Indenizações em casos de assédio sexual no transporte público.

Dificuldades de fixação de danos morais no direito brasileiro atual

23/12/2017 às 18:29

Resumo:


  • A mídia tem dado destaque para casos de assédio sexual no transporte público, gerando reflexões sobre a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social.

  • O STJ julgou a responsabilidade das empresas de transporte em casos de assédio sexual, destacando a importância da prevenção e da responsabilização.

  • Empresas podem adotar medidas proativas, como vagões privativos, campanhas educativas e treinamentos, para evitar casos de assédio e proteger os passageiros.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Análise da nova orientação do Superior Tribunal de Justiça a respeito da pertinência subjetiva da lide das empresas de transporte nesse tipo de demanda

A mídia tem dado um destaque grande para a triste realidade de pessoas assediadas sexualmente no transporte público, o que, certamente, desaguará em um grande número de demandas versando sobre o tema. São necessárias, portanto, algumas reflexões sobre o tema, sobretudo diante de novo julgamento do STJ em dezembro de 2017, a respeito de tal questão.

E vale lembrar que o mundo passa por uma revisão conceitual muito produtiva em que se busca, cada vez, no âmbito do direito civil constitucionalizado, se alcançar a plena eficácia de princípios como a dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, donde avulta a importância de aspectos como a socialidade, a eticidade, a operabilidade e da concretude, como apontam autores como Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (Direito Civil, Teoria Geral, Ed. Juspodium).

Em breves linhas, isso implica em reforço à ideia de se deva, ao aplicar normas, ficar atento aos fins sociais a que a lei de destina (o que já estava previsto no artigo 5º LINDB e é abraçado pela noção de função social ínsita a qualquer tipo de contrato – seja na sua eficácia interna – efeitos entre as partes, seja na sua eficácia externa – como o objeto contratual impactará a sociedade), a eticidade aponta no sentido de que as normas jurídicas não pode ser aplicadas sem se orientarem na consecução de Justiça (preceitos éticos, portantos), na operabilidade se tem que os atos jurídicos, além dos caracteres objetivos, deve levar em considerações pessoais, sobretudo de hipossuficientes e hipervulneráveis (não se interpreta do mesmo modo o mesmo contrato bancário firmado com empresário de médio porte e por uma pessoa analfabeta), sempre se buscando conferir entendimentos aptos à produção de resultados práticos efetivos (concretude).

Tais ideias parecem ter sido aplicadas na recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da legitimidade das empresas de transporte coletivos em casos de assédio sexual no interior de seus veículos (e sempre vale lembrar que o contrato de transporte é típico – nominado – e não obstante esteja previsto no Código Civil, pela teoria do diálogo das fontes de Erik Jaime, corrente entre nós, pode ser visto como relação de consumo, notadamente no que tange ao transporte de passageiros).

Mais ainda, nesse tipo de transporte, não se pode esquecer de que exista uma cláusula de incolumidade – ou seja, são contratos de resultados e não de meios – o passageiro não pode ter sido molestado ou atingido, de qualquer modo, no curso da execução do contrato – são frequentes, aliás, as indenizações de danos materiais e morais de pessoas que se acidentam no interior de ônibus, trens e congêneres.

E, em relação a tanto, no mês de dezembro de 2.017, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça procedeu ao julgamento de recurso que lança precedente de grande impacto nos contratos de transporte de passageiros no que tange ao fato de que se reconheceu que as empresas transportadoras poderão vir ser chamadas a responder por danos morais, em casos de assédio sexual no interior dos veículos de transporte.

Em caso envolvendo a CPTM o Ministro Luis Felipe Salomão (houve quatro votos a um) no julgamento do REsp nº 1678681 / SP (2017/0099743-0) entendeu que não se pode excluir a priori a responsabilidade civil da empresa transportadora de passageiros em casos de crimes sexuais (observe-se que o aresto não destaca quais seriam esses crimes, lança-se a questão no gênero a permitir o desenlace de que qualquer conduta que possa implicar em importunação sexual que, como sabido, não é uma questão de gênero – ou seja, pessoas que se identifiquem com quaisquer gêneros, sejam heterossexuais, sejam homossexuais, o que dificulta ainda mais a prevenção de posturas).

A opção da empresa de transporte em disponibilizar, por exemplo, vagões privativos para pessoas de determinado gênero, sem imposição obrigatória, pode ser uma alternativa viável para que a empresa se proteja em relação a esse tipo de indenização, desde que observados alguns parâmetros – se somente houver um horário diário fora dos horários de pico, a medida seria pífia, mas se nesses horários forem disponibilizados carros privativos em número condizente com a demanda, ficará difícil para a vítima de assédio processar a transportadora, eis que a vítima poderia ter evitado ser molestada se optasse pelo transporte – o problema será se pessoas que tenham características físicas de um gênero mais que se atribuam gênero diverso, se forem impedidas de ingressar nesses vagões poderão processar por discriminação de gênero - dificuldades que uma sociedade complexa suscita (Na obra Ciência com Consciência, Edgar Morin revela que vivemos em um paradigma de complexidade).

E antes que se venha aduzir que defendo esta ou aquela bandeira, aponto no sentido de que somente estou trazendo à questão para suscitação de debate, já que discussões como estas permeiam o mundo jurídico.

A despeito do aresto do STJ ter enfrentado o caso específico de uma mulher, o desate não elide a possibilidade de que transexuais, travestis, homens ou pessoas de quaisquer gêneros (sim há uma infinidade de gêneros conhecidos na sociologia de hoje) se digam importunadas. E a liberdade sexual seria o direito de personalidade protegido no caso desse tipo de indenização por dano moral, sendo certo que o STJ já apontou no sentido de que isso estaria englobado na dita incolumidade do passageiro que permeia a atividade do transporte, como asseverado linhas acima.

O aresto tem tons candentes no sentido de que se deva aferir em cada caso concreto a responsabilidade civil da transportadora, lembrando que existem questões atinentes à responsabilidade civil objetiva por conta da relação de consumo e por conta da atividade pública prestada por empresa privada, em responsabilidade civil objetiva que somente produziria efeito desde que atendido o pressuposto do nexo de causalidade, o qual pode ser rompido por razões como fato exclusivo da vítima, fato exclusivo de terceiro, caso fortuito ou força maior, nos termos do Julgado em análise.

Apontou-se ainda que o fato de terceiro que apresente vínculo com a organização do negócio caracteriza fortuito interno, ou seja, não elide o dever de indenizar. Ou seja, motoristas, cobradores, agentes de segurança, funcionários de um modo geral devem ser orientados no sentido de que “cantadas” ou olhares indiscretos podem levar ao dever de indenizar – se a empresa de transporte tiver como comprovar politicas de prevenção e treinamentos nesse sentido, problemas poderão ser evitados – advogados podem passar a tecer cartilhas em linguagem simples para alertar os empregados sobre isso – empresas que tenham esse diferencial e os comprovem em Juízo podem ter responsabilidade civil atenuada em condições como tal – afinal de contas, se a culpa for levíssima, o valor da indenização será obrigatoriamente reduzido, nos termos do artigo 944, parágrafo único do Código Civil.

Observe-se que o Ministro Luis Felipe Salomão, mesmo com divergência de um Julgador da mesma Turma, apontou no sentido de que:” “Cumpre, portanto, ao Judiciário aferir se, uma vez ciente do risco da ocorrência de tais condutas inapropriadas no interior dos vagões, a transportadora pode ou não ser eximida de evitar a violência que, de forma rotineira, tem sido perpetrada em face de tantas mulheres”.

De igual modo, seria conveniente que a empresa possa cogitar, por exemplo, de iniciar campanhas educativas com cartazes em ônibus e trens, por exemplo, dando um número de telefone para o qual passageiros possam contatar a empresa e efetuar denúncias – isso evitaria alegações futuras de descaso da empresa para com a questão – mais ainda, motoristas e funcionários devem ser orientados a agirem prontamente, acionando a polícia a pedido da vítima, o que deve ser documentado da melhor forma possível (em boletins de ocorrência que devem ser acompanhados por alguém da empresa, deve-se frisar que a vítima reclamou e solicitou o comparecimento policial, apontando-se testemunhas do fato e seus dados de qualificação – isso evitará alegações de conivência, descaso ou, em caso de retratação demonstrará que a empresa apenas atendeu solicitação da vítima).

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O objetivo maior por trás de tudo isso, parece ter sido atribuir às empresas um papel mais proativo na prevenção da violência sexual no transporte público e isso se revela no fato de que o aresto adverte no sentido de que a culpa deve ser exclusiva do terceiro para gerar a exclusão de indenização, a empresa deve se resguardar apontando que não colaborou, de modo algum, para que se consentisse com o quadro de importunação à liberdade sexual da vítima.

A questão é muito relevante e complexa. Mais ainda, Magistrados devem aferir o valor de eventuais indenizações com equilíbrio.

No passado pensava que indenizações deveriam ser muito altas para impedir que condutas se repetissem, tal como se dá no sistema jurídico da Common Law, em que se aplica o sistema da exemplar damages, ou dano exemplar como forma de atingir objetivos de prevenção geral (não apenas prevenção especial com a indenização do dano da vítima, mas como modo de evitar que no futuro outras pessoas passem por aquilo).

Mas aí, passei a analisar aspectos mais interdisciplinares e observar que não existe almoço grátis em qualquer ramo do mercado (em alusão à corrente expressão econômica americana - "There ain't/is no such thing as a free lunch" – frase do ganhador do Prêmio Nobel de Economia Milton Fiedman), ou seja, cada vez que um Juiz aplica uma indenização em casos como estes não percebe que, em verdade, está agregando um custo ao valor do serviço prestado pela transportadora – esses custos são reunidos anualmente ou semestralmente e, em se tornando habituais (por exemplo todo mês tem-se que se desembolsar cem ou duzentos mil reais em indenizações de danos morais naquela empresa naquele setor) acabam por aumentar a sinistralidade do negócio para efeitos securitários e aumentarão custos de modo definitivo o que levará à análise da equação financeira de contratos de permissão de transporte no transporte público, dados que influirão no valor da passagem para todos os usuários do sistema.

Com isso se observa que, num primeiro momento, para a sociedade, poderia parecer razoável aplicar vinte, trinta, cinquenta mil reais de indenização por danos morais para combater tais condutas (certamente os advogados dos autores agradecem), mas quando se pensam em grandes números, quanto maior a indenização, a transportadora não será diretamente atingida e sim seus usuários a médio ou longo prazo. Não se apregoa que os valores devam ser diminuídos ou que aplicações sejam pífias, mas se traz à discussão esse aspecto da discussão muitas vezes ignorados.

Dever-se-ia pensar em outros tipos de estratégias jurídicas, para a vinculação de sócios ou gestores e seu patrimônio pessoal em demandas deste jaez, impedindo-se o repasse dos custos aos usuários e atingindo de modo mais racional o combate à conduta que se pretenda encetar.

Ou seja, a questão envolve situações muito mais complexas, a exigirem do Juiz que sopese com muito cuidado o bem jurídico que pretenda atender com suas decisões, mormente num mundo em que o STJ atribui às partes e aos Juízes os ônus de buscarem uma fixação bifásica do montante das indenizações por danos morais (em primeiro lugar, devem ser buscados grupos de casos análogos para justificar a aplicação do piso indenizatório para aquele tipo de situação) e, num segundo lugar, seria de se apontar as peculiaridades do caso que impliquem em fatores de ampliação ou de redução daquele montante (recente Julgado do STJ considerou, inclusive, que a demora no acionamento do Poder Judiciário – algumas pessoas acionam apenas quando o prazo prescricional se avizinha – vide aresto nesse sentido no Informativo STJ nº 611, deste ano de 2.017).

A tendência parece se dar no sentido de evitar interpretações elásticas que permitam em nome de conceitos vagos, como equidade ou razoabilidade, sem bases concretas ou apontamentos de fatores concretamente aferíveis, possibilitem a fixação de valores fora da realidade, o que parece inclinar no sentido de padronizações deste tema, o que contribuirá, inclusive, para a diminuição do número de recursos sobre o tema.

Tudo isso sem prejuízo da discussão que hoje se observa no sentido de possível situação de obsolescência da Súmula nº 326/STJ pela redação do artigo 292, inciso V CPC/15 que estabelece o expresso ônus do autor em atribuir o valor da causa em pedidos de danos morais, o que foi reforçado pela ideia do critério bifásico aduzido acima.

Há risco de que a jurisprudência passe a reconhecer que autores passem a responder por sucumbência se atribuírem valores não justificados de indenizações por danos morais. O mundo parece estar se tornando um lugar perigoso para abusar no valor das indenizações.

Sobre o autor
Julio Cesar Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor da FAJ do Grupo Unieduk de Unitá Faculdade. Coordenador nacional dos cursos de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, Direito Imobiliário e Direito Contratual da Escola Superior de Direito – ESD Proordem Campinas e da pós-graduação em Direito Médico da Vida Marketing Formação em Saúde. Embaixador do Direito à Saúde da AGETS – LIDE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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