INFANTICÍDIO INDÍGENA

o relativismo cultural e o papel dos direitos humanos

Leia nesta página:

análise desse costume como, um simples hábito enraizado nas tradições indígenas, ou se representa uma grave lesão ao direito à vida.

RESUMO:

O infanticídio indígena é uma prática cultural que ocorre em algumas tribos indígenas brasileiras, a qual vitima crianças de várias idades, em busca da preservação cultural da etnia. Sendo necessário uma análise desse costume como, um simples hábito enraizado nas tradições indígenas, ou se representa uma grave lesão ao direito à vida. Buscando assim uma resposta sobre o tema, por meio de análises sobre a manifestação cultural indígena, os instrumentos normativos nacionais e internacionais acerca dos direitos humanos e aos direitos dos povos indígenas, com aspectos éticos, morais, sociológicos, antropológicos, além do conflito entre os argumentos do relativismo cultural e do universalismo dos direitos humanos. Apesar da Constituição Federal garantir aos índios a proteção de seus costumes e tradições, a constituição também garante o direito à vida, que deve sobrepor à prática cultural. A mudança desse costume deve ser buscada pelo diálogo intercultural, acompanhada de políticas públicas de amparo às comunidades indígenas.

Palavras-chave: infanticídio indígena; direitos humanos; costumes; diálogo intercultural.

1 INTRODUÇÃO

A prática tradicional do “infanticídio indígena” consiste no assassinato de crianças indesejadas pelo grupo, é comum em diversas tribos brasileiras, é um dos assuntos que melhor representam o embate entre o respeito à diversidade cultural e a proteção de um dos direitos humanos mais fundamentais, o direito à vida. Os indígenas brasileiros são constituídos de grupos sociais autônomos, com práticas e costumes próprios. E cada etnia possui uma visão diferenciada de mundo. Cada um destes grupos possui um conceito diferente sobre o que é a vida e a morte do ser humano. Esta visão de mundo algumas vezes se contrapõe com os valores universais dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente e também na nossa Carta Magna. Cabendo ao Estado tomar alguma postura diante de tal prática.Este conflito de valores gera o debate acerca de até que ponto se deve preservar determinadas culturas, que legitimam práticas que se contrapõem aos direitos mais básicos e à própria dignidade da pessoa humana

O trabalho se dá início com uma breve história da cultura indígena, que vem desde a colonização até a aquisição de direitos que atribuem cidadania para o povo indígena, com a criação do Estatuto do Índio. Será abordado os aspectos dos atuais povos indígenas brasileiros passando também por uma ótica antropológica geral, sobre a perspectiva relativista, onde se tem uma postura de tolerância e respeito em relação aos costumes e traços culturais diferentes dos nossos, e a perspectiva universalista ética, que defende que o homem, mesmo distinto e disperso compartilham de valores inerentes. Diante desse conflito relativista e universalista a antropologia propõe um solução que é a ética dialógica, que vai nos trazer no decorrer do trabalho uma solução antropológica para os conflitos de direito.

Será abordado também o relativismo cultural e universalismo ético, que irá falar sobre como a prática do infanticídio indígena tem recebido inúmeros aspectos positivos e negativos: para alguns este exercício fere diretamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e uma cultura que assim procede está em controvérsia com o direito humano à vida digna, cabendo ao Estado tomar alguma postura diante de tal prática. Esta visão do costume indígena é fruto de uma concepção hegemônica do que é vida, do que é ético, do que é humano, sem uma clara demarcação de quem tem legitimidade para limitar estas fronteiras.

Abordando sobre a proteção dos direitos humanos, que ganharam força devido à forte comoção após a 2ª Guerra Mundial, momento em que a comunidade internacional criticava as violações perpetradas durante os anos que duraram a Guerra. Houve uma procura maior por mecanismos que garantissem a proteção da dignidade humana, sendo base para discussões relevantes entre os Estados. Surgindo assim um processo de universalização dos direitos humanos, mediante a elaboração de tratados, convenções e criação de órgãos competentes para a fiscalização do cumprimento desses direitos.

Pretende-se também considerar a importância da diversidade cultural sem ignorar seu dinamismo, uma vez que mudanças são necessárias e acontecem inevitavelmente com o contato interétnico. Todavia, estas considerações não significam tolerância à violação da dignidade humana de crianças e pais em total posição de vulnerabilidade, e sob o consentimento dos órgãos governamentais que deveriam protegê-las, e ainda mais sob o argumento da não interferência cultural.

As principais questões deste trabalho são o debate entre as posições conflitantes de liberdade cultural e proteção dos direitos humanos, por meio de uma relação dialógica com os principais sujeitos interessados nessa comunicação, que são os povos indígenas, respeitando sua autonomia. As principais questões deste trabalho são o debate entre as posições conflitantes de liberdade cultural e proteção dos direitos humanos, por meio de uma relação dialógica com os principais sujeitos interessados nessa comunicação, que são os povos indígenas, respeitando sua autonomia.

2. UMA VISÃO ANTROPOLÓGICA

Os povos indígenas no Brasil incluem um grande número de diferentes grupos étinicos que habitam, ou habitaram o território brasileiro com suas raízes, remontam às Américas desde antes da chegada dos europeus a este continente, por volta de 1500. Muitas tribos que existiam no país a época de Cabral, desapareceram, ou por motivo de serem absorvidas na sociedade dos colonizadores, quer dizimadas pela violência que os índios foram submetidos durante os últimos cinco séculos. Nesse período, nações inteiras foram massacradas ou escravizadas, ou mortas por doença e fome depois de suas terras tomadas e meios de sobrevivência terem sido destruídas. A catequização por missionários europeus levou um grande desaparecimento de suas crenças religiosas e outras tradições culturais, e a relocação forçada provocou uma enorme mistura.

Estimativas da população indígena na época do descobrimento, aponta que existiam no território brasileiro mais de mil povos, sendo 5 milhões de indígenas. Atualmente no Brasil vivem cerca de 820 mil índios nas aldeias, que perfazem aproximadamente 0,4% da população brasileira. Com base no Censo Demográfico de 2000, pesquisadores do IBGE constataram que para cada mil crianças indígenas nascidas vivas, 51,4 morreram antes de completar um ano de vida, enquanto no mesmo período, a população não indígena apresentou taxa de mortalidade de 22,9 crianças por cada mil. A taxa de mortalidade infantil entre índios e não-índios registrou diferença de 124%. E a mortalidade infantil indígena chegou a 74,6 mortes nos primeiros 12 meses de vida. Curiosamente, nas notícias do IBGE e do Ministério da Saúde não há qualquer explicação da causa mortis. Muitas das mortes por infanticídio vêm mascaradas nos dados oficiais como morte por desnutrição ou por outras causas misteriosas (causas mal definidas - 12,5%, causas externas - 2,3%, outras causas - 2,3%).

Mais da metade da população indígena está localizado nas regiões Norte e Centro Oeste do Brasil, principalmente na área da Amazônia Legal, mas há índios vivendo em todas régios brasileiras, em maior ou menor número.

A pergunta sobre o que seja a cultura, deve ser o ponto de partida para uma correta compreensão daquilo que algumas pessoas observam na prática de algumas comunidades indígenas e tem definido como “infanticídio”. Assim podemos observar que tal pratica só possa ser compreendida de maneira correta e adequada quando se fizer presente, nos olhos de quem contempla, sua inseparável relação com a cultura do povo que possui tal prática.

Segundo Laraia, alguns antropólogos concordam que “culturas são sistemas de padrões de comportamento que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos.” (LARAIA, 1986. p. 59). E para que tenhamos uma visão cultural maior, Laraia aborda em seu livro Teorias Idealistas de Cultura: Roger Keesing. 1) cultura como um sistema cognitivo.” (cultura é um sistema de conhecimento que consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para operar de maneira aceitável)” (LARAIA, P.61); 2) cultura como sistema estrutural, segundo a perspectiva de Claude Lévi Strauss, que define cultura como “um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente humana” (LARAIA, P. 61); 3) cultura como sistema simbólico, Geertz e Schineider são adeptos desta teoria, Geertz afirma que “todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa, e este programa é chamado de cultura”. (LARAIA, 1986 p. 62).

De acordo com estas várias definições citadas do conceito de cultura, percebe-se que esta gera muitas formas de ser explicada, mas formas que de certa maneira se completam. Sendo assim, se torna fato que não podemos pensar em grupos indígenas brasileiros sem sentir o peso histórico do processo de exploração que foram submetidos, não apenas em contatos com colonizadores, mas também com outros grupos que sempre buscaram lucros e vantagens. Apesar do encontro intercultural entre colonizadores e povos indígenas ter marcado um tempo de dominação daqueles sobre estes, houve, sem dúvida, uma relação de troca de elementos culturais e de mudança, em que as etnias em contato assimilaram determinados valores e costumes umas das outras, num processo intenso de dinâmica.

2.1 O RELATIVISMO CULTURAL E O UNIVERSALISMO ÉTICO

Ainda praticado por cerca de 20 etnias entre as tribos brasileiras, o infanticídio indígena leva à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo. Há quem argumente que o infanticídio é parte da cultura indígena. Outros afirmam que o direito à vida, previsto no artigo 5º da Constituição, está acima de qualquer questão. De maneira geral, podemos ver que o contato entre povos, entre etnias diferentes é marcado pelo estranhamento e pelo conflito.

A troca de experiências culturais em sociedades diferentes é comum e importante para que membros pensem no modo de sua organização social, nos seus preconceitos, para que posso viver em harmonia, e este contato intelectual está relacionado ao relativismo ético.

O relativismo ético é baseado na compreensão que existe uma ampla diversidade cultural e cada cultura deve ser respeitada, pois cada um tem sua coerência interna. Sendo assim, um mecanismo metodológico que visa a realização de pesquisas que ampara a percepção dos antropólogos, de que os traços culturais possuem um significado para a sociedade. Assim, essa teoria não permite que um indivíduo proponham mudanças em seu ambiente cultural, pois a cultura é imutável. O elemento cultural seria relevante e absoluto, o costume como algo natural e a pratica como algo justificável. Ou seja, a análise de uma cultura, ao constatar a diferença, não se pode fazer hierarquização em superiores e inferiores ou em bem ou mal, mas reconhecer a vasta riqueza que existe nas diferenças.

Para Lidório:

O relativismo cultural, inicialmente desenvolvido por Franz Boas e com base no historicismo de Herder, defende que bem e mal são elementos definidos em cada cultura. E que não há verdades culturais visto que não há padrões para se pesar o comportamento humano e compará-lo a outro. Cada cultura pesa a si mesma e julga a si mesma. (2008, p. 02)

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O relativismo cultural deve ser visto fora do sistema da comunidade da qual se analisa e jamais compará-lo com outras culturas, ou seja, mantendo-se a neutralidade às diferentes culturas. Para o relativismo cultural cada comunidade cria as suas próprias regras, de acordo com suas culturas e valores, sendo que cada uma delas determina o bem e o mal, o certo e o errado. Todavia, surgiram críticas à teoria relativista, de modo que essa radicalização cultural impede um diálogo entre outras culturas, o que dificulta demonstrar que existem condições humanas comuns, além de ser a maneira de encobrir atos atentatórios à dignidade da pessoa humana.

A teoria do universalismo cultural, enfatiza que todos os seres humanos, independentemente de sua identidade cultural, são titulares de valores universais, o que consequentemente estabelece os direitos humanos como universais. Se concretizando na Segunda Guerra Mundial, quando as barbáries cometidas aos seres humanos, deu-se início a um processo de elaboração de documentos internacionais com o escopo de proteger todos os indivíduos, sem levar em consideração sua crença, raça, etnia ou sexo. Primeiramente a ONU, em 1948, elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhecendo que todos os seres humanos eram titulares de direitos, considerados inalienáveis. Posteriormente a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reafirmou que “Todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase”.

O universalismo ético, visa a proteção de cada indivíduo, independentemente da cultura adotada. Apesar das culturas existentes entre os povos, existe o respeito à dignidade da pessoa humana, que se revela como um valor supremo entre os seres humanos.

Dentre esses valores que são universais, comuns a todas as culturas, existe um mínimo de valores que são fundamentais, inderrogáveis e irredutíveis, e que constituem um padrão mínimo legal. Estes são os direitos humanos e sociedade ou Estado algum estão autorizados a reduzi-los, independente de seus próprios valores culturais. (BARRETOS, 2006, p. 10)

A crítica apresentada à teoria do universalismo está no fato de que os direitos humanos foram construídos a partir de uma visão ocidental. Isso significa que se torna praticamente impossível querer impor valores à cultura completamente diferente das ocidentais. Tese que se constata pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, elaborada por apenas países do Ocidente, mas também há direitos que foram baseados na cultural oriental, originados de um consenso universal, tais como a escravidão, tortura, que são reconhecidos como aqueles delitos inadmissíveis de serem praticados por qualquer comunidade.

Observa-se que há uma grande divergência entre as teorias, e ambas buscam elementos para se validar sobre a outra, difícil chegar a um consenso. Mas surge uma soluçãoque sairia da visão teórica, apesar da diversidade cultural existente no mundo e cada uma com suas peculiaridades, deve-se sim buscar um diálogo intercultural, porém que se reprimam quaisquer atos atentatórios à dignidade da pessoa humana, pois há direitos humanos que não pertencem apenas a determinadas culturas, seja ela ocidental ou oriental, mas tornaram-se universais. A hermenêutica diatópica, na qual se almeja um diálogo intercultural, com objetivo de criar condições para que os direitos humanos sejam postos a serviço de uma política emancipatória.

3.  UMA PERSPECTIVA JURÍDICO CULTURAL

O ponto de tensão, é a contraposição do direito à vida, garantido constitucionalmente no Brasil e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e o direito à preservação dos costumes pelos povos indígenas, também garantido pela Constituição Brasileira e internacionalmente.

No ordenamento jurídico brasileiro o crime de infanticídio está disciplinado no Capítulo (I) Dos crimes contra a vida, artigo 123 do Código Penal e apresenta a seguinte redação:

 Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos.

O estado puerperal consiste no período pós parto ocorrido entre a expulsão da placenta e a volta do organismo da mãe para o estado anterior a gravidez. O infanticídio é classificado como crime próprio, quer dizer que somente a mãe pode ser autora da conduta criminosa descrita no tipo, pois exige-se a qualidade especial de "ser mãe", assim como só o recém-nascido pode ser sujeito passivo.

Sendo importante destacar que o tempo da conduta também é determinante para a consumação do crime, visto que se a morte intencional do infante se dá antes do parto, configura-se o crime de aborto e não infanticídio. O mesmo vale para o assassinato de crianças, situação em que se configura homicídio e não o delito previsto no art.123 do Código Penal.

Verifica-se que a prática indígena é motivada pelas mais diversas razões sócio culturais, apresenta características que a difere da conduta no Código Penal. A começar pelo sujeito ativo, o infanticídio pressupõe, a participação de apenas um agente: a mãe. Em casos relatados nas comunidades indígenas a morte de recém-nascidos se dá com a participação de outros membros da tribo e não só da mãe, não havendo, por vezes, a interferência da mãe, que se vê obrigada a sacrificar o bebê por determinação do grupo. Não há, ainda, a necessária ocorrência do estado puerperal, elemento fundamental na definição do infanticídio: o fator preponderante é a preservação cultural da comunidade e social do próprio membro. Dadas as circunstâncias, o que se verifica é a prática do crime de homicídio algumas vezes que se disfarça de infanticídio, até porque o assassinato em sua grande maioria, não se dá logo após o nascimento, mas quando os membros do grupo se dão conta de que a criança possui alguma deficiência física ou mental, que se manifesta tardiamente.

Tal prática, para esses povos, pode ser justificada tanto no fato de os bebês serem frutos de relações extraconjugais ou incestuosas, ou até mesmo por serem filhos de mães solteiras, ou pelo fato de a criança ser portadora de deformações físicas, retardamentos e outras deficiências mentais e, ainda, pelo nascimento de gêmeos

Em âmbito penal o objeto jurídico do crime de Infanticídio, é o direito à vida, tanto do neonato como o do nascente, que são os sujeitos passivos. O neonato é o que acabou de nascer, e o nascente o que é morto durante o parto.Não há impedimento de que um terceiro responda por infanticídio diante do concurso de agentes. De acordo com a exposição de motivos do Código Penal: “o infanticídio é considerado um delectumexceptum quando praticado pela parturiente sob a influência do estado puerperal. No entanto, esta cláusula, como é evidente não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica, é necessário que fique averiguado estar realmente sobrevindo em consequência daquele, de maneira a diminuir a capacidade de entendimento ou de autodeterminação da parturiente.”

Sobre o direito à diversidade cultural, expõe Paulo Bonavides:

“O direito à diversidade cultural é uma garantia concedida a determinados grupos culturalmente diferenciados de que suas tradições, crenças, e costumes possam ser preservados e protegidos frente a movimentos de interculturalidade, ou seja, ninguém pode ser obrigado a abster-se de possuir suas próprias tradições, crenças e costumes, ou mesmo de ser obrigado a aderir às tradições, crenças e costumes de outros grupos.” (1999. P, 488)

Os direitos culturais em âmbito internacional que encontram-se inseridos em vários documentos trazendo como exemplo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e posteriormente em 1966, foi realizado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no qual previa a obrigação dos Estados protegerem a diversidade cultural e garantirem o seu pleno exercício. Em 2001, foi criada a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Tratando agora em âmbito nacional no Brasil, a primeira Constituição a garantir os direitos culturais foi a de 1988, há também alei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 que dispõe o estatuto do índio e trazendo por fim entendimentos que o Supremo Tribunal Federal dá sobre as práticas culturais dos índios.

Tendo em vista que a questão do infanticídio caracteriza-se uma prática cultural enraizada em algumas tribos, deve-se agora analisar a possibilidade ou não de punição no âmbito penal, essencialmente no tocante a imputabilidade. Assim, para iniciar a análise da questão, faz-se uma breve análise da capacidade dos índios

Primitivamente, o infanticídio não se constituía como crime, como expõe Vicente de Paula Rodrigues Maggio:

“Verifica-se que entre os povos primitivos da humanidade, a morte dos filhos e das crianças não constituía crime, nem atentava contra a moral ou os costumes, pois, as mais antigas legislações penais conhecidas, não fazem qualquer referência a esse tipo de crime, concluindo ser, então, permitida a conduta hoje delituosa.” (2004. P, 40)

O infanticídio só é punível a título de dolo, ou seja, que haja a vontade de concretizar os elementos subjetivos descrito no artigo 123 do Código Penal. Não existe a ocorrência de infanticídio culposo, pois não há na legislação a modalidade culposa. Damásio de Jesus defende que se a mãe matar o próprio filho, sob influência do estado puerperal agindo culposamente, esta não responde por infanticídio nem homicídio. Porém, defende também que, se a mãe matar a criança sem estar sob efeito do estado puerperal, e agindo culposamente, haverá homicídio culposo, descrito no artigo 121, §3º, do Código Penal.

É notório que a sociedade brasileira ainda apresenta muitas dúvidas em relação à capacidade civil e penal dos indígenas. Da leitura do artigo 12 da Constituição Federal, conclui-se que o índio, quanto à sua nacionalidade, é considerado brasileiro nato. No entanto, o exercício de direitos civis e políticos pelos índios é regulamentado por legislação especial (artigo 5º, parágrafo único da Lei nº. 6.001/73).

A personalidade civil, no Direito brasileiro, é adquirida com o nascimento com vida. Isto já era assim desde a vigência do Código Civil de 1916. (CC/16) e continua sob a égide do Novo Código Civil (NCC).

A partir do nascimento com vida, toda e qualquer pessoa passa a ser automaticamente capaz de direitos e deveres na vida civil. Nesse aspecto o Código não faz nenhuma distinção entre o “homem branco” e o índio. Ambos, desde que nascidos com vida são dotados de personalidade e capacidade jurídicas. Ocorre que a capacidade acima tratada é uma capacidade de direito e não de fato. A capacidade de fato, consiste na aptidão para pessoalmente se adquirir direitos e contrair obrigações. Genericamente falando, todas as pessoas nascem com capacidade civil.

Como não há lei especial que trate da questão da capacidade civil do índio após o advento do Novo Código Civil, e com base no princípio “Lex Posterior generalis non derogat priori speciali”, tem-se que o Estatuto do Índio, estaria apto para disciplinar.

3.1 CONFRONTO DA CULTURA INDÍGENA BRASILEIRA E AS LEIS

A Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948 dispõe no seu artigo primeiro que: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos” afirma ainda em seu artigo terceiro que: “toda pessoa tem direito a vida, a liberdade e segurança pessoal”. Declara também: “todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção,a igual proteção da lei... contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.”

A posição da ONU com relação à universalidade dos direitos humanos é bem clara, promulgando que estes direitos são para todos sem qualquer distinção. A questãode que o Estado se mantém numa política não intervencionista permitindo a violação dos direitos humanos pela preservação da cultura, muitos antropólogos justificam com a noção do relativismo jurídico a posição de que os direitos humanos para o relativismo cultural,seriam relativos e não universais.

No Brasil, o próprio Supremo Tribunal Federal ao se manifestar sobre os limites da expressão cultural, nas ações que questionavam o Festival da Farra do Boi e a Lei que autorizava a Briga de Galo, reconheceu que o direito à prática cultural não é absoluto, devendo impor limites. Nos casos analisados, o STF entendeu que os animais não podiam ser expostos a prática cruel, sob o argumento de ser manifestação cultural. Apesar de o infanticídio ser entendido como prática cultural de algumas tribos indígenas deve ser combatido pelo Estado com intuito de preservar vida. Pode-se conseguir mudar essa manifestação cultural através do diálogo intercultural, o qual pode levar algum tempo para mostrar aos índios que existem outras visões de mundo. Nesse ínterim, é necessário que o Estado institua políticas públicas voltadas para a comunidade indígena, para que se possa mostrar aos seus membros que a criança nascida com alguma deficiência pode ser curada, além de oferecer atendimento pré-natal às mães como forma de prevenir futuras anomalias aos bebês e métodos contraceptivos.

Da mesma forma, a incoerência da postura adotada pelo governo, se analisados outros dispositivos jurídicos internos, tais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que não faz distinção entre crianças indígenas e não indígenas.

A Constituição Federal, no art. 231, dispõe sobre os direitos reconhecidos aos índios, destacam-se os costumes e as tradições, in verbis: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. De outro lado, a Constituição Federal, em seu artigo 1°, inc. III, institui como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e, logo no art. 5º, caput, garante aos brasileiros e estrangeiros a inviolabilidade de direito à vida, à liberdade e à igualdade. A Constituição Federal, ao garantir esses direitos humanos fundamentais, não estabeleceu exceção em sua aplicabilidade, ou seja, deixa-se de aplicá-los quando os atos violadores daquele direito estiverem enraizados na cultura. Todavia, não se pode desprezar os costumes e tradições das tribos indígenas, que se organizam conforme os seus antepassados lhe ensinaram; merecem também proteção dos órgãos públicos. Nessas questões culturais, quando envolve infanticídio, muitas índios já não aceitam mais a prática de tal ato por considerarem um sofrimento, tanto para a criança quanto para a família. Não há dúvidas de que o infanticídio é uma afronta ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, inadmite-se sua prática sob o argumento de ser uma tradição.

O Estatuto do Índio de 1973 traz em si a questão do regime tutelar em relação aos indígenas, que envolve a tutela incapacidade e a tutela proteção. Com o advento da Constituição/88, fica controvertido o entendimento quanto à recepção dos dois aspectos do regime tutelar.

Barreto afirma que:

“[...] a CF/88  que reconhece o índio como diferente, sem que essa diferença possa ser confundida com incapacidade e que reconhece a capacidade do índio para ingressar em juízo na defesa de seus direitos sem depender da intermediação – alterou substancialmente a natureza do regime tutelar indígena: primeiro, esse regime passou a ter natureza exclusivamente protetiva; segundo, passou a ter estatura constitucional. Portanto, esta proteção constitucional está protegida de ataques pela via do processo legislativo ordinário”.(2009, p. 43)

 [...] que seria o cúmulo da contradição invocar a tutela indígena como base de entendimentos que coloquem em risco, ou não protejam, o direito mais importante de qualquer ser humano: o direito à vida. A CF/88, numa proposta de interação, reconheceu aos indígenas direitos e também impôs à União o dever-poder de “proteger e fazer respeitar” esses direitos.(2009, p.43)

Vale considerar também o posicionamento de Robert Aléxy:

Para que princípios, juntamente com as regras, são espécies do gênero norma, e possuem o caráter de mandatode otimização, em que toda realização deve ser na maior medida possível, sugerindo a idéia de avaliação das possibilidades jurídicas e reais existentes. (2002, p. 82/87)

[...] O conflito entre regras pode ser solucionado, segundo o ordenamento normativo do direito, de duas maneiras: ou através de uma cláusula de exceção que uma das regras teria, o que eliminaria o conflito ao estabelecer uma solução específica para o caso, ou então, uma delas estaria a lesar o ordenamento jurídico o que a tornaria inválida, e, portanto deveria tal regra ser expelida do mesmo ordenamento”. (Aléxy, 2002, p. 87/89)

Para este autor, a colisão entre os princípios, diferentemente das regras, se dá no plano do seu peso valorativo e não no plano da validade para o qual é imprescindível o texto. Essa diferença na solução dos conflitos entre regras e entre princípios, dá-se justamente pelo fato de que, no segundo caso, a solução não está no ordenamento normativo do direito, mas na ponderação do hermeneuta. A ponderação de princípios é chamada por Aléxy de máxima da proporcionalidade, que por sua vez é composta por máximas parciais, quais sejam: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Na primeira, busca-se estabelecer uma relação entre o meio empregado e o fim atingido, na segunda deve-se considerar qual o meio mais benéfico ao destinatário e na terceira máxima parcial, a ponderação nos valores propriamente ditos.

CONCLUSÃO

Nota-se, por fim, a colisão de Direitos Fundamentais do infanticídio indígena, notadamente no Brasil. Há colisão entre o direito à prática cultural dos índios, costumes, tradições  e o direito à vida do ser humano, ambos positivados na Constituição Federal.

Apesar de o infanticídio ser entendido como prática cultural de algumas tribos indígenas deve ser combatido pelo Estado com intuito de preservar a vida. Podendo sim, conseguir mudar essa manifestação cultural através do diálogo intercultural, o qual pode levar algum tempo para mostrar aos índios que existem outras visões de mundo. É necessário também como medida que o Estado institua políticas públicas voltadas para a comunidade indígena, para que se possa mostrar aos índios que a criança nascida com alguma deficiência pode ser curada, além de oferecer atendimento pré-natal às mães como forma de prevenir futuras anomalias aos bebês e métodos contraceptivos. O diálogo deve ser sempre no intuito de preservar a vida e dignidade da pessoa humana.

O Direito à diversidade cultural é um direito legitimo, mas limitado, não podendo ser usado para justificar qualquer violação aos direitos humanos. Como se pode ver, por exemplo, nenhum Estado poderá evocar de suas tradições culturais para justificar a pratica da escravidão ou tortura. Da mesma forma não poderia o direito a diversidade cultural ser forma de legitimação a violação a vida. Portanto qualquer tentativa de justificar as pratica de infanticídio não possuem respaldo em nenhuma legislação internacional.

Assim, conclui-se que há necessidade de elaboração de uma lei que melhor atenda aos interesses dos índios e mais, se faz extremamente necessária a elaboração de lei que exija a realização do laudo antropológico, que é um instrumento de suma importância, vez que somente ele poderá dizer com precisão se aquele índio tinha discernimento e capacidade de compreender a ilicitude da sua conduta ainda que os índios têm um entendimento próprio do que é vida, do que é digno.

REFERÊNCIAS

ALÉXY, Robert. Teoria de losDerechosFundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002.

-A CAPACIDADE CIVIL E A CULPABILIDADE PENAL DOS INDÍGENAS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/86674.Acesso em: 26 abr. 2016.

                              

BARRETO, Helder Girão. Direitos Indígenas: Vetores Constitucionais. 1ª ed., (ano 2003), 4ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2009

BARRETOS, Maíra de Paula. Universalidade Dos Direitos Humanos E Da Personalidade Versus Relativismo Cultural. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/manaus/estado_dir_povos_maira_de_paula _barreto.pdf, 2006. Acesso em 07 de Abril de 2016.

- BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 488.

- IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/indigenas/graficos.html. Acesso em: 12 de abril de 2016.

-LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: zahar, 1986.

- LIDÓRIO, Ronaldo. Não há morte sem dor: uma visão antropológica sobre a prática do infanticídio indígena no Brasil. In: SOUZA, Isaac Costa de; LIDÓRIO, Ronaldo (Org.). A questão indígena, uma luta desigual: missões, manipulação e sacerdócio acadêmico. Viçosa, MG: Ultimato, 2008

- MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium Editora, 2004. p. 40

- MOURA, Márzio Ricardo Gonçalves de. Uma análise atual da situação da capacidade civil e da culpabilidade penal dos silvícolas brasileiros. Revista CEJ: v. 13, n. 45, p. 71.

Sobre os autores
Palloma Massette Silva

Advogada Pós graduando em Direito Civil e Processo Civil

Saulo Seregatte

Advogado Tributarista Bacharel em Direito pela UNDB Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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