O campo da ética possui várias ramificações e discutir a ética em termos filosóficos vai depender do problema que se apresenta diante de nós. Algumas questões são mais polêmicas que outras e mesmo que o filósofo não tenha o conhecimento específico sobre o tema a ser discutido é sempre possível dizer algo considerável. Para alcançarmos o pensamento do autor sobre o princípio da igualdade é relevante adentrarmos em sua concepção do que é a ética e principalmente do que a ética não é. Desta feita, ele sugere quatro ideias principais onde a ética não pode ser definida.
Em primeiro lugar, a ética não pode ser confundida com o moralismo, ou seja com as proibições ligadas ao sexo. Mesmo que decisões referentes ao sexo envolvam honestidade e outros atributos, não pode ser considerado como um caso particular relacionado somente ao sexo. A segunda questão refere-se a tratar a ética como algo subjetivo, fora do mundo real. Um juízo ético precisa ser tão bom na prática quanto o é na teoria. Uma terceira alternativa apontada pelo autor, seria entender a ética somente em um contexto religioso e por último ela não pode ser relativa, como apontaram algumas teorias marxistas.
Singer apresenta um pensamento sobre a ética que concede à razão a importância primordial nas decisões éticas. E, segundo ele, não existe um conceito possível de ética, mas aceitável. Ele acolhe como convincente a ideia do aspecto universal da ética, apresentando um critério mínimo de ética onde meus próprios interesses, só por serem meus interesses, não podem ter mais valor que os interesses de outra pessoa.
A Igualdade e suas Implicações na Ética de Peter Singer
Singer aborda, no segundo capítulo da obra Ética Prática (1998), a base moral da igualdade e das atitudes morais, enunciando que, quando defendemos qualquer atitude moral como aborto, sexo fora do casamento, homossexualidade, pornografia, eutanásia ou suicídio, não estamos colocando em risco a nossa posição intelectual ou social, visto que, até os dias de hoje não há um consenso sobre estas questões. Porém, o que pode ser dito da igualdade é um tanto diferente. Singer sustenta exemplos de aplicação do princípio da igual consideração de interesses em casos específicos. Tais casos vão além do consenso da discriminação e desigualdade racial, o que para o autor, foi a mudança de atitude mais completa: os racistas não deixaram de existir, eles só diferenciam seu racismo para que seus pontos de vista sejam aceitos.
O autor questiona por que motivo o princípio todos os seres humanos são iguais tem a nossa aceitação e o que exatamente queremos dizer com isso? Estudos na década de 70 tentaram provar variações de inteligência entre raças diferentes, como também diferenças entre mulheres e homens.
Outra questão que nos leva a pensar sobre o princípio de igualdade é a “ação afirmativa”. Alguns filósofos e advogados têm afirmado que o princípio de igualdade exige que, na distribuição de empregos ou vagas em universidades, deveríamos favorecer os membros de minorias em desvantagem. Outros afirmaram que o mesmo princípio de igualdade exclui qualquer discriminação por motivos raciais, tanto a favor quanto contra os membros menos favorecidos da sociedade (SINGER, 1998, p.26)
Qualquer que seja a forma de comprovação que busquemos, a verdade é que os seres humanos não são todos iguais: baixos ou altos, uns bons de matemática outros não, uns matam por um trocado outros jamais feririam seu semelhante; é fato que os indivíduos diferem entre si e são tantas as características que a busca de uma base para o princípio da igualdade parece impossível de ser alcançada.
O autor refere-se ao livro Teoria da Justiça, de John Rawls onde este sugere que a igualdade pode fundamentar-se nas características naturais dos seres humanos. Para Rawls, a personalidade moral constitui a base da igualdade humana. "Por personalidade moral, Rawls não quer dizer personalidade moralmente boa. Ele usa o termo moral em contraste com o amoral."(SINGER. Ética Prática. 1998, p. 27). Contudo, para Singer, há objeções no uso da personalidade moral: primeiro, que algumas pessoas são mais sensíveis a questões de justiça e ética do que outras por diversas razões; segundo, que embora Rawls admita que as pessoas que sofrem de deficiência intelectual irreparável podem apresentar uma dificuldade no que se refere ao senso de justiça, mas, no entanto, ele não oferece nenhuma sugestão para solucionar esta dificuldade.
Isto posto, para Singer a teoria de Rawls é suficiente para tratar dos casos mais gerais, baseando-se em um princípio contratualista, que considera a ética como um contrato, um acordo mútuo e benéfico para ambos. Outra questão que Singer aponta como objeção a Rawls é de que os seres humanos diferem enquanto indivíduos e não enquanto raça e sexo. Os estudos no passado justificavam desigualdades sociais desta forma considerando, por exemplo, que os africanos eram menos inteligentes e as mulheres menos agressivas. Submeter as pessoas a testes de inteligência e classificá-las em categorias, colocaria os indivíduos que tivessem baixo grau de Q.I. em um nível de escravidão independente de sexo ou raça; uma sociedade hierarquizada desta forma teria por base as diferenças reais entre as pessoas, o que não pode ser totalmente descartado.
Os testes de Q.I. não avaliam o que entendemos por inteligência, as diferenças devem ser explicadas pela hereditariedade ou pelo ambiente – se são diferenças inatas ou dependem de onde o grupo está inserido.
Suponha-se que alguém proponha que as pessoas sejam submetidas a testes de inteligência e, depois, classificadas em categorias superiores ou inferiores, com base nos resultados. Talvez os que fizessem mais de 125 pontos constituíssem uma classe proprietária de escravos; os que ficassem entre 100 e 125 seriam cidadãos livres, mas sem o direito de terem escravos, e os que ficassem abaixo dos 100 pontos passariam a ser escravos daqueles que haviam feito mais de 125 pontos. Uma sociedade hierarquizada desse jeito parece tão abominável quanto qualquer outra que se baseasse na raça ou no sexo (SINGER, 1998, p.29).
Peter Singer busca solucionar essas questões criando um princípio básico de igualdade, o que podemos nos arriscar a chamar de regra de ouro - o princípio da igual consideração dos interesses. Ao fazermos um juízo ético, devemos ir além de um ponto de vista pessoal ou grupal, levando em consideração os interesses de todos os que forem por ele afetados, ou seja, em nossas deliberações morais, atribuímos o mesmo peso aos interesses semelhantes de todos os que são atingidos por nossos atos.
“Um interesse é um interesse, seja lá de quem for esse interesse". (SINGER, 1998, p.30)”. Vamos usar o exemplo de Peter sobre o alívio da dor. De acordo com o princípio, o alívio da dor é simplesmente não ter dor, mas a indesejabilidade da dor de um pode ser diferente da dor de outro e, mesmo onde as dores são iguais, há outros fatores, principalmente se outros forem afetados. A dor de um médico poderia ter prioridade em vítimas de um terremoto, para que ele pudesse ajudar a tratar outras vítimas, mas o princípio de igual consideração de interesses vai pesar imparcialmente os interesses, atuando como uma balança, ele favorece o lado em que o interesse é mais forte ou em que vários interesses se combinam para exceder em peso um menor número de interesses semelhantes, sem levar em consideração quais são esses interesses. Para a indesejabilidade da dor é irrelevante escolher como vítima uma raça, por exemplo, no Nazismo: “os nazistas estavam preocupados apenas com o bem-estar dos membros da raça ‘ariana’ e ignoravam por inteiro os sofrimentos dos judeus, dos ciganos e dos eslavos” (SINGER, 1998,p.31). Outros exemplos citados pelo autor:
1) Crianças muito boas em matemática podem nos levar a ensinar a matemática avançada, prejudicando assim outras crianças, se levarmos em conta os interesses das pessoas, sejam quais forem, o princípio deve ser aplicado a todos, sem levar em consideração sua raça, sexo ou grau de inteligência.
2) Duas pessoas (X e Y) sofreram ferimentos nas pernas por consequência de um esmagamento. A dor de X é insuportável, enquanto Y apresenta um ferimento de menor gravidade na coxa. A pessoa que está prestando socorro possui duas doses de morfina. Um tratamento baseado na igualdade objetiva destinaria uma dose para cada pessoa. Esse procedimento, todavia, aliviaria muito pouco a dor de X, que ainda estaria agonizante e gastaria uma dose com a dor insignificante e plenamente suportável de Y. Para ser coerente com o princípio da igual consideração de interesses, segundo Singer, dever-se-ia aplicar as duas doses de morfina em X, por sua dor ser maior. Nesse caso, o tratamento quantitativamente desigual é o único capaz de chegar a um resultado qualitativamente igualitário: a suportabilidade da dor tanto de X quanto de Y. Ele conclui que: em vez de terminarmos com uma pessoa sentindo uma dor ainda forte e uma sem dor alguma, terminamos com duas pessoas com uma dor suportável. Essa aplicação do princípio concorda com outro princípio do utilitarismo: a diminuição da utilidade marginal. Se uma pessoa recebe um salário de, suponham-se, mil reais mensais, um acréscimo de cem reais nesse montante para a sua sobrevivência fará maior diferença do que se o mesmo valor fosse repassado para uma pessoa que recebe três mil reais por mês.
Outro caso mais polêmico seria quando, por fatores que possuem a mesma força, o princípio da utilidade marginal fosse ineficaz. Em uma variação do problema anterior do esmagamento, temos duas vítimas A e B, e uma está ferida com mais gravidade do que a outra. A, perdeu uma perna e corre o risco, se não for tratado, de perder um dedo do pé da perna que ainda lhe resta. B, por sua vez, possui um grave ferimento em uma das pernas, mas se for medicado pode salvá-la. Existe, no entanto, apenas medicamentos para serem usados em um paciente. Como o utilitarista de interesses agiria nessas circunstâncias? Diante de uma situação como a apresentada, aplicar o princípio de igual consideração de interesses faz com que os recursos limitados sejam destinados para a pessoa menos ferida, pois se considera que perder uma perna é pior do que perder um dedo do pé, mesmo que esse esteja na única perna que lhe resta. O resultado alcançado é que B não perde nada e A perde uma perna e um dedo do pé, o que aumentou a diferença física entre eles. Então, em casos especiais, a igual consideração de interesses pode aumentar, em vez de diminuir, a diferença entre duas pessoas em níveis distintos de bem-estar. É por esse motivo que esse princípio é um princípio mínimo de igualdade, e não um princípio igualitário perfeito e consumado.
Singer sugere que os interesses humanos mais importantes como evitar a dor, desenvolver as próprias aptidões, satisfazer as necessidades básicas de alimento e abrigo, manter relações pessoais calorosas, ser livre para desenvolver seus projetos de vida, não são afetados por diferença de inteligência e muito menos por diferenças de agressividade.
Quanto à igualdade de oportunidades, Singer acrescenta que independente de como educamos uma criança, ela herdará diferentes aptidões e traços de caráter, inclusive de níveis diferentes de agressividade e Q.I. Eliminar as diferenças no ambiente não afeta as diferenças de atributos genéticos. A igualdade de oportunidades não é um ideal atraente. Recompensa os que têm sorte, os que herdam aquelas aptidões que lhes permite desenvolver carreiras interessantes e lucrativas e castiga o desventurado cujos genes fazem com que lhe seja muito difícil alcançar o sucesso.
Conclusão
Para concluir, Peter coloca a dificuldade prática da passagem de uma sociedade não tão desigual e com uma redução significativa das diferenças de renda para uma eticamente desejável, isto é, instituir-se uma igualdade geral, poderíamos ao menos tentar garantir que, onde existem importantes diferenças de renda, status e poder, as mulheres e as minorias raciais não fiquem na extremidade mais desfavorecida. E que talvez, a mais forte esperança de reduzir as desigualdades permanentes, ainda que transgrida o próprio princípio da igualdade, esteja na ação afirmativa (discriminação inversa), ou seja, dar um tratamento preferencial aos membros dos grupos menos favorecidos.
Referência Bibliográfica
SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 2. Ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.