedecer ao princípio constitucional da legalidade, onde todo ato administrativo deve se estender ao que diz a lei, a alteração legislativa ora discutida merece ser questionada, principalmente quando não há definição de termos jurídicos, como no fato da "responsabilidade de fato".

É sabido por todos que uma lei deve ser feita para beneficiar o povo, deve ser feita em prol de quem mais precisa ser protegido, buscando proteger direitos. Para isso, o legislador deve observar a realidade fática de quem pleiteia o gozo de direitos até então não permitidos, e não somente legislar em decorrência de pressões políticas e da sociedade. Um exemplo simplório: se a sociedade pressionar para que o salário mínimo seja R$10.000,00 (dez mil reais) mensais à partir de mês que vem e o legislador assim o fizer, este fará com que o atual déficit nas contas públicas fique ainda maior. O legislador buscará cumprir com os anseios da sociedade, mas acabará prejudicando ainda mais as contas públicas e, assim, os investimentos em educação, saúde, segurança pública e demais setores, fazendo com que a população sofra ainda mais.

No que diz respeito a alteração do Estatuto da Criança e Adolescente, o legislador garantiu que menores ingressem em Unidades Prisionais mesmo desacompanhados de seus responsáveis legais, sem se preocupar se as Unidades Prisionais estão preparadas para receber tais menores e sem se preocupar em definir o que é a responsabilidade de fato sobre um menor. Ademais, o que seria considerado "responsabilidade de fato"? seria uma tia acompanhado seu sobrinho? O avô de um neto que foi passar o fim de semana na caso do ascendente? Podemos entender tudo isso como corriqueiro, mas até que ponto esses parentes podem levar os menores até unidades prisionais a fim de que eles possam visitar seus pais? Até que ponto essa responsabilidade de fato está amparada pela lei? Isso a própria lei deveria informar, mas não responde, sequer faz menção.

Imaginemos tal situação: uma mãe deixa uma criança na casa da avó paterna, a fim de passar o fim de semana. Sem a devida autorização da mãe, a avó vai até a Unidade Prisional visitar seu filho, pai da criança, que está preso. Ao se apresentar no presídio, a avó apresenta a documentação da criança e comprova o parentesco. Contudo, como já citado, a mãe da criança, responsável legal por esta, não autorizou que a avó levasse a criança até a Unidade Prisional e, dias depois, toma conhecimento que a criança sofreu abuso sexual enquanto visita o pai. A mãe da criança dirige-se então à cadeia, e cobra providências. Ao final dos fatos, quem será o responsável pelo fato da criança ter entrado na Unidade Prisional sem a autorização da mãe? A avó é a responsável de fato pela criança? Qual a culpa do servidor público que autorizou a entrada da menor desacompanhada da responsável legal? Todas estas questões não foram sanadas pelo legislador.

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Outro ponto importante é que as Unidades Prisionais não são ambientes que garantam desenvolvimento integral e saudável a uma criança, conforme preceitua o artigo 19 do ECA.

Para afirmar isso, podemos citar os recentes casos nos Estados de Amazonas, Rio Grande do Norte e Roraima, onde dezenas de presos foram esquartejados.1 Imagine a carga psicológica de uma criança que presencia homicídios e esquartejamentos. O psicólogo Felipe Pimentel , em entrevista ao site https://diariogaucho.clicrbs.com.br, diz que

“Uma criança que fica marcada pela brutalidade tem um mundo esvaziado de sentido. O que fica de ver o avô ser assassinado? Fica apenas a brutalidade. A definição de trauma é exatamente essa, quando só sobra o horror da situação.” 2

Fica claro que ao invés ajudar na educação e convivência familiar do menor com seus pais presos, a legislação pode atrapalhar e traumatizar a criança.

O ambiente que garanta o desenvolvimento integral da criança, assim como explicado pelo artigo 19 da lei 8.069 de 13 de julho de 1990, com certeza não é uma Unidade Prisional brasileira. A ONU assim definiu a situação dos presídios brasileiros: as violações de direitos humanos são frequentes no sistema prisional brasileiro, incluindo a prática de tortura e maus-tratos, bem como condições inadequadas de vida no interior das unidades. 3

Analisando a atual situação, podemos afirmar que o legislador errou ao autorizar tal ingresso de menores em Unidades Prisionais, desacompanhados do responsável legal, não se preocupou com a realidade fática das Unidades Prisionais do Brasil, tampouco definiu a responsabilidade de fato sobre um menor. A legislação, ao invés de auxiliar na educação da criança, fará o efeito contrário, prejudicando o desenvolvimento do menor e criando imbróglios jurídicos.


Notas

1 https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2017/01/rebeliao-no-compaj-chega-ao-fim-com-mais-de-50-mortes-diz-ssp-am.html, https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2017/01/itep-identifica-7-dos-26-corpos-de-presos-mortos-em-rebeliao-no-rn.html e https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2017/01/mais-de-30-presos-sao-mortos-na-penitenciaria-de-roraima-diz-sejuc.html

2 https://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2015/04/especialistas-falam-sobre-trauma-de-crianca-ao-ver-assassinato-do-avo-4739456.html

3 https://acnudh.org/pt-br/brasil-onu-direitos-humanos-cobra-medidas-contra-violencia-em-presidios-apos-rebeliao-em-manaus/

Sobre o autor
Leandro Medeiros

Bacharel em direito, aprovado no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, pós graduado em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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