A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR: PARA ONDE FORAM 97,9% DOS RECURSOS DESTINADOS ÀS REPARAÇÕES?

08/09/2017 às 18:11
Leia nesta página:

Acórdão do STF revela: enquanto compelia os anistiados políticos a aceitarem 'voluntariamente' o pagamento parcelado de suas indenizações retroativas e retaliava os não aderentes, a União deixava de utilizar 97,9% dos recursos orçamentários disponíveis.

Para quem espera há mais de dez anos uma indenização retroativa que a Lei mandava pagar em 60 dias, foi simplesmente chocante tomar conhecimento (vide aqui) de que, durante todo esse tempo, a União só gastava 2,1% da dotação orçamentária existente para as reparações a ex-presos políticos. 

Ou seja, tudo leva a crer que o parcelamento era desnecessário e que os anistiados que a ele aderiram de boa fé fizeram um péssimo negócio, ao, sob falso pretexto, concordarem em ver diluído por quase oito anos o que deveriam ter recebido de imediato.

Pior ainda foi o tratamento punitivo adotado contra quem se recusou a assinar tal Termo de Adesão e passou a ser perseguido encarniçadamente pela Advocacia Geral da União, que moveu céus e terras para retardar o cumprimento da Lei específica e de várias sentenças de julgamentos de mérito.

A revelação de que, nos dez primeiros anos, havia R$ 8,1 bilhões disponíveis para honrar tais débitos e a União só utilizou R$ 168,3 milhões, nos faz perceber que:

— provavelmente teria sido possível pagar a todos nós no prazo legal de 60 dias;

— que há dois pontos importantes a serem esclarecidos, o de qual terá sido o verdadeiro motivo de a União haver adotado caminho tão sinuoso e o de onde foram, afinal, parar tais recursos (caso hajam sido realocados para outras finalidades, temos o direito de saber o que foi considerado mais importante do que nossos tormentos e aflições!); 

— que os governantes do período, enquanto publicamente rasgavam seda para os ex-resistentes que sofremos o diabo na luta contra a tirania, longe de nossas vistas nos prejudicavam terrivelmente.

De resto, reproduzo abaixo o trecho do acórdão no qual o ministro Edson Fachin, depois de elogiar a participação no processo, como amicus curiae, da Associação Brasileira de Anistiados Políticos, citou trechos do documento incorporado ao processo pela Abap, para em seguida, considerando-os corretos, deles extrair suas conclusões:

"... as Leis Orçamentárias Anuais de 2004 até 2013 previram R$ 8.061.222.869,00 para o pagamento de anistiados políticos. 

Segundo o Portal da Transparência, o valor total gasto de 2004 até 2013 com anistiados políticos corresponde a R$ 168.281.869,60. 

Em outras palavras, 2,1% do total previsto nas leis orçamentárias atuais para indenização de anistiados foram efetivamente gastos, segundo as informações do próprio governo federal. Portanto, os outros 97,9% restantes representam valores disponibilizados e não pagos.

...Para afastar qualquer dúvida quanto à exatidão dos valores informados no Portal da Transparência, foi realizada consulta à Controladoria Geral da União sobre os dados contidos no sistema e forma de pesquisa. Em resposta, a CGU informou que as informações referentes aos gastos com os anistiados políticos encontram-se corretas, exatas"

Segundo Fachin, colheu-se de tais informações a comprovação do "modo de agir omissivo adotado pela Administração Pública, chegando-se a aduzir até mesmo que nunca teria havido ação orçamentária específica destinada ao pagamento integral dos efeitos financeiros retroativos".

E concluiu: 

"...desde 2010 no que se refere aos anistiados militares e desde 2012 em relação a todos aqueles submetidos ao regime especial do anistiado político, verifica-se que não se tem previsto nas leis orçamentárias da União ação específica voltada ao pagamento dos valores retroativos devidos a título de reparação econômica, salvo para aqueles que se submeteram, voluntariamente, ao regime de parcelamento do pagamento mediante Termo de Adesão... 

Verifica-se, portanto, grave omissão ao dever de planejar ínsito à própria noção de orçamento público..."

Sobre o autor
Celso Lungaretti

Jornalista, blogueiro, escritor e veterano da resistência à ditadura militar. Ingressei na luta contra a ditadura militar ainda secundarista, aos 17 anos. Passei um ano na clandestinidade, como dirigente estadual da VPR e VAR-Palmares. Preso, sofri uma lesão permanente que me prejudicaria tanto no convívio social quanto nos desempenhos profissionais. Mesmo assim, fiz longa carreira jornalística. Hoje sou escritor, articulista e blogueiro, atuando frequentemente na defesa dos direitos humanos. Observador atento da cena política brasileira há mais de meio século, além de haver sido, aos 18 anos, o primeiro e único comandante de Inteligência de uma organização que travava a luta armada, tento dar aos leigos no assunto um quadro realista das perspectivas atuais, para dissipar um pouco das paranoias e alarmismos que tantos pesadelos lhes causam .

Informações sobre o texto

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Mais informações

O STF decidiu por 10x0 que a União atropelou "direito líquido e certo" dos anistiados políticos, ao não pagar-lhes as indenizações retroativas no prazo de 60 dias, como a lei mandava. Mas, o fato de que dispunha de recursos orçamentários para tanto e não os utilizou requer, no mínimo, uma explicação.

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