ESTADO DE DEFESA E ESTADO DE SÍTIO
Rogério Tadeu Romano
I - A SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS
A suspensão das garantias constitucionais é uma das questões graves do direito constitucional, porque diz respeito à restrição ao exercício dos direitos fundamentais do homem.
Os vestígios dessas limitações são encontrados na Grécia e na Roma antiga. Disse Glotz (La cité grecqué, pág. 126) que, em guerras e revoluções, concediam-se aos arcontes poderes excepcionais. Era uma tirania eletiva.
Também aos cônsules se concediam "plenos poderes". Era a ditadura a que se referia Denys D'Halicarnasse.
Os Estados Unidos adotaram o instituto da mãe pátria em sua pureza, uma vez que excluíram os Coercition Acts e os Acts of Indennity. Admitem, no entanto, a suspensão do writ por ato do Congresso, apenas nos casos de rebellion or invasion (Constituição de 1787, artigo 1º, seção 9ª, item 2º). Os governantes não faziam jus a bill de indenidade, como sustentavam os tratadistas desde Joseph Story (Commentaries on the Constitution, volume II, pág. 214) . Em 1817, e ainda em 1841, os Estados Unidos adotaram, igualmente, esses emergency powers, como se lê de Munro (The government of the United States, pág. 430).
Na França estudou-se a matéria à luz do instituto das perturbações da ordem pública. A Carta de 1814 (artigo 14) admitiu, de forma implícita, o instituto que caiu com a Carta de 1830. Em 1849, regulou-se o état de siège militar, que Duguit chamou de real para distinguir de civil, que ele denominava de fictício (Manuel de droit constitucionnel, pág. 231). Em 1878, o instituto foi regulado por lei, com os seguintes princípios: a) cabe ao Parlamento declará-lo; b) nos intervalos das sessões, pode o presidente da República fazê-lo, ouvido o Conselho de Ministros, cabendo ao Parlamento, mantê-lo ou levantá-lo, dois dias após; c) quando dissolvido o Parlamento, o presidente da República só pode fazê-lo em caso de guerra, ouvido o Conselho de Ministros; d) só em dois casos é ele admitido: guerra ou insurreição armada, como disse ainda Léon Duguit (Traité de droit constitutionnel, volume IV, pág. 414).
O Brasil adotou, desde logo, o sistema francês: suspensão, não apenas do habeas corpus - como fazem os anglo-americanos, com o bill of indemnity, ou sem ele - mas ainda de outras garantias, por ato do Congresso e, em casos excepcionais, do presidente da República.
A Constituição de 1891 já falava em agressão estrangeira ou comoção intestina.
Rui Barbosa sustentava, não só que não se suspendiam, durante o sítio, todas as garantias constitucionais, como não cessavam as imunidades parlamentares (Comentários à Constituição Federal, volume VI, páginas 280 e seguintes). Entendia, outrossim, que a comoção intestina pressupunha periclitação da segurança da República (página 300). Advogava a regulamentação do estado de sítio nas bases em que veio a fazê-lo a Constituição de 1934.
Há o que chamamos de direito constitucional das crises.
Ali se situam normas que visam à estabilização e à defesa da Constituição contra processos violentos de perturbação da ordem social.
A legalidade normal é substituída por uma legalidade extraordinária, que define e rege o Estado de exceção.
Os princípios informadores do sistema constitucional das crises, do estado de exceção, foram lembrados por Aricê Moacyr Amaral Santos(O Estado de emergência, 1981, pág. 33) e são o princípio fundante da necessidade e o princípio da temporalidade, cuja incidência "nos sistemas de legalidade especial" determine: a) declaração é condicionada à ocorrência de pressuposto fático; b) os meios de resposta têm sua executoriedade restrita e vinculada a cada anormalidade em particular e, ainda, ao lugar e tempo; c) o poder de fiscalização política dos atos de exceção é de competência do Legislativo; d) o controle judicial a tempore e a posteriori do Judiciário.
Configurará puro golpe de estado, essa atuação de exceção sem que haja a necessidade para a sua configuração. Se não houver atenção à temporalidade, haverá ditadura.
De toda sorte maior a crise se houver o desmoronamento constitucional que se dará com a agressão aos direitos e garantias constitucionais. Dai porque é necessário deter um Executivo sem limites.
O Brasil tem a triste memória de ditaduras: a ditadura do Estado Novo, a ditadura militar e o golpe dentro do golpe que foi o AI-5.
São tipos de estado de exceção vigentes, como se lia desde a EC 11/78: a) medidas de emergência, b) estado de sítio e o c)estado de emergência.
A Constituição de 1988 reformulou a questão, mas não retrocedeu ao sistema puro da Constituição de 1946, que só previa o estado de sítio, mas manteve ainda o estado de emergência com o nome de estado de defesa, como ensinou José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 636).
Em 1922, na vigência da Constituição de 1891, Arthur Bernardes decretou estado de sítio.
Essa declaração foi dada em contexto de crise política, com o movimento comunista da Coluna Prestes, os Levantes Tenentistas e a ameaça de Guerra Civil separatista no Rio Grande do Sul.
Estado de sítio e estado de defesa não são situações de arbítrio. Mas são situações regradas sujeitas ao controle do Legislativo e do Judiciário.
Qualquer pessoa que vier a ser prejudicada pelos atos de exceção citados poderá submeter seu pleito ao Judiciário.
II - ESTADO DE DEFESA
Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
§ 1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I - restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
b) sigilo de correspondência;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;
II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
§ 2º O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação.
§ 3º Na vigência do estado de defesa:
I - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;
II - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;
III - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;
IV - é vedada a incomunicabilidade do preso.
§ 4º Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.
§ 5º Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias.
§ 6º O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa.
§ 7º Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.
O Estado de sítio é uma situação em que se organizam medidas destinadas a rebelar ameaças à ordem pública ou à paz social. Em função do disposto no artigo 136 da Constituição, o estado de defesa consiste na instauração de uma legalidade extraordinária, por certo, em locais restritos e determinados, mediante decreto do presidente da República, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, para preservar a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
Constituem pressupostos de fundo do estado de defesa: a) a existência de grave e iminente instabilidade institucional que ameace a ordem pública e a paz social; b) a manifestação de calamidade em grandes proporções.
Adota-se com o estado de defesa uma legalidade especial para a área em questão.
Estado de defesa é uma situação de emergência na qual o Presidente da República conta com poderes especiais para suspender algumas garantias individuais asseguradas pela Constituição cuja suspensão se justifica para restabelecer a ordem em situações de crise institucional e nas guerras.
O objetivo principal do estado de defesa é preservar ou restabelecer a ordem e a paz social, mediante fatos como:
- a instabilidade institucional grave e imediata;
- calamidades de grandes proporções na natureza.
- As conseqüências durante o estado de defesa poderão ser:
- restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondência e comunicação telegráfica e telefônica;
- ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos( somente na hipótese de calamidade pública);
- prisão por crime contra o Estado, determinada diretamente pelo executor do estado de defesa.
Esta prisão não poderá ser superior a 10 dias e será imediatamente comunicada a juiz competente que a relaxará no caso de ilegalidade, sendo ainda vedada a incomunicabilidade do preso.
O controle político realiza-se em dois momentos pelo Congresso Nacional. O primeiro consiste na apreciação do decreto de instauração e de prorrogação do estado de defesa que o presidente da República terá que submeter a ele, dentro de vinte e quatro horas de sua edição, acompanhado da respectiva justificação. Se o Congresso estiver em recesso, será convocado de forma extraordinária. Em qualquer caso, terá de apreciar o decreto dentro de dez dias contados do seu recebimento, continuando em funcionamento enquanto o estado de defesa vigorar. A apreciação da medida concluirá por sua aprovação ou por sua rejeição(artigo 49, IV e 136, § 7º). Se aprovado, segue sua execução. Mas, se for rejeitado, cessará de forma imediata os seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores(artigo 136, § 7º, e 141). O controle do Congresso Nacional, no segundo caso, é sucessivo e a posteriori, atuando após o término do estado de defesa e a cessação de seus efeitos conforme o artigo 141, parágrafo segundo.
De toda sorte, se o Congresso não aceitar as razões apresentadas pelo presidente da República para tal ato extremo, será caso de apurar crime de responsabilidade, na forma do artigo 86 segundo a Lei 1.079/50.
Há ainda um controle político concomitante, na forma do artigo 57, § 5º, da Constituição Federal, por uma comissão por cinco dos seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas.
Por sua vez, o controle jurisdicional será exercido em caso em que se prevê a prisão por crime contra o Estado e nos outros em que houver afronta fora dos parâmetros normativos aos direitos e garantias constitucionais.
III - ESTADO DE SÍTIO
As causas do estado de sítio são as situações criticas que indicam a necessidade da instauração da correspondente legalidade de exceção(extraordinária) para fazer frente à anormalidade manifestada.
As causas dessa situação anômala à democracia estão previstas no artigo 137 da Constituição:
O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:
I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
A instauração do estado de sítio depende ainda do preenchimento de requisitos formais: a) a audiência do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional; b) autorização por voto da maioria absoluta do Congresso Nacional para a sua decretação em atendimento à solicitação fundamentada do presidente da República; c) decreto do presidente da República.
Essa normatividade extraordinária e excepcional tem uma duração que não poderá ser superior a trinta dias, nem prorrogada de cada vez; as garantias constitucionais ficarão suspensas desde que autorizadas na forma do artigo 139 da Constituição Federal; devem ser editadas normas para reger à sua execução.
Além de todas essas ressalvas, cabe destacar que o chefe de Estado não gozará de total liberdade para tomar qualquer medida contra os cidadãos de seu país. Assim, apenas algumas ações poderão ser tomadas sobre os direitos individuais, tais como: obrigação de permanência em um dado local; detenção em edifícios não destinados a esse fim; restrições a direitos como inviolabilidade da correspondência e outros; suspensão da liberdade de reunião; direito de busca e apreensão, pelo Estado, em domicílios; intervenção de serviços públicos em empresas particulares e a requisição de bens individuais pelo Estado. Tudo isso está definido no Art.139 da CF, que permite, no entanto, medidas mais severas contra os cidadãos em casos de guerra.
Quando o estado de exceção chega ao fim, revogam-se também todos os seus efeitos. Nesse ínterim, o chefe de Estado possuirá ainda o dever de relatar, em mensagem ao Congresso Nacional, todas as medidas tomadas durante o estado de sítio, além de apresentar as justificativas, a relação dos nomes dos indivíduos atingidos e as respectivas restrições adotadas. Tudo isso é garantido em lei para assegurar que abusos de poder não sejam cometidos ou, se cometidos, sejam devidamente investigados e julgados.
Tal como no estado de defesa, o juízo de conveniência da instauração do estado de sítio cabe ao presidente da República quando ocorra um dos pressupostos de fundo que o justificam. Ele tem a faculdade de decretar, ou não, a medida, mas se o fizer terá que observar as normas constitucionais que a regem.
Há controles de ordem legislativo e jurisdicional.
O controle político realiza-se pelo Congresso Nacional em três momentos: a) um controle prévio, porque a decretação do estado de sítio depende de sua prévia autorização; b) um controle concomitante, porque, nos termos do artigo 140 da Constituição, a mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, deverá designar Comissão composta de cinco de seus membros, para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de sitio, como ocorre no estado de defesa; c) sucessivo, pois após cessado o estado de sítio, as medidas aplicadas em sua vigência serão relatadas pelo presidente da República em mensagem ao Congresso Nacional, com especificação e justificação das providências adotadas, com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas.
O controle jurisdicional, como ensinou José Afonso da Silva (obra citada, pág. 642), é amplo em relação aos limites de aplicação das restrições autorizadas. Se os executores ou agentes do estado de sítio cometerem abuso ou excesso durante a sua execução, seus atos ficam sujeitos à correção jurisdicional, quer por via de mandado de segurança, habeas corpus, habeas data ou outro meio e instrumento processual hábil.
A responsabilização se dará por meio do artigo 141 da Constituição Federal.