Sabe-se que parte expressiva do setor agropecuário depende de crédito para custeio e investimento periódicos. Ocorre que os credores, quando da formalização dos empréstimos, exigem, em regra, garantias em excesso, limitando demasiadamente a capacidade de endividamento dos produtores, o que, por sua vez, compromete o ciclo da própria atividade.
Nas operações de crédito rural, tendo em vista a expressividade do valor dos financiamentos e as incertezas econômicas e naturais inerentes ao setor, são exigidas, em regra, garantias hipotecárias, como forma de resguardar a preferência na satisfação de tais créditos.
Recordamos inicialmente que a hipoteca se trata de um direito real de garantia pelo qual se vincula determinado bem à satisfação de uma dívida, ou seja, o credor obtém a preferência de ter a satisfação do seu crédito resguardada na hipótese de inadimplência. Tal garantia abrange a totalidade do bem, inclusive suas benfeitorias.
Atualmente, se um produtor possui um único imóvel rural e este é dado em garantia hipotecária de um financiamento e, se, por circunstâncias adversas, torna-se inadimplente, o mesmo entra em uma zona de risco, muitas vezes, irreversível, eis que pode ser que a partir de então não consiga obter mais crédito para o financiamento da sua produção, pois o seu único bem já se encontra gravado com uma garantia hipotecária, a qual, por sua indivisibilidade, atinge todo o imóvel. E, ainda que o produtor esteja em dia com o seu financiamento, caso necessite obter mais crédito para investimento e custeio, igualmente não consegue, pelo fato da hipoteca já existente abranger a totalidade do seu bem.
Nas relações obrigacionais em geral, especialmente as relativas ao crédito rural, deve se observar sempre, impreterivelmente, o princípio da função social do contrato, bem como ser refletido e ponderado o direito do credor de ter seu crédito devidamente garantido, e o direito do mutuário de não sofrer as graves consequências da garantia excessiva.
Os contratos que operacionalizam as operações de crédito rural devem ser celebrados em estrita observância dos princípios sociais dos contratos, dentre eles, da boa-fé (art.113 e 422), da função social do contrato (art.421, segunda parte), da proteção ao aderente nos contratos firmados por adesão (arts. 423 e 424) - todos os dispositivos citados do Código Civil. Bem como no princípio da equidade, previsto de forma implícita no CC.
Quanto ao princípio da equidade, tem-se que o mesmo é, de acordo com Amaral:
“um modelo ideal de justiça, um princípio inspirador do direito que visa à realização da igualdade material. É, antes e acima de tudo, um critério de decisão de casos singulares, apresentando-se sob a forma de cláusula geral. A equidade tem função interpretativa, recorrendo aos critérios da igualdade e da proporcionalidade para realizar o direito do caso concreto.”.[1]
Destacando-se, ainda, os princípios contratuais previstos no Código de Defesa do Consumidor: da vulnerabilidade do consumidor, (arts. 4, VI, 6, V, 28), da harmonia de interesses e do equilíbrio da relação (arts.4, III, 6, IV, V, 51, IV, XV, §§1, II, III) e da solidariedade.
Obtemperamos que os princípios sociais dos contratos possuem natureza jurídica idêntica à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a saber, de sobredireito, por se encontrarem acima dos direitos individuais e não se circunscreverem apenas ao direito civil.
A Carta Magna, igualmente, é permeada por princípios sociais contratuais, de ordem pública, previstos nos arts. 1, III e IV, 3 e 170.
Partindo dos fatos e premissas apontados acima, uma alternativa para os produtores rurais é a liberação parcial da hipoteca nas hipóteses em que: (I) o imóvel hipotecado valoriza-se de forma expressivamente superior à dívida; (II) ocorrer a realização de pagamentos parciais; e, (III) na revisão judicial da dívida, ser determinada a redução do valor devido.
As hipóteses apontadas acima, de forma ilustrativa, possuem como denominador comum a necessidade de redução da garantia hipotecária, quando ocorre uma desproporcionalidade entre o valor atualizado da dívida e o valor de mercado do bem dado em hipoteca, ou seja, se a dívida atualizada é de R$100.000,000 (cem mil reais) e o imóvel está valendo R$1.000.000,000(um milhão de reais), por exemplo, e o mesmo comporta cômoda divisão, neste caso, é óbvia a desnecessidade da hipoteca continuar recaindo sobre todo o imóvel.
Nos termos dos incisos II e III, do art. 3°, da Lei n° 4.829/65, são objetivos específicos do crédito rural:
“II - favorecer o custeio oportuno e adequado da produção e a comercialização de produtos agropecuários;
III - possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios;”.
Destacamos que, nos termos da norma acima transcrita, é objetivo específico do crédito rural favorecer o custeio e possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais.
O Decreto-Lei n° 167/67, que regulamenta os títulos de crédito rural, dispôs, de forma tímida, em seu art. 63, que o emitente poderia dispor de parte ou de todos os bens dados em garantia. Vejamos:
“Art 63. Dentro do prazo da cédula, o credor, se assim o entender poderá autorizar o emitente a dispor de parte ou de todos os bens da garantia, na forma e condições que convencionarem.”.
Todavia, como a norma prevê a dependência da autorização do credor, inexiste benefício ao produtor, posto que, na prática, dificilmente os credores abrem mão das garantias instituídas, por mais excessivas que sejam.
Já a Lei 9.138/95, que dispõe sobre o Crédito Rural, constou, em seu art. 5°, inciso VI, que:
“VI - caberá ao mutuário oferecer as garantias usuais das operações de crédito rural, sendo vedada a exigência, pelo agente financeiro, de apresentação de garantias adicionais, liberando-se aquelas que excederem os valores regulamentares do crédito rural;”.
No referido dispositivo já houve uma carga de cogência, ou seja, a liberação das garantias que excedessem a quantidade necessária para garantia da dívida, deveria (e devem!) haver (obrigatoriamente) a liberação. Todavia, não foi estabelecido nenhum parâmetro objetivo sobre as condições e formas para se proceder à liberação em comento, o que tornou inócuo o dispositivo, eis que, ausente tal regulamentação, as instituições financeiras se negam a promover a liberação. A questão ora apontada foi ressaltada no parecer da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, sobre o Projeto de Lei n° 1.843-A/2007, a seguir mencionado:
“Não é de hoje que se busca disciplinar a liberação de garantias excedentes vinculadas aos contratos de financiamento rural. Com a renegociação de dívidas estabelecida pela Lei nº 9.138, de 1995 e pela Resolução nº 2.471, de 1998, a liberação de garantias excedentes já havia sido permitida, entretanto, as instituições financeiras continuaram a rejeitar pedidos ou alegar a falta de regulamento para promover a liberação ou substituição das garantias, problemas estes que o referido projeto tenta minimizar.”.
Por fim, tem-se, de forma expressa e inequívoca, no art. 59, I e II da Lei 11.775/2008, que regula as operações de crédito rural, que:
“Art. 59. São asseguradas ao mutuário de operações de crédito rural:
I - a revisão das garantias;
II - a redução das garantias em caso de excesso.”.
O dispositivo legal retrotranscrito prevê expressamente que é assegurada, a todos os mutuários de operações de crédito rural, a possibilidade de revisão e redução das garantias, caso excedentes.
Ocorre, todavia, que, novamente, pecou referida norma pela falta de especificidade quanto aos parâmetros objetivos pelos quais poderia ser realizada tal redução. Tais parâmetros, neste momento, estão sendo objeto de proposta legislativa em tramitação da Câmara dos Deputados.
O Projeto de Lei n° 1.843-A/2007 dispõe, de forma coercitiva, que as instituições financeiras deverão liberar parcialmente as hipotecas referentes a propriedades rurais dadas em garantia de operações de crédito rural:
“Art. 1º Esta Lei torna obrigatória a liberação parcial de hipotecas referentes a propriedades rurais dadas em garantia de operações de crédito rural.
Art. 2º Ficam as instituições financeiras obrigadas a liberar, no percentual exato do montante amortizado, hipotecas referentes a propriedades rurais dadas em garantia de financiamentos no âmbito do crédito rural.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente a amortizações que, isolada ou cumulativamente, sejam iguais ou superiores a trinta por cento do valor da dívida objeto da garantia hipotecária.”.
Pelo disposto no projeto de lei acima, tem-se que: (I) a partir do momento que o produtor pagar 30% ou mais da dívida garantida por hipoteca, poderá ele requerer a redução da garantia; e (II)a liberação deverá ser realizada na proporção do valor já quitado da dívida. Tendo em vista ainda, evidentemente, o valor de mercado do imóvel, no momento da redução.
Destaca-se que constou no Parecer da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, sobre o projeto em epígrafe que:
“A iniciativa de propor medidas para liberação de garantas em operações de crédito rural, na proporção em que as amortizações vão sendo realizadas, limitada ao mínimo de 30% isolada ou cumulativamente, demonstra a preocupação que o Autor teve, com a demanda de milhares de produtores, que mesmo amortizando semestral ou anualmente as parcelas de suas dívidas, continuam com a totalidade de seu patrimônio vinculado como garantia de contrato rural.”.
É patente, portanto, a necessidade de uma norma prevendo e regulamentado a redução da garantia hipotecária, no crédito rural.
No mesmo sentido dispõe o Projeto de Lei n° 4.171/2008, em tramitação na Câmara dos Deputados.
A crítica que fazemos aos referidos projetos ora em tramitação, concerne ao fato de não preverem como hipóteses de redução aquelas em que houver expressiva valorização do imóvel por causa natural ou obra humana, de modo em igualmente se vislumbre desnecessária e desarrazoada a manutenção da hipoteca sobre a integralidade do bem. Poderia, portanto, o legislador inserir tal hipótese de redução. Entendimento análogo a este foi adotado no Direito Português.
Registramos, ainda, que as hipóteses de redução de hipoteca não deveriam se restringir apenas às operações de crédito rural, poderiam abarcar as demais espécies de dívidas, desde que divisíveis os bens hipotecados, ou se existirem unidades imobiliárias autônomas.
A título ilustrativo, faremos alguns notas sobre o Direito Comparado.
O art. 2.873 do Código Civil Italiano dispôs sobre a possibilidade de redução, de forma proporcional, da hipoteca quando os pagamentos parciais realizados pelo devedor representarem mais de 20% da dívida original. Determinado que o devedor poderá requerer a redução da hipoteca, proporcionalmente à quantidade necessária para a garantia do saldo remanescente.
Já no Código Civil Português, em seu art. 720, que positivou a Redução Judicial da Hipoteca, é disposto que poderá ser pleiteada a redução, caso ocorra o pagamento de 1/3 da dívida, ou seja, 33% da dívida – regra essa bastante similar à adotada no projeto em tramitação no nosso Congresso Nacional. E, ainda, há uma segunda hipótese, na qual, se, em virtude de acessões naturais ou benfeitorias, o bem hipotecado tiver valorizado em mais de 1/3 do seu valor à data da constituição da hipoteca, igualmente, poderá ser requerida sua redução.
Estes são os breves e sucintos apontamentos que entendemos pertinentes sobre a matéria, a qual necessita de um maior debate no meio acadêmico, e uma adequada positivação pelo poder legislativo.
Referências
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução, p. 90-93. In: FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Curitiba: Jurá, p.167-7, 2011.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 11.775, de 17 de setembro de 2008. Institui medidas de estímulo à liquidação ou regularização de dívidas originárias de operações de crédito rural e de crédito fundiário; altera as Leis nos 11.322, de 13 de julho de 2006, 8.171, de 17 de janeiro de 1991, 11.524, de 24 de setembro de 2007, 10.186, de 12 de fevereiro de 2001, 7.827, de 27 de setembro de 1989, 10.177, de 12 de janeiro de 2001, 11.718, de 20 de junho de 2008, 8.427, de 27 de maio de 1992, 10.420, de 10 de abril de 2002, o Decreto-Lei no 79, de 19 de dezembro de 1966, e a Lei no 10.978, de 7 de dezembro de 2004; e dá outras providências. Brasília, 2008.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.171, de 28 de outubro de 2008. (Do Sr. Roberto Brito – PP/BA). Dispõe sobre a liberação de garantias hipotecárias em operações de crédito rural; aguardando parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, pela aprovação (relator: DEP. JOSÉ GUIMARÃES). Brasília, 2008.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 1.843-A, de 22 de agosto de 2007. (Do Sr. Antônio Carlos Mendes Thame – PSDB/SP). Dispõe sobre a liberação de garantias hipotecárias em operações de crédito rural; tendo parecer da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, pela aprovação (relatora: DEP. JUSMARI OLIVEIRA). Brasília, 2007.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, 2002.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 9.138, de 29 de novembro de 1995. Dispõe sobre o crédito rural, e dá outras providências. Brasília, 1995.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor, e dá outras providências. Brasília, 1990.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei n. 167, de 14 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre títulos de créditos rural, e dá outras providências. Brasília, 1967.
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BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro, 1942.
ITÁLIA. II Códice Civile Italiano. R.D. 16 marzo 1942, n.262. Approvazione del texto del Códice Civile. Roma, 4 aprile 1942.
PORTUGAL. Decreto-Lei n. 47.344, de 25 de novembro de 1966. Aprova o Código Civil e regula a sua aplicação - Revoga, a partir da data da entrada em vigor do novo Código Civil, toda a legislação civil relativa às matérias que o mesmo abrange. Lisboa, 1966.
Nota:
[1] AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução, p. 90-93, in, FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Editora Jurá. Curitiba, 2.011, p. 167-168.