I - A LIBERDADE PROVISÓRIA E A IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA PELO PARQUET
O recurso em sentido estrito interposto contra decisões de outra natureza – como a muito comum em que se concede a liberdade provisória – não tem efeito suspensivo.
No âmbito da execução penal, as decisões que concedem benefícios – e as que os negam – são atacadas por meio do agravo em execução, cujo rito, na falta de previsão legal específica, é o do recurso em sentido estrito, e sobre o qual, por disposição expressa do art. 197 da LEP, não há efeito suspensivo.
Tanto nos casos de recurso em sentido estrito sem efeito suspensivo quanto nos de agravo em execução, a solução muitas vezes adotada pelo Ministério Público é a impetração de mandado de segurança pleiteando a imposição do mencionado efeito. Pretende-se, dessa forma, obstar, por exemplo, a eficácia da decisão que concede liberdade provisória a quem está preventivamente preso, ou impedir a eficácia de decisão concessiva da progressão de regime ou de livramento condicional.
II - AS POSIÇÕES DIVERGENTES DO STF E DO STJ NA MATÉRIA
O STF chegou a admitir a impetração do mandado de segurança para conferir efeito suspensivo a recurso em sentido estrito:
“A natureza eminentemente civil da ação de mandado de segurança não impede a sua utilização em sede processual penal, uma vez configurados os pressupostos de impetrabilidade do “writ” constitucional. precedentes. – reveste-se de legitimidade a decisão do tribunal que, deferindo mandado de segurança impetrado por promotor de justiça, outorga efeito suspensivo a recurso em sentido estrito deduzido pelo ministério público contra ato judicial concessivo de liberdade provisória” (HC 70392/DF, DJ 01/10/1993).
O STJ há muito tempo consolidou o entendimento de que, concedida a liberdade provisória, não se admite a impetração de mandado de segurança pelo Ministério Público para fins de atribuição de efeito suspensivo a recurso em sentido estrito, que não o detém.
O entendimento dominante no Superior Tribunal de Justiça é de que “revela constrangimento ilegal o manejo de mandado de segurança para se restabelecer constrição em desfavor do indivíduo, na pendência de irresignação interposta” (HC 301122, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, STJ – Sexta Turma, DJE data: 02/10/2014). Há, de fato, inúmeros julgados nesse diapasão, tornando a jurisprudência do STJ “firme no sentido do não cabimento de mandado de segurança para conferir efeito suspensivo a determinado recurso que não o possui”.
Entretanto, desse posicionamento não compartilha o Tribunal Constitucional, que tem julgado, reiteradamente, em sentido contrário. No julgamento do Agravo Regimental no HC 108.187/SP, de relatoria do Min. Luiz Fux, faz-se remissão (ainda que em obiter dictum) à jurisprudência consolidada daquela corte:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. ENUNC IADO 691 DA SÚMULA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. IMPOSSI BILIDADE. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO EM SEN TIDO ESTRITO. LEGITIMIDADE. SUPERVENIÊNCIA DE PRONÚNCIA. NEGATIVA DE DIREITO A RECURSO EM LIB ERDADE. PREJUDICIALIDADE DO WRIT. AGRAVO DESPROVIDO. [...]. ‘Reveste-se de legitimidade a decisão do Tribunal que, deferindo mandado de segurança impetrado por promotor de justiça, outorga efeito suspensivo a recurso em sentido estrito deduzido pelo ministério público contra ato judicial concessivo de liberdade provisória’ (HC 70392, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 31/08/1993, DJ 01-10-1993).
(HC-AgR 108187, Rel. Min. Luiz Fux, STF)
O precedente citado pelo Min. Fux (qual seja, o HC nº 70.392/DF) é de relatoria do min. Celso de Mello. Nele, asseverou o então ministro relator:
“A única finalidade perseguida pelo Ministério Público, no caso, com a impetração do mandado de segurança, resumia-se, em última análise, a emprestar eficácia suspensiva a um recurso criminal que, ordinariamente não a possuindo, veio a ser interposto de uma decisão supostamente ilegal.
Sob esse aspecto, foi incensurável o procedimento do Ministério Público, pois esta Suprema Corte tem, no tema, reconhecido a possibilidade de utilização do writ mandamental com esse específico objetivo (RTJ 128/1199, 1208, rel. min. Moreira Alves) (...).
Não questiono, portanto, a admissibilidade do mandado de segurança, em sede processual penal, em hipóteses em que o writ constitucional é utilizado, p. ex., para impugnar decisão contra a qual não cabia recurso específico (RT 572/326 – 577/386), ou, ainda, para viabilizar a outorga de feitos suspensivo a recurso que somente disponha de eficácia devolutiva(RT 513/782 - 592/321 - 655/279).".
Como já salientado, outro é o posicionamento do STJ:
"A impetração do mandado de segurança como sucedâneo recursal, notadamente com o fito de obter medida não prevista em lei, revela-se de todo inviável, sendo, ademais, impossível falar em direito líquido e certo na ação mandamental quando a pretensão carece de amparo legal" (HC 368.906/SP, DJe 28/04/2017).
É essa a orientação que fundamenta recentes decisões:
“(…) não obstante as razões declinadas pelo agravante, a decisão monocrática deve ser mantida por seus próprios fundamentos. Com efeito, a jurisprudência desta Corte Superior é consolidada no sentido de inadmitir a possibilidade de impetração de mandado de segurança a fim de conferir efeito suspensivo a recurso em sentido estrito interposto contra decisão que concedeu a liberdade provisória ao paciente” (AgRg no HC 377.712 / SP, DJe 09/05/2017).
“Não cabe, na análise de pedido liminar de mandado de segurança, atribuir efeito suspensivo ativo a recurso em sentido estrito interposto contra a rejeição de denúncia, sobretudo sem a prévia oitiva do réu. Destaca-se que, em situações teratológicas, abusivas e que possam gerar dano irreparável à parte, admite-se, excepcionalmente, a impetração de mandado de segurança contra ato judicial para atribuir-lhe efeito suspensivo. No entanto, tratando-se de não recebimento de denúncia, nem sequer em hipóteses de teratologia seria permitida a realização do ato em outra relação processual. Com efeito, em homenagem ao princípio do devido processo legal, o recebimento da denúncia deve ocorrer, necessariamente, nos autos da ação penal instaurada para apurar a prática do suposto ato criminoso. Ademais, há de ressaltar que o não recebimento da denúncia gera para o réu uma presunção de que não se instaurará, contra ele, a ação penal. Essa presunção, contudo, não é absoluta, pois contra a rejeição da denúncia pode ser interposto recurso em sentido estrito. No entanto, permitir-se-á ao réu a apresentação de contrarrazões e a sustentação oral antes de seu julgamento do recurso pelo colegiado. Desse modo, observa-se que, por certo, viola o contraditório e a ampla defesa decisão liminar proferida na análise de mandado de segurança que determine o recebimento da denúncia sem permitir qualquer manifestação da parte contrária. Ressalte-se, ainda, que o recebimento da denúncia, nessas circunstâncias, causa um tumulto processual inaceitável, porque, ao mesmo tempo em que nos autos da ação principal há uma decisão de rejeição da denúncia (pendente de julgamento do recurso cabível), em razão de liminar concedida em outra relação processual, qual seja, um mandado de segurança, há o recebimento da inicial acusatória. O tumulto processual é tão grande que a parte ré, beneficiada pela rejeição da denúncia (em decisão ainda não modificada dentro da própria ação penal), por meio de uma liminar proferida em mandado de segurança, se vê obrigada a, nos autos da ação principal, apresentar resposta à acusação, em primeira instância, e contrarrazões ao recurso em sentido estrito, em segunda instância, além de ter de se manifestar no mandado de segurança, que é uma relação processual autônoma. HC 296.848-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 16/9/204.” (Decisão publicada no Informativo 547 do STJ - 2014).
Observe-se, outrossim, julgamento abaixo:
RMS 5414 / SP
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA
1995/0006322-0
Relator(a)
Ministro EDSON VIDIGAL
Órgão Julgador
T5 - QUINTA TURMA
Data do Julgamento
16/08/1995
Data da Publicação/Fonte
DJ 09/10/1995 p. 33581
Ementa
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO.
EFEITO SUSPENSIVO.
1. SE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NÃO PODE SITUAR-SE NA POSIÇÃODO TRIBUNAL DE ORIGEM, PARA CONCEDER, TAMBEM, O MERITO DA DEMANDA,INVIAVEL SE AFIGURA A CONCESSÃO DO EFEITO SUSPENSIVO, EM FACE DAAUSENCIA DE PRODUÇÃO DE RESULTADO.
2. RECURSO IMPROVIDO.
É patente que a Suprema Corte já confirmara o posicionamento sobre a matéria, em face do qual se contrapôs o Superior Tribunal de Justiça.
III - A POSIÇÃO DOUTRINÁRIA
Permito-me trazer a douta opinião do Desembargador Francisco Cavalcanti (O novo regime jurídico do mandado de segurança: Comentários à lei 12.016, de 7 de agosto de 2009, de 7 de agosto de 2009, 2009, página 73) quando argumenta:
“O mandado de segurança não é substitutivo do recurso, nem instrumento para, como regra, atribuir-se o efeito suspensivo para o qual o sistema processual não previu aquele efeito, sobretudo para que tal não funcione como uma ferramenta para procrastinação dos processos.”.
Ainda da prática forense e das lições de Guilherme de Souza Nucci (Manual de processo penal e execução penal, São Paulo, RT, 7ª edição, 2010, pág. 968 e 969), alguns exemplos de utilização do remédio processual podem ser suscitados:
a) para obstar a injustificada quebra do sigilo bancário, fiscal ou de outros dados (impetração contra o juiz que deu a ordem);
b) para autorizar o acesso de advogado aos autos, ainda que o inquérito ou processo corra em segredo de justiça (impetração contra o magistrado, se este deu a ordem, ou contra a autoridade policial se partiu desta a medida restritiva contra o advogado);
c) para assegurar a presença de advogado ou defensor durante a produção de alguma prova na fase inquisitorial, possibilitando a sua presença, uma vez que se trata de prerrogativa sua;
d) pelo ofendido, quando o assistente do Ministério Público for impedido de se habilitar nos autos pelo juiz, sem justificativa plausível;
e) pela acusação, quando o julgador ordena a soltura do acusado, agindo contra a expressa disposição de lei, uma vez que é inviável o habeas corpus, quando o Parquet age pro societate;
f) quando o recurso cabível é desprovido de efeito suspensivo;
g) quando se quer dar efeito suspensivo ao recurso apresentado;
h) quando do ato combatido advenha dano irreparável demonstrado prontamente;
i) quando há apreensão excessiva de material para fundamentar uma ação penal por crime contra a propriedade industrial;
j) visando evitar o desentranhamento de documentos;
k) para apresentar quesitos em perícia;
l) contra ordem de sequestro;
m) para restituição de coisas apreendidas;
n) para trancamento de inquérito policial ou ação penal quando a indiciada ou acusada é pessoa jurídica;
o) para entrega provisória de aeronave apreendida.
IV - CONCLUSÕES
Assim seria tal hipótese de impetração, pois, caso contrário, estar-se-ia diante de uma afronta ao princípio da legalidade, dando-se, por suposta analogia, um efeito que a lei não deu, em confronto ao devido processo legal, diante da surpresa que seria trazida à parte contrária no processo penal.
Data vênia, tal opinião não é conclusiva.
A inversão: toda hipótese de não cabimento de recurso com efeito suspensivo é hipótese de mandado de segurança, embora não se justifique do ponto-de-vista lógico-gramatical, admite-se pela interpretação abrangente e principiológica do direito.
Nesse sentido, doutrina com Rogério Lauria Tucci. (Do mandado de segurança contra ato jurisdicional penal. São Paulo: Saraiva, 1978, pg. 74.)
“Realmente, em diversos momentos processuais, e nas mais variadas circunstâncias, pode acontecer que o recurso utilizável não tenha efeito suspensivo; [...] Ora, para evitar-se a consumação de inafastável e grave prejuízo ao indivíduo, a garantia do writ examinado não pode deixar de estender-se a tais hipóteses, obviando, desse modo, a concretização de consequências ruinosas e irremediável, decorrentemente do ato jurisdicional recorrível ou corrigível. Não há, por certo, - como antes, também, constatamos – outra forma de conceber a garantia constitucionalmente assegurada aos membros da coletividade, senão a que lhe confira ampla, bem larga, interpretação”.
Mormente quando houver dano irreparável e ainda decisão teratológica e francamene ilegal, não se pode deixar de utilizar o writ, sob pena de prejuízo ao devido processo legal. Essa a tradição que já existe no histórico processo civil lusitano e que pode ser utilizada no processo penal. É o chamado agravo de dano irreparável.
Celso Agrícola Barbi (Mandado de segurança contra ato judicial), analisando a utilização do writ em vista de decisões interlocutórias, bem sintetizou as condições expostas pelo STF, no RE 76.909 - RS, Relator ministro Xavier de Albuquerque, à luz de memorial do professor Galeno Lacerda:
a) a não suspensividade do recurso;
b) a irreparabilidade do dano real, caracterizado pela impossibilidade objetiva de reparação.
Galeno Lacerda, aliás, estudando a tradição luso-brasileira, vê nas interlocutórias, que a doutrina, dos velhos praxistas portugueses e brasileiros, denomina mistas, ou com força de definitivas, a fonte do agravo de dano irreparável. Partindo da análise da Lei das Sete Partidas, de Afonso X, de Castela, vê que sempre se deu recurso suspensivo às interlocutórias que aquela doutrina denominou de mistas ou definitivas, isto é, terminativas e as causadoras de dano irreparável, que foram recepcionadas pelo Código de Processo Penal ainda em vigor, quando se admitiu o chamado recurso em sentido estrito.
Repito que, em qualquer hipótese, é necessária a constatação de ilegalidade para o ato atacado e direito líquido e certo, sem o qual é incabível a impetração do mandado de segurança contra o ato judicial apontado.