I - ARRAS
Os especialistas entendem que, na celebração de um contrato, principalmente na compra e venda de imóveis, é muito comum a presença de uma cláusula que estabelece as arras. Trata-se de uma garantia, geralmente em dinheiro ou bens móveis, que tem como finalidade firmar o negócio e obrigar que o contrato seja cumprido.
Quando o contrato é cumprido corretamente, as arras podem ser devolvidas, ou abatidas do valor que ainda falta para quitação do contrato, o que costuma ocorrer com mais frequência.
No caso de descumprimento do contrato, se quem deu as arras, ou pagou o sinal, desiste do negócio, ele perde o valor das arras em favor da parte contrária. No caso de quem recebeu as arras desistir do contrato, terá que devolvê-las em dobro a quem as pagou.
As arras ou sinal vêm a ser a quantia em dinheiro, ou outra coisa móvel, em regra, fungível, dada por um dos contraentes ao outro, a fim de concluir o contrato, e, excepcionalmente, assegurar o pontual cumprimento da obrigação.
Maria Helena Diniz, em Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, leciona:
“Assim, se A pretende efetivar um contrato de compra e venda, poderá entregar a B, que é o vendedor, uma quantia em dinheiro, como prova da conclusão do contrato e como garantia de seu adimplemento. O sinal funciona, pois, não só como um reforço nos contratos bilaterais ou comutativos, indicando a realização definitiva do concurso de vontades, ao firmar a presunção de acordo final, devendo, em caso de execução, ser restituído ou computado na prestação devida, se do mesmo gênero da principal (CC, art. 417), mas também como uma garantia ao pontual cumprimento da obrigação avençada, visto que se pode convencionar a possibilidade do desfazimento do contrato por qualquer das partes, hipótese em que terá função indenizatória. Assim, aquele que deu o perderá para outro e o que recebeu o devolverá mais o equivalente, não havendo, em qualquer caso, direito à indenização suplementar (CC, art. 420), assegurando-se, assim, às partes o direito de arrependimento.
A declaração mencionada é a mais comum de ser observada em nosso cotidiano, principalmente em contratos de promessa de compra e venda de bem imóvel, ocasião em que o promitente comprador entrega certa quantia em favor do promitente vendedor a título de arras, valor este que se prestará a prevenir possível desistência no curso das tratativas comerciais, sendo que, na hipótese de ser caracterizada referida desistência, a quantia depositada como sinal será entregue ao promitente vendedor a título indenizatório pelas perdas e danos sofridos.
No tocante à codificação atual, as arras encontram-se previstas entre os artigos 417a 420, todos do Código Civil de 2002.
“Art. 417. Se, por ocasião da conclusão do contrato, uma parte der à outra, a título de arras, dinheiro ou outro bem móvel, deverão as arras, em caso de execução, ser restituídas ou computadas na prestação devida, se do mesmo gênero da principal.”
“Art. 418. Se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá a outra tê-lo por desfeito, retendo-as; se a inexecução for de quem recebeu as arras, poderá quem as deu haver o contrato por desfeito, e exigir sua devolução mais o equivalente, com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honoráriosde advogado.”
“Art. 419. A parte inocente pode pedir indenização suplementar, se provar maior prejuízo, valendo as arras como taxa mínima. Pode, também, a parte inocente exigir a execução do contrato, com as perdas e danos, valendo as arras como o mínimo da indenização.”
“Art. 420. Se no contrato for estipulado o direito de arrependimento para qualquer das partes, as arras ou sinal terão função unicamente indenizatória. Neste caso, quem as deu perdê-las-á em benefício da outra parte; e quem as recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente. Em ambos os casos não haverá direito a indenização suplementar.”
Arras ou sinal é a entrega, por parte de um dos contratantes, de coisa ou quantia que significa a firmeza da obrigação contraída ou garantia da obrigação pactuada. Quando a coisa entregue é do mesmo gênero do restante da obrigação, as arras são consideradas como princípio de pagamento.
Daniel Carnacchioni ensinou, nos seguintes termos:
“As arras estão disciplinadas nos arts. 417 a 420 do CC, cujo diploma alterou a sua topografia para retirá-la da teoria geral dos contratos e transportá-la para a teoria geral das obrigações, justamente por esta relacionada ao inadimplemento e, mais especificamente, às consequências jurídicas deste. Este novo enquadramento reforça a natureza das arras, qual seja: instituto destinado a prefixação das perdas e danos, entregues por uma parte à outra no momento da conclusão da obrigação. É uma prefixação convencional das perdas e danos, assim como a cláusula penal, com a diferença de que as arras possuem natureza real, porque integram a fase de formação e não a de execução da relação jurídica obrigacional. Essa nova topografia mitiga, de forma considerável, a tradicional diferença entre arras confirmatórias e penitenciais ou indenizatórias. As arras confirmatórias seriam aquelas destinadas a “confirmar” ou dar início à execução de determinada relação jurídica material (contratos, em sua maioria), ao passo que as arras penitenciais teriam natureza indenizatória. No entanto, pela atual redação dos arts. 417, 418 e 419 do CC, mesmo quando as arras visam a confirmar um negócio, quando se prestam a servir como “sinal” ou “princípio de pagamento”, em caso de inadimplemento ou inexecução, as arras compensarão o sujeito prejudicado pelo inadimplemento, fato que denota a sua natureza preponderantemente indenizatória. [...] O fato é que, atualmente, até por integrar a teoria do inadimplemento, a natureza das arras não possui nenhuma relação com o direito de arrependimento, mas sim com a execução ou inexecução da relação obrigacional. É o cumprimento ou o inadimplemento da obrigação que determinará a sua natureza, jamais a previsão ou não de cláusula de arrependimento. [...] Se a obrigação foi cumprida, por óbvio, as arras dadas por ocasião da conclusão do negócio terão natureza “confirmatória”. Por outro lado, se a obrigação não foi cumprida, o art. 418 permite a retenção das arras por quem recebeu se a inexecução for de quem deu ou a restituição das arras, mais o equivalente, se o inadimplemento foi de quem recebeu. Essa retenção ou restituição das arras estaria a confirmar o quê? Obviamente nada. Nesse caso, as arras servem como o mínimo de indenização, ou seja, parâmetro inicial para as perdas e danos, função nitidamente indenizatória. Tanto isto é verdade que o art. 419 permite que a parte inocente venha pleitear indenização suplementar, caso prove prejuízo maior do que o valor das arras dadas, valendo estas como taxa mínima. Não é a cláusula de arrependimento que define a natureza das arras, mas a execução ou inexecução da obrigação. A cláusula de arrependimento (...) tem o único objetivo de impedir a indenização suplementar (art. 420 do CC). Nada mais do que isso” (Manual de Direito Civil. Salvador: Jus Podium, 2017, pp. 738/739).
Existem dois tipos de arras:
Confirmatórias
Confirmatórias ou arras propriamente ditas, quando representam uma prestação efetiva, realizada em garantia da conclusão de um contrato; Ver arts. 417 a 419 do Código Civil de 2002.
Penitenciais
Penitenciais, se há cláusula de arrependimento, caso em que a perda da prestação constitui a pena, tem o caráter de cláusula penal compensatória.
No passado, as Arras foram chamadas, diversas vezes, de "Um centavo sério", ou "Arles centavo", ou o Deus de prata (em latim Argentum Dei). Era uma valiosa moeda, ou sinal, dado para vincular um negócio, nomeadamente para a compra ou locação de um servo.
Caso o contrato não tenha previsão do direito de arrependimento, a parte prejudicada poderá solicitar, judicialmente, além das arras, os demais prejuízos que ocorreram em razão do desfazimento do contrato.
Orientou Maria Helena Diniz que as arras constituir-se-ão numa pena convencional, predeterminando as perdas e danos em favor da parte inocente, tendo como pressuposto a culpa do que se arrependeu ou se retratou. Equivalem a uma penalidade, funcionando como pré-avaliação das perdas e danos resultantes do arrependimento, isto é, a perda do sinal ou a sua restituição em dobro, e excluem, por si só, a indenização maior a título de perdas e danos, visto constituírem um ressarcimento de danos, salvo os juros moratórios e os encargos do processo.
Lembre-se que o artigo 420 do Código Civil proíbe que os contratantes convencionem que, em caso de inadimplência, fiquem ambos sujeitos ao pagamento, além da multa que estipularam, das perdas e danos que ocorrerem, visto que não confere direito à indenização suplementar. Entretanto, como ainda ensinou Maria Helena Diniz, em certas circunstâncias, ter-se-á a mera restituição do sinal, reconduzindo-se as partes ao status quo ante, podendo haver, quando for o caso, atualização monetária.
É o que ocorrerá: a) se ambos se arrependerem do negócio; b) se não se puder verificar quem se arrependeu primeiro; c) se o inadimplemento contratual se der por causa alheia à vontade dos contraentes; d) se o contrato for rescindido por comum acordo entre as partes; e) se, por justo motivo, um dos contraentes se recusar a cumprir o contrato ou se o negócio estava condicionado a financiamento de parte do preço, que veio a ser negado por insuficiência de renda familiar, por exemplo. Trata-se de casos de impossibilidade de prestação sem culpa de quem deu as arras, devendo quem as recebeu devolvê-las pura e simplesmente.
Na lição de Caio Mario da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, nova edição, volume III, pág. 128), a finalidade essencial da pena convencional é o reforçamento do vinculo obrigacional, e é com este caráter que, mais acentuadamente, se apõe à obrigação.
A pré-liquidação do id quod interest aparece, então, como finalidade subsidiária, pois que nem sempre como tal se configura. Como é dito pela melhor doutrina, mesmo naqueles casos em que este objetivo, não se pode dizer que o seja com todo rigor, pois que pode faltar, e efetivamente falta, via de regra, correspondência exata entre o prejuízo sofrido pelo credor e a cláusula penal.
Mas vários escritores no passado, e modernamente, veem que o objetivo da cláusula penal sustentam que o seu único objetivo é a pré - estimativa das perdas e danos. Mas, alguns juristas alemães o viam com caráter punitivo.
Mister que se lembre que a cláusula penal pode ser estipulada para o caso de deixar o devedor de cumprir a totalidade de sua obrigação, ou então, com caráter mais restrito, e por isto mesmo mais rigoroso, para de inexecução em prazo dado. Na primeira hipótese, o devedor incide na pena se deixa de efetuar a prestação, na segunda torna-se devida a multa pelo simples fato de não ter realizado a tempo, ainda que possa executá-la, ulteriormente. Uma, a primeira, se diz compensatória, e a outra moratória.
A distinção prática, se uma cláusula penal é compensatória ou moratória, como reconheceu Caio Mario da Silva Pereira, às vezes, oferecia dificuldades. O titulo, perpetuando a vontade da parte é o seu melhor intérprete e a ele o juiz deverá recorrer como fonte esclarecedora.
Se a falta do devedor, punida com a multa, for simplesmente, o retardamento na execução ou no inadimplemento de uma cláusula especial ou determinada da obrigação, ela é moratória, se for a falta integral da execução, é compensatória.
Na linha de Tito Fulgêncio, se dirá que nenhuma razão existe, quer em doutrina, quer em legislação, para que se repute vedado o acúmulo de penas convencionais. É lícito, portanto, ajustar uma penalidade para o caso de total inadimplemento e outra para o de mora ou com a finalidade de assegurar o cumprimento de certa e determinada cláusula.
Recentemente, o STJ entendeu que a quantia dada como garantia de negócio (sinal ou arras) pode ser retida integralmente em razão de inadimplência contratual, mesmo nos casos em que seja superior a 50% do valor total do contrato. Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que permitiu a retenção de R$ 48 mil pagos como sinal na negociação de um imóvel que, na ocasião, seria comprado por R$ 90 mil.
O julgamento se deu no REsp 1.669.002.
II - ARRAS E CLÁUSULA PENAL NÃO SE ACUMULAM
É inadmissível a cumulação da cláusula penal compensatória com arras, prevalecendo esta última na hipótese de inexecução do contrato. Esse foi o entendimento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar recurso especial interposto por uma construtora contra dois compradores de imóveis, como foi definido no REsp 1.617.652.
Quando ajustada entre as partes, a cláusula penal compensatória – espécie que se discute no presente recurso especial – incide na hipótese de inadimplemento da obrigação (total ou parcial), razão pela qual, além de servir como punição à parte que deu causa ao rompimento do contrato, funciona como fixação prévia de perdas e danos. Ou seja, representa um valor previamente estipulado pelas partes a título de indenização pela inexecução contratual.
Esse foi o entendimento adotado por esta Turma, quando do julgamento do REsp 1.335.617/SP, no qual se delimitou com precisão a diferença.
Entre as duas espécies de cláusula penal:
“(...) existem essencialmente dois tipos diferentes de cláusula penal: aquela vinculada ao descumprimento (total ou parcial) da obrigação, e aquela que incide na hipótese de mora (descumprimento parcial de uma prestação ainda útil). A primeira é designada pela doutrina como compensatória , a segunda como moratória. 15. Conquanto se afirme que toda cláusula penal tem, em alguma medida, o fito de reforçar o vínculo obrigacional (Schuld ), essa característica se manifesta com maior evidência nas cláusulas penais moratórias, visto que, nas compensatórias, a indenização fixada contratualmente serve não apenas de punição pelo inadimplemento como ainda de pré-fixação das perdas e danos correspondentes (artigo 410). [....] - A cláusula penal compensatória, por outro lado, visa a recompor a parte pelos prejuízos que eventualmente venham a decorrer do inadimplemento (total ou parcial). Representa um valor previamente estipulado pelas próprias partes contratantes a título de indenização para o caso de descumprimento culposo da obrigação. Tanto assim que, eventualmente, sua execução poderá, até mesmo substituir a execução do próprio contrato” (REsp 1.335.617/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 22/04/2014).
De outro turno, as arras se relacionam à quantia ou bem entregue por um dos contratantes ao outro, por ocasião da celebração do contrato, como sinal de garantia do negócio. Apresentam natureza real – haja vista que exigem, para seu aperfeiçoamento, a efetiva entrega da coisa por uma das partes à outra – e têm por finalidades precípuas as seguintes: (i) firmar a presunção de acordo final, tornando obrigatório o ajuste (caráter confirmatório); (ii) servir de princípio de pagamento (se forem do mesmo gênero da obrigação principal); e (iii) prefixar o montante das perdas e danos devidos pelo descumprimento do contrato ou pelo exercício do direito de arrependimento, se expressamente estipulado pelas partes (caráter indenizatório).
Essas funções são sintetizadas na doutrina de Judith Martins-Costa, nos seguintes termos: “Da tradição histórica vêm as quatro funções cometidas às arras: a) confirmatória do negócio ; b) de adimplemento (princípio de pagamento da obrigação estatuída); c) de efeito da resolução imputável e culposa ; e d) possibilidade de lícito arrependimento do negócio, se assim ajustado ” (Comentários ao Novo Código Civil, Vol. V, Tomo II: Do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 735).
Repita-se que, tradicionalmente, a doutrina classifica as arras em duas espécies, a depender da previsão, ou não, do direito de arrependimento. Em linhas gerais, se diz que as arras são “confirmatórias” quando tornam o negócio irretratável e que são “penitenciais” as arras previstas como penalidade à parte que desistir da avença, quando tal faculdade é convencionada.
De acordo com a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso da construtora no STJ, a cláusula penal compensatória é um valor previamente estipulado pelas partes a título de indenização pela inexecução contratual, incidindo na hipótese de descumprimento total ou parcial da obrigação. Ela serve como punição a quem deu causa ao rompimento do contrato e funciona ainda como fixação prévia de perdas e danos.
A ministra explicou que as arras, por outro lado, consistem na quantia ou bem móvel entregue por um dos contratantes ao outro, por ocasião da celebração do contrato, como sinal de garantia do negócio.
Segundo a relatora, as arras têm por finalidades: “a) firmar a presunção de acordo final, tornando obrigatório o ajuste (caráter confirmatório); b) servir de princípio de pagamento (se forem do mesmo gênero da obrigação principal); c) prefixar o montante das perdas e danos devidos pelo descumprimento do contrato ou pelo exercício do direito de arrependimento, se expressamente estipulado pelas partes (caráter indenizatório)”.
A ministra Nancy Andrighi afirmou que a função indenizatória das arras existe não apenas quando há o arrependimento lícito do negócio, “mas principalmente quando ocorre a inexecução do contrato”.
Na hipótese de descumprimento contratual – explicou a ministra –, as arras funcionam como uma espécie de cláusula penal compensatória, mesmo sendo institutos distintos. Nesse sentido, “evidenciada a natureza indenizatória das arras na hipótese de inexecução do contrato, revela-se inadmissível a sua cumulação com a cláusula penal compensatória, sob pena de violação do princípio non bis in idem (proibição da dupla condenação a mesmo título)”.
Caso as arras e cláusula penal compensatória sejam previstas cumulativamente, “deve prevalecer a pena de perda das arras, as quais, por força do disposto no artigo 419 do Código Civil, valem como ‘taxa mínima’ de indenização pela inexecução do contrato”, concluiu a ministra Nancy Andrighi.