Boaventura de Sousa Santos promoveu, no texto Uma concepção multicultural dos direitos humanos, uma reflexão acerca da possibilidade de se encarar os direitos dessa natureza como um instrumento emancipatório.
Seu interesse foi, a partir de uma análise crítica, propor uma identificação “das condições em que os direitos humanos podem ser colocados ao serviço de uma política progressista e emancipatória” (SANTOS, 1997, p. s.n.).
Boaventura de Sousa Santos (1997), no entanto, destaca alguns fatores que têm impedido que isso ocorra. Para apresentar suas ideias, cita três tensões dialéticas, uma entre a regulação social e a emancipação social; outra, entre o Estado e a sociedade civil; e a última, entre o Estado-nação e o que designa globalização.
Frisando a última tensão, pontualmente, a globalização, alude tratar-se de um fenômeno complexo e de difícil definição, que, no entanto, numa perspectiva que compreende os diferentes conjuntos de relações sociais deverá ser encarado no plural e não no singular, já que “[...] as globalizações envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios” (SANTOS, 1997, p. s.n.).
Assim, a globalização poderia ser conceituada como “o processo pelo qual determinada condição ou entidade local consegue estender a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival” (SANTOS, 1997, p. s.n.).
Em outras palavras, passa-se a ideia de que o mundo ocidental conta a história de preferências locais que tomaram dimensões globais enquanto cernes de vida vencedoras e, por essa razão, foram encaradas como verdades a serem seguidas. A título de exemplo, pontua:
[...] A língua inglesa enquanto língua franca é um desses exemplos. A sua propagação enquanto língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais, nomeadamente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalização, o seu sentido e explicação integrais não podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalização com ele ocorrendo em simultâneo ou sequencialmente. A globalização do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a etnicização do sistema de estrelato do cinema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60 — de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroiani a Sofia Loren — que simbolizavam então o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se não mesmo curiosamente étnicos. A diferença do olhar reside em que de então para cá o modo de representar holliwoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um exemplo de uma área totalmente diferente, à medida que se globaliza o hambúrguer ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau português ou a feijoada brasileira no sentido de que serão cada vez mais vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira (SANTOS, 1997, p. s.n.).
Fomentando o assunto no intuito de comprovar sua proposta, Boaventura de Sousa Santos (1997) propõe análise sobre quatro formas de globalização: o localismo globalizado; o globalismo localizado; o cosmopolismo; e temas relativos ao patrimônio comum da humanidade.
As duas primeiras impõem-se como manifestações de dominação enquanto as últimas podem ser vistas como progressistas e/ou de interesses/condições de sobrevivência.
O localismo globalizado encontra-se atrelado ao pensamento de que uma ideia local é globalizada com sucesso, como a citada proliferação do idioma inglês, “a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA” (SANTOS, 1997, p. s.n.).
O globalismo localizado relaciona-se ao inverso. Ou seja, “figuras” transnacionais são adotadas em caráter imperativo nas realidades locais, condicionando “suas vidas”, incluindo:
[...] enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestamento e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico de tesouros históricos, lugares ou cerimonias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecológico ("compra" pelos países do Terceiro Mundo de lixos tóxicos produzidos nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação como parte do "ajustamento estrutural"; etnicização do local de trabalho (desvalorização do salário pelo facto de os trabalhadores serem de um grupo étnico considerado "inferior" ou "menos exigente") (SANTOS, 1997, p. s.n.).
O cosmopolismo diz respeito ao fato de que as formas predominantes de dominação não têm impossibilitado que regiões do globo terrestre, Estados e classes diversas se mobilizem na defesa de interesses comuns.
Nos dizeres de Boaventura de Sousa Santos, as atividades cosmopolitas abarcariam, entre outros:
[...] organizações mundiais de trabalhadores (a Federação Mundial de Sindicatos e a Confederação Internacional dos Sindicatos Livres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assistência jurídica alternativa, organizações transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizações não governamentais (ONGs) transnacionais de militáncia anticapitalista, redes de movimentos e associações ecológicas e de desenvolvimento alternativo, movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas, etc, etc (SANTOS, 1997, p. s.n.).
Já o conceito de patrimônio comum da humanidade liga-se a questões, como dito acima, envolvendo a própria sobrevivência humana, razão pela qual deva haver uma reunião dos mais diversos Estados e organizações em prol da sua consecução. A concepção compreende temas como, entre outros, “[...] a protecção da camada de ozono, a preservação da Amazônia, a Antártida, a biodiversidade ou os fundos marinhos [...]" (SANTOS, 1997, p. s.n.).
Com essas considerações, o autor (SANTOS, 1997) sinaliza que se deva estabelecer uma teoria a fazer prevalecer o senso de que os direitos humanos sejam encarados como cosmopolitismo ou globalização contra hegemônica, pois, em regra, até os dias atuais, sua face tem representado os interesses ocidentais hegemônicos.
Uma das bases dessa teoria diz respeito ao embate universalismo x relativismo cultural, o qual, em sua percepção, deverá ser superado, pois:
[...] Todas as culturas são relativas, mas o relativismo cultural enquanto atitude filosófica é incorrecto. Todas as culturas aspiram a preocupações e valores universais, mas o universalismo cultural, enquanto atitude filosófica, é incorrecto. Contra o universalismo, há que propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas. Contra o relativismo, há que desenvolver critérios políticos para distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação de regulação. Na medida em que o debate despoletado pelos direitos humanos pode evoluir para um diálogo competitivo entre culturas diferentes sobre os princípios de dignidade humana, é imperioso que tal competição induza as coligações transnacionais a competir por valores ou exigências máximos, e não por valores ou exigências mínimos (quais são os critérios verdadeiramente mínimos? os direitos humanos fundamentais? os menores denominadores comuns?) [...] (SANTOS, 1997, p. s.n.).
Nesse contexto, levando em consideração que todas as culturas possuem sua definição de dignidade humana e que são incompletas no sentido de possibilitarem, inclusive, a existência de outras culturas, sendo algumas mais amplas que as outras e, até mesmo, detentoras de grupos sociais com signos culturais “hierárquicos”, Boaventura de Sousa Santos (1997) sugere que haja um diálogo intercultural, a utilização de uma hermenêutica diatópica.
De forma sucinta, o autor alude que todas as culturas possuem universos de sentidos, os quais constituem, cada qual, um topoi forres. Esses sentidos são constituídos pelo que há de mais valioso para dada cultura, o que analisado pelo topoi de outra cultura, fatalmente, gerará “problemas” e se tornará extremamente vulnerável (SANTOS, 1997).
Por essa razão, Boaventura de Sousa Santos (1997), por meio da atividade interpretativa acima mencionada, apresenta um procedimento para orientar o intérprete dos direitos humanos no sentido de melhor compreende-los em âmbito global e local. Eis sua descrição:
[...] Na área dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social para as possibilidades e exigências emancipatórias que eles contêm só será concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências tiverem sido apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste sentido, não podem ser obtidas através da canibalização cultural. Requerem um diálogo intercultural e uma hermenêutica diatópica. A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por mais forres que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude — um objectivo inatingível — mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu caracter diatópico (SANTOS, 1997, p. s.n.).
Referências
SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451997000100007&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em outubro de 2017.