Nos dias atuais, em que tanto se discute a propalada politização do Poder Judiciário no Brasil, mister retomar a questão do Direito como ciência.
Há muitos séculos discute-se se o Direito é ou não é ciência. Tal debate acalorou-se principalmente a partir do Racionalismo Francês do século XVIII e fomentou-se sob a influência das correntes de pensamento positivista, que, no caso do Direito, esforçavam-se para lhe outorgar o patamar de ciência, posto que esta tem enorme prestígio, se comparada a outros saberes.
Todavia, antes de discutirmos se o Direito é ou não é ciência, comecemos por analisar o conceito de ciência. Afinal, para sabermos se o Direito é uma ciência, é mister sabermos antes em que consiste a ciência.
Assim, vamos examinar alguns aspectos da Epistemologia, que é o estudo da ciência ou a sua filosofia. Nessa esteira de pensamento, veremos depois a Epistemologia Jurídica, que é então o estudo da ciência do Direito.
De acordo com Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, a Epistemologia é a disciplina que toma as ciências como objeto de investigação, tentando reagrupar:
“a) A crítica do conhecimento científico (exame dos princípios, das hipóteses e das conclusões das diferentes ciências, tendo em vista determinar o seu alcance e seu valor objetivo; b) a filosofia das ciências (racionalismo, empirismo, etc.); c) a história das ciências. O simples fato de hesitarmos hoje entre duas denominações (epistemologia e filosofia das ciências) já é sintomático. Segundo os países e usos, o conceito ‘epistemologia’ serve para designar, seja uma teoria geral do conhecimento (de natureza filosófica), seja estudos mais restritos concernentes à gênese e à estruturação das ciências”.[1]
Como se vê, não é unânime, entre os tratadistas, o conceito de Epistemologia, variando, inclusive, de região para região, assim como através da história.
Conforme Nicola Abbagnano, a Epistemologia vem sendo substituída pela Metodologia, que consiste na “análise das condições de validade dos procedimentos de investigação e dos instrumentos linguísticos do saber científico”.[2] Neste aspecto, corrobora Gaston Bachelard, acrescentando que as regiões do saber científico são determinadas pela reflexão.[3]
No caso específico da Epistemologia Jurídica, sua demarcação tradicionalmente vinha sendo feita pelas diferentes disciplinas ou ramos do Direito, ou seja: era uma demarcação de acordo com as regiões do saber. Porém, ocorre que as disciplinas ou ramos do Direito vêem-se alteradas pela interdisciplinaridade e pela transdisciplinaridade, de modo que os tempos atuais são de grandes transformações, às quais deve estar atento o estudioso e, em especial, o epistemólogo e metodólogo do Direito.
Voltemos à questão principal deste estudo, que é a de saber se o Direito é ou não é uma ciência. Ora, vimos nos parágrafos acima que atualmente a Epistemologia é substituída pela Metodologia. Com efeito, há uma Metodologia do Direito. Então, o Direito é sim uma ciência, porque tem método. Desse modo, devemos examinar a questão da Metodologia Jurídica.
Karl Larenz aponta como a evolução do método jurídico se deu em conformidade com a evolução do próprio Direito, passando desde o método histórico-natural de Jhering, que tentava aproximar o Direito das leis naturais; o positivismo legal racionalista; a teoria objetivista da interpretação e o voluntarismo, até chegar às discussões atuais da Metodologia Jurídica, que são a passagem da jurisprudência de interesses para a jurisprudência da valoração; a questão de critérios e valoração supralegais; a tópica e a teoria da argumentação e as discussões filosóficas relativas à justiça, atualmente.[4]
Para Friedrich Müller, a Epistemologia ou Metodologia Jurídica propõe-se a desenvolver-se sobre as bases que determinam suas diferentes funções, que são o estabelecimento das normas, a concretização das normas e seu controle (legislação, governo, administração da justiça, jurisprudência, ciência e política jurídica).[5]
Consoante Müller, a Metodologia Jurídica analisa também as propriedades de concretização da norma na ação prática, de modo que se pode falar que o Direito, em termos epistemológicos, possui uma prática metodológica.[6]
Voltando a refletir sobre a falta de unanimidade entre os conceitos de Metodologia e Epistemologia Jurídica, cabe ressaltar que o próprio conceito de Direito não é unânime. Nesse sentido, observa Hart: “Poucas questões respeitantes à sociedade humana têm sido postas com tanta persistência e têm obtido respostas, por parte de pensadores sérios, de formas tão numerosas, variadas, estranhas e até paradoxais como a questão ‘O que é o Direito?’. Mesmo se limitarmos a nossa atenção à teoria jurídica dos últimos 150 anos e deixarmos de lado a especulação clássica e medieval acerca da ‘natureza’ do Direito, encontraremos uma situação sem paralelo em qualquer outra matéria estudada de forma sistemática como disciplina acadêmica autônoma”.[7]
Por tais razões, juristas e filósofos têm hoje em dia reservado o melhor de seus esforços para encontrar uma sistematização lógica dos saberes jurídicos. [8] Vários autores concordam e reconhecem as dificuldades que envolvem a cientificidade do Direito; no entanto, são unânimes quanto às possibilidades de sua sistematização.[9]
Luiz Alberto Warat, entre outros temas, trata das condições de possibilidades dos discursos científicos, fundada numa gramática de recepção pequeno-gnoselógica, [10] a qual pressupõe a existência de um discurso rebelde que, recuperando o valor político da polifonia, define o sistema de produção das significações científicas como um processo, e não como um produto. Para o referido autor, há dois tipos de discurso sobre a Epistemologia Jurídica, a saber: “a) o discurso rebelde, que é um estado muito sutil de destruição do lugar mitificado da verdade, imposto, pelo objetivismo abstrato e pelo positivismo jurídico; e b) o discurso monológico, que é uma fala já habitada, hermética, que precisa ser deslocada, abrindo-a para uma gramática livre”.[11]
Assim, em conclusão, ao mesmo tempo em que obervamos que o conceito de possível sistematização metodológica do Direito é pacífico, constatamos uma grande diversidade nos conceitos de Epistemologia. A própria ideia de coerência em ciência comporta controvérsias e discussões.[12] Importante é que se pode falar em movimentos, como o de uma ciência-processo[13] (em desenvolvimento) e, por conseguinte, de uma Epistemologia e Metodologia Jurídica em processo.
Embora a ciência atual opere cada vez mais com incertezas e inexatidões, mister observar que, paradoxalmente, é cada vez maior a busca pela unidade do conhecimento.[14]
Observa Hans-Georg Gadamer que “para as ciências do espírito [como é o caso do Direito] não é nada fácil encontrar junto à opinião pública a reta compreensão de seu modo de trabalho”,[15] qual seja, a sua metodologia.
Para Raul José Fernandes de Oliveira, “o conhecimento mais amplo possível é o necessário para explicar a realidade de si mesmo e do meio onde se manifesta, mas pode não ser o suficiente para entender a reação da natureza à suas ações, e isto se deve ao conhecer fragmentado”.[16]
Por tais razões, acreditamos ser imprescindível um conhecimento e uma Metodologia Jurídica transdisciplinar, plural, variada e diversificada, porque assim é a sociedade complexa dos nossos tempos.
Essa é a visão da Epistemologia e da Metodologia Jurídica, em algumas das suas questões na atualidade.
Diante de tais constatações – a de que o Direito é uma ciência porque tem método – é de se indagar até que ponto pode persistir a fundamentação puramente política no arrazoamento de certos julgados pelos Tribunais, em nosso país; ou se, de outro modo, os fundamentos científicos do Direito, ao embasar decisões pretorianas, seriam hábeis a promover, de modo mais acabado, a Justiça.
Quedem ao leitor as conclusões a respeito.
Notas
[1] JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed.,Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 84-5.
[2] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 183.
[3] BACHELARD, Gaston. A Epistemologia. (Trad. De Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino Oliveira), Lisboa: Edições 70, 1996, p. 33.
[4] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. (Trad. De José Lamego), 2ª. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. X; e LARENZ, Karl. Storia del Método nella Scienza Giuridica. Milão: Giuffrè, p. vii.
[5] MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. (Trad. De Olivier Jouan-jan). Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p. 368.
[6] Idem, ibidem, p. 370-1.
[7] HART, H. L. A. O conceito de Direito. (Trad. De A. Ribeiro Mendes). Lisboa: fundação Calouste Gulbenkian, 1990, p. 5.
[8] MACHADO NETO, Antonio Luís. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 40-1.
[9] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. 2ª. ed., São Paulo: Atlas, 1986, p. 13.
[10] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II – A Epistemologia Jurídica da Modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 352 et passim.
[11] Idem, ibidem, p. 354.
[12] ALCOFF, Linda Martín. Epistemology: The Big Questions. Londres: Blackwell, 1998, p.392.
[13] FREIRE-MAIA, Newton. A Ciência por Dentro. 5ª. ed., Petrópolis: Vozes, 1998, p. 17.
[14] WILSON, Edward. Consilience – The Unity of Knowledge. Nova Iorque: Vintage Books, 1998, p. 15; ET MORITZ, Helmut. Science, Mind and the Universe – An Introduction to Natural Philosophy. Heidelberg: Wichmann, 1995, p. 38.
[15] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. (Trad. De Enio Paulo Giachini). 4ª. ed., Petrópolis: Vozes, 2009, p. 49.
[16] OLIVEIRA, Raul José Fernandes de. Questões sobre a Realidade e os seus Níveis. In: HTTP://www.gepet.falec.br/index.html , p. 15. Acesso em 03/out/2016.