Antropologia jurídica – Aspectos

27/09/2017 às 17:50
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Kandinski estudou Antropologia Jurídica para melhor retratar, em seus quadros, o espírito dos agricultores russos de sua época.

Iniciamos este escrito com a passagem acima para ilustrar, numa breve síntese, o quanto a Antropologia Jurídica no Brasil é tardia, pouco avança e, se o faz, parece fazê-lo aos pequenos e intervalados passos, enquanto que, em outros lugares, parece adiantar-se mais rapidamente, tendo começado mais cedo.

Sabe-se de Wassily Kandinski (Moscou, 1866 a 1944) que “o mundo jurídico despertou-lhe o sentido por relações abstratas e (...) trabalhos na área da investigação sociológica e etnográfica, que o levaram à Universidade de Moscou para estudar Direito e Economia. Chegou a lecionar Direito na Faculdade de Moscou, a partir de 1892”.[1] 

As investigações sociológicas e antropológicas de Kandinski levaram-no a “colher informações sobre a cultura dos agricultores russos e fizeram-no  contactar com as cores garridas das suas casas e mobiliários e com as fortes policromias dos trajes, com influências em algumas das suas primeiras pinturas”.[2]

A Antropologia é um ramo relativamente recente na história da demarcação dos saberes. Surgida no início do século passado, tendo como precursores Linton e Malinowski, era considerada a “ciência das sobras”, pois tudo o que não cabia ou não interessava à Arqueologia, à Paleontologia, à Sociologia etc., era relegado à Antropologia.

Em seus primórdios, A Antropologia tornou-se célebre e despertou grande interesse, em virtude da celeuma entabulada entre Malinowski e Linton: em rápidas pinceladas, enquanto que para aquele o homem modifica a natureza, para este o homem modifica a natureza que, já modificada, repercute e transforma novamente o homem, em uma contínua cadeia de retroalimentação na relação entre homem e natureza. Filiamo-nos a esta segunda postura.

Dentre o rol de estudos e ideias que nos foram legados por Ralph Linton, destacamos os que se referem à origem do homem; às raças e à significação das diferenças raciais; as matérias-primas da sociedade e a sua organização em status e papéis; as unidades sociais determinadas pelo sangue; a tribo e o Estado; as descobertas, as invenções e a difusão; as reconstruções históricas etc.

Chama-nos sobremaneira a atenção o que Linton nos diz a respeito do background da mentalidade humana e do background da cultura porque, ao nosso ver, tais temas, se bem desenvolvidos, continuados e levados adiante, poderiam ser um dos vários caminhos a  nos conduzir e subsidiar a compreensão da existência do espírito ou da alma, no ser humano e, talvez, de formas primitivas chamadas “protoespíritos” nos animais.

Dizia Ralph Linton, em 1936, que “tem-se sustentado que a performance superior do homem na solução de problemas deve-se a que os homens dispõem de imaginação e de razão, qualidades de que os animais são desprovidos. Segundo experiências recentes, isto parece improvável. Imaginação é a capacidade de representar no espírito situações que não estão presentes. Razão é a capacidade de resolver problemas sem passar por um processo físico de tentativa e de erro. A razão não poderia existir sem imaginação, pois no raciocínio a situação tem que ser compreendida e os resultados de certas ações têm de ser previstos. Fazem-se tentativas e eliminam-se os erros, mentalmente. Se estudarmos do mesmo ponto de vista objetivo o comportamento humano e o animal, parece certo que, se reconhecermos no homem imaginação e razão, devemos reconhecê-las também no animal. (...). O chipanzé se detém em certo ponto de desenvolvimento mental, enquanto o homem continua. (...). Nossa capacidade de pensar só é posta em ação quando defrontamos situações novas. (...). O equipamento mental superior dos homens é responsável pela existência dessa abundância de coisas a serem aprendidas, mas a abundância foi produzida por muitos cérebros que trabalharam durante muitas gerações. Sozinho, nenhum espírito poderia criá-la”.[3] 

No Brasil, nos anos oitenta do século passado, Roque de Barros Laraia observava o sensível crescimento pelo qual passava a Antropologia brasileira, naquelas décadas, seja em número de pesquisadores, seja quanto à procura de novos temas sob o estímulo de modernas orientações teóricas, seja ainda pelo aumento do número de estudiosos. Enquanto tecia essas observações, Laraia revitalizava o conhecimento antropológico posto, como as questões do determinismo biológico e geográfico; a interferência e condicionamento operados pela cultura na visão de mundo, a dinâmica própria da cultura,[4] entre outros.

No que se refere à Antropologia Jurídica, no Brasil, cabe destacar a obra de Robert Weaver Shirley, por várias razões, a começar por ter anotado que a vinculação entre Direito e Ciências Sociais achava-se já incontestavelmente instituída nos países de língua inglesa, enquanto que, no Brasil de então, infelizmente, tal vinculação se encontrava bastante limitada e incipiente, também pelo fato de que a cultura jurídica brasileira sempre foi altamente abstrata e formalista.[5]          

Shirley noticiou também que, além do acima exposto, uma outra área está em desenvolvimento no mundo ocidental – o estudo sociológico e antropológico das instituições jurídicas, incluindo Tribunais, advogados e a Polícia. O referido autor realizou estudo comparativo das instituições jurídicas, com especial relevância para a Antropologia, por considerar ser esse um aspecto fundamental da ciência.[6]

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Robert Weaver Shirley foi possivelmente o pioneiro, no Brasil, a conceituar “Antropologia Legal”, ressalvando que tal empreitada não seria possível se se prescindisse das teorias formuladas por Thomas Hobbes (Leviathan), Eugen Ehrlich (Fundamental Principles of the Sociology of Law), Wilhem Aubert (Sociology of Law), Jean Carbonnier (Flexible Droit), Hans Kelsen (General Theory of Law and State), L. A . Hart (The Concept of Law), Max Weber (Economy and Society), Anthony F. C. Wallace (Administrative Forms of Social Organization) etc.

A Antropologia, de uma maneira geral, tem um vasto campo de estudos, centrando suas atenções sobre o homem e a cultura; o que, por si só, já é sobremaneira vasto, abrangendo quase tudo o que existe. Isto a faz ter algo em comum com o Direito, que pretende abarcar toda a realidade social.


Notas

[1] In: http://naturlink.sapo.pt/Lazer/Cultura-e-Natureza/content . Acesso em 13 fev 2015.

[2] Idem.

[3] LINTON, Ralph. O homem – Uma introdução à Antropologia. (Trad. de Lavínia Vilela). 10ª. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 82-4.

[4] LARAIA, Roque de Barros. Cultura – Um conceito antropológico. 4. ed.,  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.

[5] SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987.

[6] Idem, ibidem.

Sobre a autora
Maria Francisca Carneiro

Doutora em Direito pela UFPR, Pós-doutora em Filosofia pela Universidade de Lisboa, membro do Centro de Letras do Paraná, da Italian Society for Law and Literature e do International Journal for Law, Language & Discourse.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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