REMESSA OBRIGATÓRIA

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13/12/2017 às 11:59
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O ARTIGO TRAZ À DISCUSSÃO O INSTITUTO DA REMESSA OBRIGATÓRIA.

REMESSA OBRIGATÓRIA

Rogério Tadeu Romano

I – CONCEITO E EXPOSIÇÃO HISTÓRICA

Trata-se de medida tradicional no direito brasileiro, oriunda do sistema medieval e sem correspondente no direito comparado, que já foi conhecida como “apelação de ofício”.

Gouvêa Pinto (Manual de appellações e agravos, 1846, pág. 11 e nota) via esse instituto como recurso, combatendo pensamento de outra corrente doutrinária, visto em Pereira e Souza (Primeiras linhas sobre o processo civil, Lisboa, 1858, § CCXCIX, pág. 17), que entendia a apelação como ato provocado pela parte vencida.

A justificativa histórica do aparecimento da remessa obrigatória se encontra nos amplos poderes que tinha o magistrado no direito intermediário, quando da vigência do processo inquisitório. O direito lusitano criou a chamada “apelação ex officio”, para atuar como sistema de freio àqueles poderes quase onipotentes do juiz inquisitorial, como ensinou Alfredo Buzaid(Da apelação ex officio, n. 14, 28 e seguintes, páginas 23/24 e 38). Essa criação veio com a Lei de 12 de março de 1355, cujo texto foi depois incorporado às Ordenações Afonsinas, Livro V, Título LIX, 11, subsistindo nas codificações portuguesas posteriores(Ordenações Manoelinas, V, XLII, 3; Ordenações Filipinas, V, CXXII). 

Na obra Da apelação ex officio no sistema do Código de Processo Civil, publicada em 1951, Alfredo Buzaid defendia a desnecessidade de se manter esse instrumento de defesa do fisco, posto que, nem histórica, nem cientificamente, se justificava a manutenção no sistema do direito processual civil de 1939.

No Brasil independente, a chamada “apelação ex officio” surgiu em 1831, artigo 90, onde se determinava  ao juiz a remessa necessário ao tribunal superior de sua sentença proferida contra a Fazenda Nacional. O CPC de 1939 manteve o instituto no artigo 822. O CPC de 1973 ditou a matéria no capítulo de recursos não dando a ele o nome de  “apelação ex officio", determinando a remessa da sentença ao tribunal superior, em casos que taxativamente enumerou.

 Hortêncio Catunda de Medeiros(Recursos Atípicos, 1980, pág. 10) o definia como "o recurso hierárquico manifestado por órgão do Estado-juiz(geralmente o que prolatou a decisão recorrida), que atua, “ex vi legis”, como instrumento do Estado-administração”.

Entendia Hortêncio Catunda o recurso de ofício como um recurso hierárquico.

Dizia Hortêncio Catunda:
“Essa anomalia pode ser assim explicada: quando o órgão jurisdicional manifesta o recurso de ofício, não o faz como parte – agindo nomine próprio, na defesa de direito seu; ou de outrem(substituto processual) – mas de modo formal, isto é, pela prática de ato puramente mecânico, substituindo a atividade da parte interessada, por sua própria atividade.”

Assim sendo, embora o recurso de ofício se manifeste, aparentemente, como ato ditado pelo juiz, o que na realidade se pratica é uma atividade em prol do Estado-administração – inconformado, ex vi legis, com a decisão desfavorável.

Para Hortêncio Catunda de Medeiros(obra citada) seria um contra-senso admitir-se um iudicium(relação processual) onde um mesmo sujeito exercesse as funções de parte e de órgão julgador.

Dizia-se que o recurso de ofício poderia ser obrigatório ou facultativo. Obrigatório(necessário) quando estabelecido como uma constante; facultativo quando deixado ao alvedrio do órgão judicial, encarregado de atuar.

Para Frederico Marques(instituições de direito processual civil), ao se referir ao direito judiciário penal, todos os recursos de ofício são de caráter necessário. Nosso processo penal  já conheceu, no entanto, recurso de ofício de natureza facultativa. Frederico Marques nos ensinou que havia, outrora, a “apelação ex officio” que se dava ao presidente do Tribunal do Júri, sem o caráter obrigatório.

Frederico Marques ainda nos ensinou que a Constituição de 1937, à maneira do que se continha nos textos constitucionais anteriores, desde a reforma de 1926, consagrava forma especial de recurso de ofício, no artigo 101, parágrafo único, contra decisões denegatórias de habeas corpus, assim dizendo: “Nos caos do n. II, n. 2, letra b, poderá o recurso também ser interposto pelo presidente de quaisquer dos tribunais ou pelo Ministério Público. Esse ato do presidente do Tribunal, denominado de recurso, embora ex officio, não tinha o caráter de necessário."

Para a maioria dos processualistas, não tem o recurso de oficio(especialmente o obrigatório) caráter recursal. Para Frederico Marques é ele, antes, um quase recurso,  pois o reexame na jurisdição superior, se efetua ex vi legis. Havia aí uma ordem de devolução imposta pela lei e não remédio recursal.

Seabra Fagundes(Recursos ordinários em matéria civil, pág. 133, n. 9) entendia que é perfeitamente "assinalável nos recursos necesários o requisito específico, por excelência, de todo o recurso: o suscitamento de reexame do julgado". 

Na verdade, o instituto discutido tem a natureza de condição de eficácia da sentença.

II – A INEXISTÊNCIA PARA O INSTITUTO DE REQUISITOS RECURSAIS NECESSÁRIOS

Bem esclareceu Nelson Nery Junior(Princípios fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, 4ª edição, pág. 55) que essa medida não tem natureza jurídica de recurso. Isso porque faltam-lhe  a voluntariedade, a tipicidade, a dialeticidade, o interesse de recorrer, a legitimidade, a tempestividade e o preparo, características e pressupostos da admissibilidade dos recursos.

As partes, o interessado, bem como o Ministério Público, para recorrer, devem demonstrar a vontade inequívoca de assim proceder, no sentido de pretender a reforma, anulação ou aclaramento da decisão impugnada. O juiz não pode demonstrar “vontade” em recorrer já que a lei lhe impõe o dever de remeter os autos à superior instância.

Sabe-se que o recurso deve estar expressamente previsto em lei federal(competência privativa da União), em regime de taxatividade. Como a remessa obrigatória não se encontra descrita no Código de Processo Civil como tal, falta-lhe a tipicidade, pois os recursos estão enumerados em lei, em numerus clausus.

Estes são dialéticos, principalmente em atendimento ao princípio da bilateralidade da audiência(ou contraditório, como preferem alguns). O recurso deve ser fundamentado, devendo o recorrente manifesta as razões do inconformismo, por escrito, para que o tribunal destinatário possa apreciar o mérito do pedido de rejulgamento. Deve ser dada oportunidade ao recorrido para deduzir as razões pelas quais entende deva ser mantida a decisão impugnada, em obediência ao princípio constitucional da bilateralidade da audiência.

O juiz não cai em sucumbência. Não perde nem ganha nada com a decisão proferida. Falta-lhe tanto a sucumbência formal(não atendimento ao pedido formulado no processo) como a material(desvantagem prática ou não alcance de tudo o que se poderia obter no processo).

O juiz ainda não tem legitimidade alguma para recorrer.

Além disso,  não há prazo, não há que se falar em preclusão para o juiz. Diga-se isso uma vez que o prazo é requisito para todo e qualquer recurso.

III -  O INSTITUTO NOS CÓDIGOS DE 1973 E 2015

No CPC de 1973 tinha-se:

Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)

- proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público; (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI). (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)

§ 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los. (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)

§ 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor. (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)

§ 3o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente. (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001).

Em sua redação originária, no CPC de 1973, havia a aplicação do instituto para as sentenças que anulassem casamento.

Afirma-se que era caso de reexame necessário a sentença que declarasse a nulidade do casamento. Assim, ao invés dos processos de divórcio atuais, tentava-se buscar as anulações de casamento, o que devolvia os cônjuges para a condição de solteiros. Como isso “agredia” o senso comum/religioso dos parlamentares da época, a sentença que declarasse a nulidade do casamento, que teria que, obrigatoriamente, ser submetida a reexame necessário. Era uma tradição que se firmava sob os princípios de família e patrimônio.

Tal dispositivo perdeu sua razão de ser com o advento do desquite anos depois, até que veio a ser totalmente retirado do CPC/73 em 2001 por desuso. Permaneceu, entretanto, a remessa necessária nas hipóteses em que a Fazenda Pública fosse condenada.

No CPC de 2015 tem-se a redação do artigo 496:

Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

- proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.

§ 1o Nos casos previstos neste artigo, não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á.

§ 2o Em qualquer dos casos referidos no § 1o, o tribunal julgará a remessa necessária.

§ 3o Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a:

- 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - 500 (quinhentos) salários-mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados;

III - 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.

§ 4o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:

- súmula de tribunal superior;

II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

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III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.

IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.

A interpretação dada ao artigo é restritiva.

Não se admite que a matéria que foi objeto de entendimento pelo Supremo Tribunal Federal  ou Superior Tribunal de Justiça, firmada em Súmula(conjunto de estilo decisório dos tribunais) - com  força normativa para muitos -  ou ainda objeto de recurso repetitivo seja objeto dessa forma de sucedâneo recursal. Ainda tal encaminhamento não pode afrontar orientação vinculante da Administração, lembrando-se que não se pode falar em coisa julgada administrativa, fenômeno que só existe para as chamadas decisões judiciais.

O piso de salário-mínimo para que houvesse incidência da remessa necessária seria calculado sobre a condenação proferida contra a Fazenda Pública. Além disso, tenha-se que o parâmetro "valor da condenação", somente se aplica às hipóteses em que a sentença contiver valor certo e líquido. Assim para os casos em que for necessária a liquidação, a remessa continua sendo obrigatória. Esse já era o entendimento do Superior Tribunal de Justiça pela Súmula 490, onde se disse: " A dispensa de reexame necessário, quando o valor da condenação ou do direito controvertido for inferior a sessenta salários, não se aplica a sentenças ilíquidas". 

Os arts. 13 da Lei nº 10.259/2001 e 11 da Lei nº 12.153/2009, que tratam, respectivamente, dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal e Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, proibiram, expressamente, o reexame necessário nas causas dos respectivos juizados, porquanto, tendo em vista o pequeno valor limite para a competência, deve prevalecer a simplicidade e a celeridade processual.

Pouco tempo depois da edição da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, o legislador tratou de restringir o cabimento da remessa necessária em todos os casos em que o valor da condenação ou do litígio não ultrapassava sessenta salários mínimos, ou, ainda, quando fossem procedentes os embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor (art. 475, § 2º, do CPC/1973). A inovação mais marcante da Lei nº 10.352/2001, que alterou o CPC de 1973, foi afastar o reexame quando a sentença estivesse em consonância com jurisprudência do plenário do STF ou com súmula de tribunal superior (art. 475, § 3º, CPC/1973).

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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