Aplicabilidade da Lei nº 12.850/13 no âmbito da Polícia Judiciária Militar: o equívoco da expressão "delegado de polícia"

02/11/2017 às 01:37

Resumo:


  • A Lei 12.850/13 definiu organizações criminosas com requisitos estruturais, finalísticos e temporais, buscando ampliar os meios de combate a esse tipo de estrutura delituosa.

  • Após a Lei 13.491/17, o crime previsto no art. 2º da Lei 12.850/13 pode ser considerado crime militar, permitindo a aplicação dos meios de obtenção de prova previstos na Lei 12.850/13 pela Polícia Judiciária Militar.

  • Houve um equívoco técnico ao utilizar a expressão "delegado de polícia" na Lei 12.850/13, quando se referia à autoridade presidente do inquérito policial, devendo ser lida como "autoridade presidente do inquérito policial (comum ou militar)".

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Este artigo tem como escopo demonstrar a possibilidade da aplicação da Lei de Combate às Organizações Criminosas (Lei 12.850/13) pela Polícia Judiciária Militar (PJM), mormente após a promulgação da Lei 13.491/17, que ampliou o conceito de crime militar.

1.INTRODUÇÃO

Diante do aumento incessante do número de organizações criminosas e das maneiras de atuação cada vez mais difícil de serem investigadas desse fenômeno criminal que está destruindo a paz da sociedade, se utilizando até mesmo da própria máquina estatal para cometer seus delitos, o Estado percebeu que não dava mais para ficar inerte.

O perene desenvolvimento e a constante mutação do crime e do criminoso engendrou a necessidade de uma persecução penal mais pujante, oferecendo aos seus encarregados meios mais sólidos e eficazes para conseguir combater essas organizações criminosas.

Após algumas leis inócuas na tentativa de combater esses grupos delinquentes - seja por não conceituar o que se entendia por “organização criminosa”, seja por não tipificar penalmente essa conduta, seja por não ensejar meios de obtenção de prova eficientes -, foi promulgada a Lei 12.850/13, que regulamentou alguns pontos, alvos de críticas das demais normas sobre o assunto.

Mesmo depois da definição de organização criminosa e da disposição sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal, surgiram alguns pontos de discrepância que precisavam ser estudados para que fossem esclarecidos.

Uma dessas questões, e alvo desse trabalho, é sobre a viabilidade da aplicação da Lei 12.850/13 – seus crimes e mecanismos de investigação e de produção de prova – no âmbito da Polícia Judiciária Militar, ou seja, se caberia ou não ao encarregado pelo Inquérito Polical Militar a condução de apurações quanto às organizações criminosas que cometessem crimes militares.

Antes da Lei 13.491/17, os crimes militares seguiam os critérios ratione legis e ratione personae, sendo necessário constar no rol de crimes do Código Penal Militar, o que não era o caso dos tipos penais previstos na Lei 12.850/13, e isso dava margem a debates sobre a possibilidade ou não de aplicação desta lei pela PJM.

Com a promulgação da Lei 13.491/17, houve a redução do critério ratione legis, passando então a ser considerado crime militar os delitos previstos em legislações penais extravagantes, desde que observado o critério ratione personae, pondo fim, assim, à discrepância antes suscitada.

Ante o debate sobre a viabilidade ou não da aplicação da Lei 12.850 pela Polícia Judiciária Militar, também foi levantado o equívoco do legislador quando utilizou a expressão “delegado de polícia” para designar a autoridade presidente do procedimento inquisitivo, demonstrando, inclusive, a carência que pode advir em relação à tutela da investigação por conta dessa atecnia.

2. organização e associação criminosa decorrentes de crimes militares

2.1. Organização criminosa

A princípio, na busca da compreensão sobre a melhor definição para “organização criminosa”, impende-se atentar para uma lição preconizada pelos romanos, que diz o seguinte: initium doctrinae sit consideratio nominis[1].

Nesse diapasão, há de se separar as duas palavras que formam a expressão “organização criminosa”, com fito de analisá-las de forma isolada, para somente então tentar entender o objetivo da expressão e buscar chegar a uma melhor conceituação.

Por organização entende-se a estruturação de algo, a coordenação de determinada coisa para poder atingir um fim colimado. Esse é o melhor significado para a palavra dentro do assunto que está sendo analisado. É também uma das acepções do seu sinônimo, muito utilizado, associação.

Quanto a crime, depreende-se a ação ou omissão tida pela sociedade como contrária a seus anseios. Essa é uma definição material para a palavra, sucinta e ampla, já que não nos interessa, no momento, o conceito formal da mesma.

Conclui-se, portanto, que “organização criminosa”, em sentido amplo, é a união de esforços de indivíduos que procuram se estruturar para, de forma planejada, perpetrar ações criminosas, como se fossem uma empresa com fins ilícitos. Essa conceituação é a utilizada pelo senso comum.

No Brasil, as organizações criminosas foram tuteladas pela Lei 9.034, de 03 de maio de 1995, a qual dispõe sobre a “utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas” por essas associações. Entretanto, essa norma não seguiu nenhuma das correntes doutrinárias já existentes, nem tampouco procurou uma posição híbrida, além de abandonar a linha principal do Projeto nº 3.519/89.

Desta maneira, não houve uma definição sobre criminalidade organizada, optando o legislador pátrio, num primeiro instante, por equiparar essa, no art.1º, às ações praticadas por quadrilha ou bando.[2]

Contudo, há uma diferenciação entre ambas, onde o ponto crucial está no significado do termo “organização”. Enquanto na Formação de Quadrilha ou Bando havia apenas uma “associação” com solidariedade entre os seus integrantes, na Organização Criminosa constata-se uma “estrutura organizada”, onde se respeitam as normas previstas e a autoridade do líder e há uma articulação, uma ordem e objetivos a serem alcançados.

Essa distinção foi percebida pelos legisladores e, em 11 de abril de 2001, foi editada a Lei nº 10.217, a qual modificou o art. 1º da Lei 9.034/95, introduzindo a expressão “organizações ou associações criminosas de qualquer natureza”. Contudo, essa novel lei teimou em, mais uma vez, não expressar o que vem a ser organização criminosa, tornando-se importante, porém, no momento em que esclarece que tal fenômeno não se confunde com quadrilha ou bando.

Mendroni observava que existiam várias definições com pontos semelhantes, mas com distinção quanto ao conteúdo geral. Concluía que não dava pra definir esse fenômeno através de conceitos estritos ou com exemplos de condutas criminosas, já que essas organizações possuem um incrível poder variante (podendo alternar suas atividades ilícitas, procurando aquelas que se tornem mais lucrativas, na tentativa de escapar da persecução criminal ou tentando acompanhar a evolução mundial tecnológica, com uma rapidez, que quando o legislador quiser criar uma lei para combatê-la já estará atrasado).[3]

Entretanto, Rafael Pacheco conferia importância a uma conceituação do fenômeno, através de suas características e dos pontos de sua finalidade, estrutura e temporalidade, pois, além da manutenção da ordem constitucional, há a atribuição de eficácia a qualquer norma que se proponha a reprimir a criminalidade organizada, ordenando e dirigindo a atuação dos órgãos governamentais. Caso contrário – na ausência dessa definição -, haveria “incertezas quanto aos limites que devem ser seguidos para uma ação investigativa em que haja eventual restrição de garantias fundamentais”.[4]

Em julho de 2012 veio uma nova tentativa de conceituação de organização criminosa, a Lei 12.694/12 conceituou expressamente esse instituto no art. 2º, como sendo

a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.

Desta vez a Lei 12.694 trouxe à baila requisitos estruturais – tais como número mínimo de integrantes e serem caracterizadas pela divisão de tarefas – e finalísticos – objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.

No ano seguinte (2013) houve a promulgação da Lei 12.850, que buscou redefinir organização criminosa e dispor sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Para ela,

Art.1º, §1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional (grifo nosso).

Percebe-se que, dentre os requisitos finalísticos, encontra-se a previsão de que a vantagem visada deve decorrer da prática de infrações penais, cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. Mas o que se entende por “infração penal”?

Trata-se do gênero do qual são espécies o crime e a contravenção penal, como se pode observar pelo preconizado no art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal e da Lei das Contravenções Penais:

Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas. alternativa ou cumulativamente.

Nota-se, dessa forma, que o conceito estabelecido pela Lei 12.850/13 não se restringe aos crimes comuns, previstos no Código Penal Brasileiro (decreto-lei n. 2.848, de 7/12/1940), ou nas leis penais extravagantes, mas também aos definidos no Código Penal Militar (decreto-lei n. 1.001, de 21/10/1969), o qual é aplicável aos delitos praticados por militares, sejam das Forças Armadas ou das Forças Auxiliares.

Neste viés, torna-se límpido que a organização criminosa com fito de auferir vantagem indevida, mediante a prática de crimes militares, nos termos da Lei nº 12.850/13, amolda-se ao previsto em seu art. 1º, §1º, ensejando às autoridades responsáveis por tal persecução penal a utilização dos meios de obtenção de prova nela previstos.

2.2.associação criminosa

A Lei 12.850/13, além de redefinir organização criminosa, ainda modificou o art. 288 do CPB, alterando o nomen iuris de “quadrilha ou bando” para “associação criminosa”, a quantidade de agentes (mínimo de quatro para três) e a possibilidade de aumento de pena se a associação for armada – do dobro para metade, conforme pode ser visualizado:

Art. 288.  Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:     (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013)     

        Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.     (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013)     

        Parágrafo único.  A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.     (Redação dada pela Lei nº 12.850, de 2013) 

Insta esclarecer, todavia, que não se deve confundir o crime de organização criminosa (art. 2º, c/c art. 1º, da Lei 12.850/13) com o delito de associação criminosa (art. 288 do CPB). Além do número mínimo de agentes – três nesta e quatro naquela – e da finalidade – enquanto que na última é o cometimento de crimes, independente de pena, na primeira exige-se que a infração penal tenha pena máxima superior a 4 (quatro) anos, ou que seja de caráter transnacional -, a principal distinção é que para a caracterização da associação criminosa faz-se mister apenas estabilidade e permanência, enquanto a organização criminosa requer estruturação e coordenação, caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais.

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Fica nítido, por sua vez, que o delito em tela segue a mesma lógica narrada no tópico anterior, qual seja, a possibilidade da aplicação do tipo penal de associação criminosa quando a finalidade do grupo for o cometimento de crimes militares. Isso porque não foi previsto um rol taxativo de infrações para a configuração desse delito e, portanto, não caberia excluir os crimes militares, ou seja, quando se prevê como infração penal a conduta de “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”, os delitos militares estão abrangidos nessa finalidade.

3.aplicabilidade dos meios de obtenção de prova no âmbito da polícia judiciária militar

3.1. persecutio criminis: atribuição e competência

A expressão em latim, que tem como sinônimo “persecução penal”, significa “perseguir o crime” e busca denotar todo o trâmite através do qual o Estado visa perseguir o crime e o criminoso, aplicando-lhe a pena que melhor se adequar ao caso concreto.

A persecução do crime pode ser divida em duas etapas: uma primeira que visa a fase pré-processual, ou seja, a busca pelo esclarecimento do fato delituoso e do seu autor, geralmente por meio de um inquérito policial; e a segunda que mira a etapa processual, ou seja, o intento em buscar a verdade real, ensejando a ampla defesa e o contraditório aos acusados, tendo como fito a aplicação da sanção penal.

Na fase pré-processual, as instituições que se destinam às investigações possuem atribuições decorrentes da Constituição Federal e de outras normas; já na etapa processual, a que pretende dizer o direito, os órgãos judiciários têm competências para presidir o processo e sentenciar ao final, oriundas das mesmas fontes legislativas.

Quanto à atribuição para a investigação de infrações penais, assim discorre a Carta Magna:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

O art. 144, §4º, da CF, atribui às polícias civis a função de polícia judiciária estadual e a apuração das infrações penais que não couberem à polícia federal, excetuando os crimes militares, que serão atribuição das polícias judiciárias militares, conforme preconiza o art. 8º e suas alíneas, do Código de Processo Penal Militar.

No tocante à competência para processar e julgar o crimes militares, a Carta Política brasileira impõe tal capacidade aos órgãos da Justiça Militar da União e dos Estados, de acordo com o previsto nos arts. 124 e 125.

A súmula 90 do STJ, por sua vez, dita que “compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele”.

O que se entendia quanto aos crimes de organização e associação criminosa, no sentido de sujeitar “os seus autores ao processo perante a Justiça Militar pelos crimes militares, e perante a Justiça Comum pelo crime previsto no art. 288 do CPB, já que a jurisdição militar não possui competência para julgar o crime de Associação Criminosa”[5], não mais se aplica, devido à nova redação do art. 9º, II, do Código Penal Militar, trazido pela Lei 13.491, de 13 de outubro de 2017.

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

       II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:   (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

A partir dessa nova redação legislativa do art. 9º, II, do CPM, houve uma ampliação do que se entende por crime militar, pois esta espécie de infração penal não é mais definida ratione legis, ou seja, deixou de ser apenas aquelas previstas pelo CPM, passando a ser também os previstos em outras legislações penais, desde que atendido os requisitos das alíneas de seu inciso – ratione personae.

Nesse diapasão, não há mais dúvidas quanto à viabilidade de investigação do crime de participação em organização criminosa com fito de auferir vantagem indevida, mediante a prática de crimes militares, pela polícia judiciária militar, passando a ser julgado também pela Justiça Militar.

3.2. Lei 12.850 e as medidas da polícia judiciária militar

Como explanado no tópico anterior, cabe ao encarregado do Inquérito Policial Militar a apuração dos crimes militares e dos seus autores, bem como a função de polícia judiciária militar, consoante preconiza os arts. 7º e 8º do Código de Processo Penal Militar.

O art. 8º do CPPM traz uma série de medidas que podem e/ou devem ser adotadas pelo encarregado do IPM, mas esse rol não é taxativo, sendo ampla a possibilidade dos meios que podem ser utilizados neste procedimento inquisitorial, como pode se depreender através da força expansiva da alínea “a” desse artigo:

Art. 8º Compete à Polícia judiciária militar:

a) apurar os crimes militares, bem como os que, por lei especial, estão sujeitos à jurisdição militar, e sua autoria.

 A liberdade probatória é corroborada pelo preceituado no art. 295 do Dec.-lei nº 1.002/69, que diz o seguinte: É admissível, nos têrmos dêste Código, qualquer espécie de prova, desde que não atente contra a moral, a saúde ou a segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia ou a disciplina militares.  

Destarte, observa-se que o oficial encarregado pelo IPM não está adstrito apenas ao que está previsto no rol do art. 8º do CPPM, podendo se valer de todos os meios de prova lícitos, até mesmo os previstos em legislações extravagantes.

Devido à característica multiforme das organizações criminosas, ou seja, o seu poder de mutação, existe uma tendência para que sejam desenvolvidas estratégias distintas de obtenção de prova e de tratamento para com os investigados e acusados de praticar delitos relacionados com esses grupos criminosos estruturados, visando chegar a uma maior eficiência penal.

A conclusão a que se chega é a de que os instrumentos probatórios oferecidos pelo Código Processual Penal Militar não se mostram suficientemente eficientes para atingir ao fim colimado, frente às peculiaridades das organizações criminosas e, com isso, comprometem a persecução criminal engendrada pelo Estado no combate a esses grupos.

Um dos objetivos da Lei 12.850/13, inclusive exposto no seu preâmbulo, é a disposição sobre a investigação criminal das organizações criminosas e os meios de obtenção da prova, com fito na ampliação de mecanismos probatórios para que se consiga haver um maior e melhor combate a este tipo de estrutura delituosa.

Superado o entrave quanto à viabilidade de investigação de organizações criminosas pela polícia judiciária militar, resta esclarecer que é permitido a ela também fazer uso de todos os meios de obtenção de prova previstos no art. 3º da Lei 12.850/13.

Art. 3o  Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:

I - colaboração premiada;

II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;

III - ação controlada;

IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;

V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;

VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;

VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;

VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.

Corroborando com a viabilidade do uso dos meios de obtenção de prova previstos no art. 3º da Lei 12.850/13, encontramos doutrina de Ricardo Antônio Andreucci e Ronaldo João Roth[6] no seguinte sentido:

Indiscutivelmente, o instituto da delação premiada se aplica aos procedimentos de Polícia Judiciária Militar (inquérito policial militar – IPM e auto de prisão em flagrante delito – APFD), seja com base na Lei nº 9.807/99, envolvendo qualquer crime militar, seja com base na Lei nº 12.850/13, seja nos crimes conexos ao crime organizado, matéria esta que recebeu tratamento na doutrina inaugurada por Ronaldo João Roth e também na jurisprudência.

Inegável, assim, a possibilidade de aplicação de todos os meios de obtenção de prova descritos acima. Se não se encontram previstos no rol dos elementos probatórios típicos, previstos no Código de Processo Penal Militar, podem ser utilizados levando em conta o preceituado no art. 3º c/c art. 295, ambos do CPPM.

Tais meios, inclusive, já foram reconhecidos e autorizados pela jurisprudência, como se pode notar através de alguns julgados: Colaboração premiada (Recurso De Ofício nº 000146/2017 - Feito nº 080170/2017 4ª Auditoria – Rel. Avivaldi Nogueira Júnior – TJM/SP), ação controlada (Apelação, Acórdão:699-2015 – Rel. Antônio Carlos Maciel Rodrigues – TJM/RS) e Interceptação telefônica (Apelação nº0000252-33.2010.9.13.0001 – Rel. Jadir Silva – TJM/MG)

4.equívoco da expressão “delegado de polícia”

O delegado de polícia é a autoridade a qual faz parte da Polícia Civil ou Federal e tem como função a Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares, conforme preconiza o art. 144, §4º, da CF.

Já o encarregado do Inquérito Policial Militar é o oficial integrante das Forças Armadas ou das Forças Auxiliares que, além de outras atribuições rotineiras, tem como função a Polícia Judiciária Militar e a apuração de crimes militares, como se pode depreender pelo previsto nos art. 7º e 8º do CPPM.

Analisando a Lei 12.850/13, nota-se que a expressão “delegado de polícia” foi utilizada dezessete vezes para designar a autoridade policial a quem é atribuída a presidência de um Inquérito Policial que pretende investigar a atuação de uma organização criminosa.

 Entretanto, nota-se que tal expressão foi uma atecnia do legislador, pois,

assim como o Delegado de Polícia exerce a Polícia Judiciária Comum (Lei nº 12.830/13), o Oficial das instituições militares exerce a Polícia Judiciária Militar (PJM), por força do Código de Processo Penal Militar (CPPM), ambas as atribuições previstas na Constituição Federal (artigo 144, §4º, da CF). Logo, há de se reconhecer que essas autoridades policiais têm poderes correspondentes e análogos assegurados no ordenamento jurídico. (ANDREUCCI e ROTH, 2015)

Percebe-se, dessa forma, que onde se lê “delegado de polícia”, deve-se ler “autoridade presidente do inquérito policial (comum ou militar)”, com uma única exceção, qual seja, a expressão prevista no art. 21 da Lei de Combate às Organizações Criminosas – devido a se tratar de um tipo penal, sendo vedada a analogia in malam partem.

5.conclusão

Após algumas tentativas de conceituação de organização criminosa, a Lei 12.850/13 a definiu, trazendo os seguintes requisitos: estrutural (número mínimo de pessoas), finalístico (condicionais do rol de infrações penais que a organização deve praticar para atingir seu desiderato) e temporal (permanência duradoura e estabilidade).

 O intuito dessa lei foi, além da definição de organização criminosa e da criação do tipo penal correspondente, a disposição sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova que podem/devem ser utilizados para o combate a essa estrutura delituosa, infrações penais correlatas e o procedimento criminal.

Devido à característica multiforme utilizada pelos grupos criminosos organizados para embaraçar ou impedir a investigação e o processo penal, percebeu-se que teria de haver uma complementação nos instrumentos processuais tradicionais para que pudesse existir uma persecução criminal eficiente, ou seja, para a apuração do delito praticado por organizações criminosas, exigem-se medidas distintas das utilizadas na investigação de crimes comuns.

Antes da promulgação da Lei 13.491/17 - que ampliou o conceito de crime militar, reduzindo os critérios ratione legis e ratione personae apenas para este último – já existia a possibilidade de utilização dos meios de obtenção de prova previstos na Lei 12.850, desde que a organização criminosa cometesse crimes militares para atingir sua finalidade.

A Polícia Judiciária Militar, valendo-se dos princípios da economia, eficiência e razoabilidade, e com fulcro no art. 3º c/c art. 295, ambos do CPPM, investigava a organização criminosa nessas condições, mesmo o crime previsto no art. 2º da Lei 12.850/13 não sendo considerado como crime militar, havendo a separação dos processos entre a Justiça Militar e a Justiça Comum.

Após a promulgação da Lei 13.491/17, restou evidente que o crime previsto no art. 2º da Lei de Combate à Organização Criminosa pode ser considerado como crime militar, desde que praticado nas circunstâncias estabelecidas nas alíneas do inciso II, do art. 9º, do Código Penal Militar.

Em minuciosa análise pode-se depreender, inclusive, que não mais é necessária a prática de crimes previstos no CPM como condição sine qua non para a existência do crime de promoção, constituição, financiamento ou integração de organização criminosa como crime militar.

Como exemplo pode-se expor que, caso um grupo de 4 ou mais militares - da ativa e em serviço ou em razão dele -, estruturalmente ordenado e caracterizado pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais, ainda que não previstas no CPM, cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional, poderão responder na Justiça Militar pelo tipo previsto no art. 2º da Lei 12.850/13.

Com isso, inegável a possibilidade de aplicação dessa Lei de Combate à Organização Criminosa no âmbito da Polícia Judiciária Militar, inclusive com o rito completo da persecução penal militar, não necessitando desmembrar os delitos entre a Justiça Militar e a Justiça Comum.

Torna-se evidente, portanto, a autorização de uso de todos os meios de obtenção de prova previstos nessa lei pela Polícia Judiciária Militar, mormente pelo espírito normativo, que tem o escopo de lutar contra essa modalidade delituosa, principalmente quando se trata do envolvimento de militares.

Sendo assim, insta observar o equívoco técnico do legislador quando utilizou a expressão “delegado de polícia”, na Lei 12.850/13, para denominar o presidente do inquérito policial (comum ou militar), haja vista a norma ensejar ao oficial encarregado pelo IPM os mesmos poderes.

Devido a tal atecnia, inclusive, o combate às organizações criminosas no âmbito militar ficou parcialmente descoberto por não haver a tutela de proteção direta prevista na infração do art. 21 da Lei 12.850/13, pois há a menção ao “delegado de polícia”, não podendo ser feita uma analogia com o encarregado do IPM nesse caso, obedecendo à vedação da analogia in malam partem.

Nesse diapasão, conclui-se que, não obstante tenha havido uma imprecisão quanto a utilização da expressão “delegado de polícia”, é perfeitamente viável a aplicação da Lei de Combate às Organizações Criminosas na esfera da Polícia Judiciária Militar, sobretudo após a promulgação da Lei 13.491/17, que ampliou o conceito de crime militar, abarcando também delitos previstos em legislações penais extravagantes.

 


[1] A doutrina deve começar a estudar certo assunto pelo nome.

[2] SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: Procedimento probatório. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.24.

[3] MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2009, p. 18.

[4] PACHECO, Rafael. Crime organizado: medidas de controle e infiltração policial. 22. ed. Curitiba: Juruá. 2009, p. 58.

[5] PEREIRA ALVES, Pedro Paulo. Lei nº 12.850/13 - Organização criminosa: sua aplicabilidade aos delitos militares previstos no Código Penal Militar. Jus Militaris. Disponível em: <http://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/orgcrimjm.pdf>. Acesso em: 24 out. 2017.

[6] ANDREUCCI, Ricardo Antônio; ROTH, Ronaldo João. A colaboração premiada e sua aplicação na persecução penal militar. Direito Militar, n. 116, p. 10, Novembro/Dezembro 2015.

Sobre o autor
Thiago Pugliesi de Paiva

Oficial da Polícia Militar de Pernambuco. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes. Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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