UM CASO DE REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO POR INGRATIDÃO
Rogério Tadeu Romano
I – O CONTRATO DE DOAÇÃO E A REVOGAÇÃO POR INGRATIDÃO
Sendo um contrato gratuito, a doação, já, no direito romano, era passível de ser revogada. Em primeiro lugar, por ingratidão do donatário, situação consagrada pelo Código Civil de 1916, no artigo 1181 e que foi no próprio direito de Justiniano, admitido nas doações de patrono a liberto, depois nas de mãe a filho e mais tarde entre todos os ascendentes e descendentes, para, finalmente, ser generalizado a todas as doações.
Havia a donatio sub modo era um tipo especial de doação inter vivos. O modus ou encargo difere da condição, por não subordinar a realização do ato jurídico a um implemento do ônus. Tratava-se de um serviço que o donatário deve prestar ao doador e que, não sendo correspectivo, não furta à doação o caráter de liberalidade. A princípio, o donatário tinha um mero dever moral de cumprir o encargo, salvo se o doador, por uma stipulatio especial ou por uma cláusula de revogação acessória à doação, houvesse sancionado esse cumprimento. Justiniano admitiu que a doação autorizasse, por si mesma, o doador a intentar uma ação, a actio praescriptis verbis, para constranger o donatário a cumprir o encargo e, por outro lado, que fosse revogada, na hipótese de inadimplemento do ônus, como ensinou Ebert Chamoun(Instituições de Direito Romano, 5ª edição, pág. 394).
Havia, no direito romano, a doação mortis causa, que era feita na suposição de que o donatário sobrevivesse ao doador. Realizava-se mediante mancipação com pacto de fidúcia ou com estipulação cum morieris. A ação que se dispunha era em princípio a própria ação do negócio. Por sua vez, Justiniano acrescentou a condictio incerti, a actio praescriptis verbis e quando a transação fosse feita com transferência da propriedade a rei vindicatiio.
O Código Civil francês não alinhava a doação entre os contratos, mas como modalidade particular de aquisição da propriedade. Impressionava aos franceses a ausência de bilateralidade na prestação.
Para os alemães, com Dernburg, dentre outros, a doação é um contrato.
As doações, por serem contratos unilaterais e gratuitos, podem ser revogadas;
- Por descumprimento do encargo;
- Ingratidão do donatário, quando o donatário atenta fisicamente ou moralmente contra a integridade do doador, proceder o donatário contra o doador por injuria ou calúnia ou difamação; quando recusa o donatário alimentos ao doador
A sentença revogadora produz efeitos ex nuc, já que se tem uma sentença constitutiva.
Não se revogam por ingratidão as dádivas feitas por ocasião de um serviço.
A matéria no Código Civil de 2002 está regida pelos artigos 555, primeira alínea, 557, I a IV , 561, 558, 564, I a IV, 546, 1639, 563, 1360, 556, 560, primeira alínea e 559). Ainda por descumprimento do encargo, leia-se o artigo 562, do Código Civil de 2002.
II – UM CASO CONCRETO
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) que, por reconhecer ingratidão, revogou a doação de bens imóveis feita por um homem a sua ex-esposa.
De acordo com o processo, após a separação, o homem fez doações à ex-mulher, compreendendo imóveis e depósitos em dinheiro. Tempos depois, entretanto, em uma atitude emocional descontrolada, a ex-mulher deflagrou disparos de arma de fogo em frente à residência do ex-marido, o qual decidiu mover ação ordinária revogatória das doações.
O TJPE entendeu que houve atentado contra a vida do doador. Além disso, reconheceu a prática de injúria grave e calúnia num episódio em que a mulher compareceu à polícia para acusar o ex-marido de ter contratado seguranças para invadir sua casa.
O acórdão decidiu pela revogação das doações dos imóveis, excluindo as doações em dinheiro, dada a sua natureza remuneratória.
Segundo o site do STJ, datado de 5 de janeiro de 2018, contra a decisão, a donatária interpôs recurso especial no qual alegou que, no incidente do disparo de arma de fogo, não houve atentado à vida do doador, nem intenção de lhe causar lesão física. Em relação à suposta ocorrência de calúnia e injúria grave, a mulher disse que não mentiu ao narrar os fatos.
A donatária também alegou que a revogação das doações não seria possível, por não se tratar de doação pura e simples, mas sim de doações de caráter remuneratório pela dedicação, zelo e atenção que ela sempre dispensou ao matrimônio e filhos – não apenas aos do casal, mas também aos do primeiro casamento do doador.
O relator, ministro Marco Buzzi, reconheceu que a jurisprudência do STJ já se manifestou no sentido de que, para a revogação de doação por ingratidão, exige-se que os atos praticados sejam marcadamente graves, como os enumerados no artigo 557 do Código Civil.
No entanto, ele destacou a impossibilidade de rever a decisão do tribunal de origem, por força da Súmula 7 do STJ, que impede a reapreciação de provas em recurso especial.